Quanto mais numerosos foram os obstáculos legais e materiais vencidos pelas mulheres, mais rígidas, pesadas e cruéis foram as imagens da beleza feminina a nós impostas.
Naomi Wolf — “O mito da beleza”
O patriarcado se mantém funcionando através da exploração dos corpos do sexo feminino. Robin Morgan coloca as mulheres enquanto povo colonizado, cuja terra roubada é o próprio corpo. Ao longo dos séculos, as formas de controle do corpo feminino foram se desenvolvendo e adaptando às tentativas de resistência das mulheres. A beleza é um dos mecanismos mais fortes dessa dominação. É crucial que se tenha em mente que a beleza não existe por acaso — ela é intencional, eficiente e cruel.
A primeira coisa a ser avaliada em uma mulher na sociedade patriarcal é sua aparência. A ânsia por ser considerada bonita funciona como um controle psicológico extremamente eficiente. A beleza ocupa o pensamento, o foco e a energia das mulheres. Ela é colocada como uma forma imprescindível de realização pessoal — exercer atração em pessoas do sexo masculino é algo diretamente relacionado a como mulheres são socializadas para construírem sua autoestima e obterem a sensação de que têm valor — esse padrão é tão forte que se mantém mesmo em mulheres que só amam mulheres. É um ideal inatingível, que exige tempo e manutenção e nunca se obtém o resultado desejado, um terreno fértil para o auto-ódio das mulheres.
De acordo com um estudo de Harvard, “The real truth about beauty: a global report” (“A verdade real sobre a beleza: um relatório global”), em 2004, no Brasil, apenas 6% das mulheres se descreviam como bonitas, 51% das mulheres acreditavam que precisavam emagrecer e 54% consideravam cirurgias plásticas.
A dor é inerente a muitas das práticas de beleza às quais mulheres se submetem — a socialização para a dominação define mulheres como naturalmente masoquistas e, portanto, amantes da submissão. Não há, no patriarcado, existência feminina sem dor. Dentro das possibilidades patriarcais, ou as mulheres amam a dor ou a suportam. A beleza — e, portanto, a dor — é um requisito para ser considerada sexualmente desejável, um requisito que as mulheres são ensinadas a amar.
(…) o mais importante é que mulheres são entendidas como diferentes dos homens por serem tanto potencialmente “lindas” quanto por serem interessadas em beleza e entusiastas de dedicar enormes quantidades de tempo, dinheiro, dor e estresse emocional para serem “lindas”. Isso é assumido na cultura ocidental como “natural” das mulheres e o mais universal símbolo da diferença das mulheres em relação aos homens.
Sheila Jeffreys — “Beleza e Misoginia”
É também por meio da beleza que são mantidas ferramentas patriarcais que minam a organização política das mulheres: ela é baseada principalmente no exercício dos aspectos físicos da feminilidade, que é pura submissão ritualizada; que faz com que acreditemos que nossa opressão é natural e, portanto, inevitável. Ela é também uma das formas através das quais se constrói a rivalidade feminina.
Mulheres devem praticar feminilidade para criar a diferença/deferência sexual. Mas a diferença é de poder, e a feminilidade é o comportamento exigido da classe subordinada de mulheres para mostrar sua deferência à classe dominante de homens.
Sheila Jeffreys — “Beleza e Misoginia”
O controle exercido pela beleza não é só psicológico — é físico. Dentre as práticas ocidentais, o salto alto e as roupas desconfortáveis reduzem a mobilidade; o cabelo comprido, os brincos e os piercings são facilitadores de ataques; as cirurgias plásticas trazem danos à saúde; as dietas e a magreza excessiva proveniente de transtornos alimentares, que são doenças cujo contágio é social — ou seja, a angústia da mulher com transtorno alimentar tem origem na feminilidade e na misoginia –, enfraquecem, debilitam severamente e chegam a matar.
