“Tá, mas como foi isso?”, insistiu a senhora no banco do lado na sala de espera. Eu estava quieta, de olhos fechados, concentrada em sabe-se lá o que. Já tinha respondido antes “tentei cortar EVA com estilete”. Ela não ficou satisfeita, ela queria detalhes, não fazia sentido um corte de 10 cm próximo ao meu ombro expondo gorduras e músculos em uma simples tentativa de cortar EVA, um material extremamente macio.
Não fazia sentido porque eu não consegui inventar mentira menos ruim do que aquela pra justificar porque eu sujava de sangue tudo ao meu redor quando a gaze não deu conta.
As perguntas curiosas se tornaram parte da minha rotina desde que encontrei nas lâminas uma espécie de efeito placebo. Em pouco tempo descobri minha marca favorita de gaze, minha marca favorita de lâmina — vendidas em caixinhas com três unidades — e o micropore bege — que nunca disfarçou nada porque minha pele chega a ser rosada, de tão branca.
Carrego comigo mais do que o estigma de um transtorno psiquiátrico, mas um ímpeto de autodestruições proveniente dele. No auge da minha dor psíquica sinto a necessidade, por vezes incontrolável, de causar dor em mim mesma. Jamais machuquei quem quer que seja ou sequer nutri o desejo de fazê-lo, enquanto coleciono em meu corpo as marcas de mais de 20 anos de uma convivência nada harmoniosa com a bipolaridade.
Ao contrário do que muita gente pensa — inclusive profissionais da saúde — a automutilação não é uma forma de me sentir viva enquanto desejo morrer — afinal, se sinto dor, estou viva, certo? Errado. Em minha mente, a automutilação funciona como uma amostra da morte. Células morrem, pequenos vasos morrem, é um pedaço do meu corpo que eu transformo em um pequeno túmulo ambulante.
Minha relação com a automutilação começou com meus cabelos. Durante anos descontei minha necessidade de autoagressão em cortes de cabelos que podiam ser facilmente justificáveis como mudança de visual. Mas eram, pra mim, sintomas.As temporadas de automutilação a cada grande crise que me atropela são em geral precedidas por cortes de cabelo feitos com lâmina de depilação, por mim mesma, sem sequer o uso do espelho para conferir o estrago.
As lâminas entraram na minha vida muito mais tarde.
Lembro que era comum na adolescência algumas meninas arranharem os braços formando a letra inicial do nome do menino de quem gostavam; as marcas em geral desapareciam em alguns dias e eu achava ridículo. Talvez por essa questão adolescente de autoagressão por modismos seja um fator importante para a automutilação não ser levada a sério como deveria. As pessoas sempre esperam que as atitudes autodestrutivas de adolescentes acabem durante seu amadurecimento, mas a realidade nem sempre é tão simples assim.
Milhões de pessoas no mundo inteiro se automutilam todos os dias; essa é uma realidade que a maioria desconhece pelo estigma que recai sobre nós porque para o outro é sempre “frescura” ou falta de autocontrole. A automutilação é, acima de tudo, um sintoma. Ninguém se fere simplesmente porque deu vontade. A “vontade”, nesse caso, é movida por algo muito mais severo. Eu não sinto prazer na dor que provoco em mim mesma, mas eu sinto a necessidade de provoca-la. E isso só acontece quando tudo em meu universo psíquico vai mal.
Admitir a doença é talvez um dos fatores mais complexos em todo o processo; não por ter que assumir a si mesmo que se está doente, mas porque a rejeição social existe e é aterrorizante. Toda vez que as pessoas notam minhas cicatrizes — e sempre notam, porque são muitas e bem evidentes — meu cérebro já começa a trabalhar na mentira que vou ter que inventar para não precisar dizer “eu me corto”, porque em geral as reações não são exatamente agradáveis. O que poderia dizer? O prego na parede? O gato que eu sequer tenho? Aquela minha descoordenação motora digna de interdição por precisar de 39 pontos ao tentar “fazer artesanato”?
Para além daqueles genuinamente interessados em ajudar mas que caem no lugar comum do “não faça isso com você mesma”, tem sempre o outro lado — o lado da agressão, da exclusão, da ofensa. Três situações que aconteceram comigo corroboram essa afirmação: anos atrás convidei um amigo para um café, queria propor de montarmos uma peça teatral explicando transtornos psiquiátricos e suas consequências. Ao admitir a ele que eu sofria de transtorno bipolar, a expressão dele mudou. Primeiro alegou que era melhor que eu não participasse por causa da minha “instabilidade” — outra desinformação — depois desconversou, foi embora, me bloqueou das redes e nunca mais conversamos para além de um “oi” na rua, num encontro acidental.