A seita da perda do peso recruta as mulheres desde cedo, e os transtornos alimentares são seu legado. A anorexia e a bulimia são doenças do sexo feminino. 90 a 95% dos pacientes são mulheres.
Naomi Wolf — “O mito da beleza”
O culto à magreza é, dentre os mecanismos que constroem a beleza, o mais eficiente — a ideia de magreza é uma obsessão psicológica, e a magreza debilita fisicamente. Naomi Wolf, em O Mito da Beleza, define a cultura da magreza como uma seita. Ela explica que a autoridade, a renúncia e o “dom da verdade” são características fundamentais na construção desse tipo de organização; e a cultura da magreza se encaixa nesses três pontos — as dietas e os especialistas têm uma relação de autoridade em relação às mulheres; as mulheres em dieta “renunciam ao prazer dos alimentos. Elas evitam comer fora, restringem sua vida social e evitam situações em que possam se deparar com tentações”; mulheres com obsessão pelo próprio peso acreditam que são repulsivas, apesar de pessoas observando o contrário, e “As anoréxicas têm certeza de estar envolvidas numa busca que ninguém mais pode entender ao olhá-las”. Ela coloca como o culto à magreza é um backlash ao feminismo:
As grandes alterações de peso devem ser compreendidas como um dos maiores acontecimentos históricos do século, uma solução direta para os perigos representados pelo movimento das mulheres (…) O hábito da dieta é o mais possante sedativo político na história feminina. Uma população tranquilamente alucinada é mais dócil.
Naomi Wolf — “O mito da beleza”
Existe um conjunto de fatores que, somados à pressão estética, constituem o que hoje se chama de gordofobia, o preconceito ou ódio a pessoas gordas:
A estigmatização de mulheres gordas: há a convicção de que a causa da obesidade ou do sobrepeso só pode ser uma falência moral da mulher, que seria preguiçosa, desleixada, sem disciplina. Isso origina preconceito inclusive dentro do mercado de trabalho — mulheres obesas ganham menos que mulheres não obesas, quando chegam a ser contratadas.
A negligência médica com corpos considerados acima do peso: estudos científicos apontam que a obesidade é facilitadora de diversos problemas de saúde — isso é um fato. Ainda há uma discussão na área da ciência sobre a obesidade ser uma doença ou não e sobre o quanto o estigma influencia pareceres médicos sobre o assunto. O que é indiscutível é que a abordagem médico-paciente dos problemas de saúde que são de fato associados à obesidade é dotada de estigma, o que afasta pessoas gordas do atendimento médico por não quererem ser hostilizadas durante suas consultas. Qualquer pessoa gorda pode atestar que pessoas com sobrepeso ou obesidade são negligenciadas quanto a outros problemas de saúde, porque todo sintoma é associado unicamente ao peso. E não é só nos consultórios que isso acontece — há a crença social de que é impossível uma pessoa obesa ou com sobrepeso ser saudável em outros âmbitos — como, por exemplo, no da saúde mental –, e sua saúde se torna pública, seu corpo se torna público quando qualquer pessoa com qualquer grau de intimidade se sente no direito de questionar pessoas gordas sobre seus corpos, sob a justificativa de preocupação com a saúde.
No entanto, a gordura na mulher é alvo de paixão pública, e as mulheres sentem culpa com relação à gordura, porque reconhecemos implicitamente que, sob o domínio do mito, os nossos corpos não pertencem a nós mas à sociedade, que a magreza não é uma questão de estética pessoal e que a fome é uma concessão social exigida pela comunidade. Uma fixação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza feminina mas uma obsessão com a obediência feminina.
Naomi Wolf — “O mito da beleza”
A falta de acessibilidade: desde uma catraca de ônibus até o tamanho das poltronas de avião, a falta de acessibilidade para mulheres gordas cerceia seu acesso ao espaço público.
O corpo da mulher gorda é publicizado, odiado e fetichizado. O preterimento afetivo, dentro do contexto de que a atração que se exerce sobre sexo masculino é medição para o valor de uma mulher, sabota a autoestima e fortalece o auto-ódio. Essas são consequências da gordofobia e da beleza como um todo na vida de meninas e mulheres, em todas as fases de suas vidas — e o medo de serem colocadas nessa situação afeta todas as mulheres negativamente. O culto à magreza é nocivo a todas as mulheres. Gordofobia é assunto feminista.
A gordofobia é um dos produtos da misoginia, criada a partir da beleza, que afeta também, ainda que em menor quantidade, os homens gordos. Outro exemplo de ramificação da misoginia que afeta homens é a homofobia. Mas homens serem afetados pela gordofobia não faz com que seja equiparável a forma como esse preconceito afeta mulheres e homens, muito pelo contrário. A relação de homens gordos com a sociedade difere em muito da de mulheres gordas. Muito dos xingamentos direcionados aos homens gordos são centrados no fato de eles desenvolverem características físicas relacionadas ao corpo de mulheres, como gordura na região do peito e do quadril. Eles também sofrem hostilidade por não caberem no padrão de macho atlético com marcadores de força física para a dominação. Porém, os homens obesos têm salários maiores do que homens não obesos em posições que não exigem emprego de força física. Homens gordos passam por constrangimentos e sofrem consequências degradantes da gordofobia, mas tanto a quantidade quanto a qualidade da expressão desse preconceito diferem em muito da realidade das mulheres obesas ou com sobrepeso.
O termo gordofobia foi, porém, encaixado no conceito distorcido das inúmeras “fobias” reivindicadas pela esquerda liberal atualmente. A influência liberal fez com que ele fosse transformado numa suposta opressão de pessoas magras sobre pessoas gordas, e as consequências disso criaram um ativismo liberal e apolitizado. Gordofobia é um rumor, um preconceito social enraizado em todas as pessoas, inclusive nas pessoas gordas — é misoginia direcionada e institucionalizada, mas não uma opressão específica por si só.
Essa distorção liberal desatrelou o culto à magreza de sua raiz e seu propósito patriarcais e criou a identidade gorda — uma categoria de homens e mulheres cuja delimitação é flexível e imprecisa, gerando discussões infrutíferas sobre quem é opressor e quem é oprimido baseadas na percepção de cada um — “quem é gordo o suficiente para falar sobre gordofobia”. O identitarismo baseado no tamanho dos corpos carrega, como sempre, o caráter de essencialidade, ignorando que gordura é um fator mutável. Soma-se a ele a o raso entendimento acerca do do conceito de local de fala, e tem-se um liberalismo identitário potencializado, alimentado pelo ódio a mulheres magras — também fruto de misoginia e rivalidade feminina — aparentemente justificado pela falácia de ódio ao opressor. Esse tipo de ativismo é improdutivo e antifeminista por acirrar a rivalidade feminina e incentivar o ódio a mulheres.
Todas as mulheres sofrem com a beleza. Todas sofrem com a associação de gordura a feiura e estigmatização. Todas sofrem com a gordofobia, ainda que de forma indireta, porque gordofobia é misoginia. Todas as mulheres estão passíveis de reproduzir gordofobia porque todas estão imersas nessa cultura que exerce controle a partir da beleza. Isso não quer dizer que mulheres magras oprimem mulheres gordas, porque essas duas categorias não são classes separadas.
Eu procurei mostrar o poder da expectativa cultural de que mulheres devem demonstrar feminilidade se envolvendo em práticas de beleza. As forças que exigem esse comportamento incluem uma falta de possibilidades de alternativas, a crença de que a feminilidade e suas práticas são naturais e inevitáveis, educação infantil, bullying na escola, exigências no trabalho, necessidade de aperfeiçoar o corpo odiado incutida pela cultura de dominância masculina e o medo de retaliação masculina.