Anos depois cometi o mesmo erro duas vezes: em duas empresas diferentes, conversei com meu parceiro direto de trabalho (meu dupla de criação, no caso) e nos dois isso custou meu emprego. No primeiro de forma mais sutil, fui sendo isolada e tratada como algo repugnante até desmoronar. No segundo guardei por alguns anos um áudio de 20 minutos gravado no ambiente de trabalho com meu colega aos berros me chamando de louca, dizendo que eu devia ser afastada do convívio social e outras ofensas. Uns dias depois ele se reuniu com o chefe e alegou que não poderia trabalhar comigo nessas condições. O chefe me demitiu alegando que eu precisava “cuidar da minha saúde”.
Bom, eu estava, até ficar desempregada. Os comportamentos apontados por essas pessoas como justificativa de não estar perto de mim era única e exclusivamente saber que eu me mutilava. Só. Nunca o fiz em público, meu convívio social sempre foi perfeitamente normal, trabalho, estudo, tenho excelente rendimento em todas as atividades.
Então, de que forma minha automutilação poderia ser danosa para o meu convívio social? Nenhuma. O que aconteceu comigo foi preconceito puro.
É o mesmo preconceito que leva milhões de pessoas a se automutilarem sem buscar ou receber nenhum tipo de ajuda. A automutilação é um sintoma, se a sociedade força o paciente a esconder esse sintoma, o problema do qual ele faz parte fica oculto até que, talvez, seja tarde demais.
Imaginem se uma pessoa com um tumor no cérebro esconde seu problema por vergonha de assumir que sente fortes dores de cabeça? O dia que o problema vier à tona, vai dar tempo de tratar ou a pessoa já está com sua sobrevivência comprometida?
A automutilação via cortes entrou na minha vida muito depois do “é só uma fase” ou “ela está sendo rebelde”. O primeiro corte efetivo (não arranhões que somem um pouco depois) foi por volta dos 28 anos. Aos 29, os primeiros pontos.
Desde que comecei com a automutilação, já levei por volta de 300 pontos (100 somente em uma das crises) por exagerar na dose .Estamos falando de uma pessoa de mais de 35 anos ciente de sua patologia e capaz de dialogar sobre ela. O que pode acontecer com uma pessoa mais jovem, mais imatura, desinformada? Com uma lâmina na mão não é difícil uma pessoa se colocar em risco de doenças como o tétano, cortar nervos importante que comprometam o funcionamento de algum membro, provocar uma infecção severa ou até mesmo causar, sem querer, a própria morte.
O estigma é real, o preconceito existe. Escrevo esse texto inclusive com muito medo do que pode vir de consequência, mas desejo do fundo do coração que ninguém passe pelas perguntas constrangedoras, pelos repuxões das cicatrizes que já me acordaram no meio da noite, pela vergonha ao ver a tristeza nos olhos da minha mãe, pelas luvas e mangas compridas no verão, pelas mentiras toscas pra justificar tanta cicatriz, pelos 10 dias de trocas de curativos e cuidados extremos com pontos para não inflamar, pela expressão de desprezo ou de pena de profissionais que atendem (ou se recusam a atender) em plantões porque perceberam que o corte foi autoprovocado.
Mas principalmente, que ninguém jamais sinta o desespero que senti ao quase (por milímetros) cortar nervos importantes da minha mão esquerda — a mão que eu escrevo. Por milímetros eu não perdi movimentos da minha mão esquerda.
Depois de quase 300 pontos, centenas de cicatrizes, várias tatuagens de cobertura, quase perder minha mão da escrita foi meu sinal de alerta. Hora de assumir pra mim mesma que automutilação não tá ok. Não ajuda, não alivia, não resolve e quase tirou de mim o que eu tenho de mais importante.
Isso não é vida. Automutilação não é modinha adolescente, rebeldia, “só uma fase”, “quer chamar a atenção”. Automutilação é sintoma de doença, e doença precisa ser tratada como tal — com acolhimento e tratamento.
Tá na hora de a gente começar a tratar esse assunto com seriedade. De dar margem aos praticantes para que procurem ajuda.
Me orgulho de ter sobrevivido a cada um dos meus cortes. Mas me orgulho mais ainda de hoje assumir pra mim mesma que eu tenho um problema que eu não vou curar sozinha.
Eu sou uma sobrevivente, eu procurei ajuda. As lâminas nunca fizeram nada por mim, só me colocaram em situações ruins e quase destruíram a minha vida. Se você sente vontade de se cortar, não tenha medo nem vergonha de procurar ajuda, a culpa não é sua.
A culpa não é sua.