Sheila Jeffreys — “Beleza e Misoginia”
Da militância liberal surgiram, como sempre, consequências nocivas às mulheres — o movimento body positive, por exemplo, que exige o encaixe de corpos gordos na beleza sem questioná-la e chama isso de empoderamento. As mulheres foram levadas, mais uma vez, a pornificar os próprios corpos, reivindicando sua inserção na beleza patriarcal, associando nudez e aprovação masculina a autoestima e perdendo de vista o que mais importa, que é o fim da beleza em si. Associar beleza a poder só potencializa seus efeitos em mulheres e meninas — a beleza já é vista como forma de realização pessoal; sua influência ficará ainda maior se for vista como forma de poder.
O clamor pela representatividade inseriu mulheres com sobrepeso na publicidade da indústria da beleza, advogando pelo entendimento de que mulheres gordas ainda devem abraçar a feminilidade, mesmo que falhem no culto à magreza. Tanto por isso mulheres gordas que abraçam a feminilidade recebem mais empatia, assim como mulheres gordas brancas, devido ao benefício da branquitude. Como todo preconceito, a gordofobia é consubstancial com outros marcadores sociais.
O ativismo gordo trata a questão médica de forma exacerbada, negando completamente as comorbidades associadas à obesidade, desatrelando-se dos fatos, como toda militância liberal e identitária. O fato é que a obesidade também limita fisicamente, assim como a magreza extrema, e tem consequências à saúde. Dizer isso não é defender a negligência médica ou a publicização da saúde de pessoas gordas. Desconsiderar os estudos científicos também impede a realização de políticas públicas de acessibilidade para pessoas gordas — sua implementação depende de critérios objetivos.
O ativismo gordo coloca a identidade gorda como “resistência política aos padrões de beleza”, como se o problema fosse a mera existência de padrões, e não a beleza em si. Ao fazer isso ignora que resistir à beleza é atribuir a ela desimportância. É priorizar a própria saúde em detrimento da feminilidade — abandonando saltos altos, depilação, magreza excessiva, entre outros. A obesidade é, de fato, limitante também. Reivindicá-la enquanto saudável ou bonita não é resistir ao patriarcado. Nada que prejudique a saúde das mulheres pode ser considerado feminista.
Ser gorda é não atender a um aspecto da feminilidade, que é a magreza; não significa necessariamente rejeitar a beleza — principalmente quando essa mulher gorda reivindica seu corpo como bonito (o que vale para a mulher magra também). Rejeitar o controle da beleza conscientemente é extremamente difícil — é deixar de associar seu valor à sua aparência. Uma mulher ser gorda não significa que ela abandonou a beleza ou a feminilidade.
O corpo gordo não é político por ser gordo — todo corpo é político. Há, sim, como utilizar o corpo para resistir ao patriarcado — o lesbianismo está aí para provar isso, assim como a resistência à maternidade compulsória –, mas mesmo nesses casos é preciso tomar cuidado para não adotar uma ilusão de liberdade. Resistir usando o próprio corpo não liberta, não empodera, só nos coloca no caminho certo. Se beleza é controle, abolir o efeito da beleza sobre si é que é resistir ao controle. Não é qualquer coisa que saia da norma que é simplesmente resistência em si.
Quando um termo é cooptado pelo liberalismo, a solução é abandoná-lo ou reivindicá-lo. Ainda é possível reivindicar a gordofobia de forma não liberal. Ainda é possível abordar preterimento afetivo sem basear-se em chantagem emocional. É possível a construção de uma autoestima independente da beleza para todas as mulheres, não só para as gordas. É possível e utópico, mas a utopia é o que nos mantém em movimento.
Pelo fim da beleza, pela libertação de todas as mulheres.
O argumento não é simplesmente de que algumas mulheres não são bonitas, portanto, não é justo julgar mulheres com base na beleza física; ou que homens não são julgados a partir disso, logo mulheres não deveriam ser julgadas a partir disso também; ou que homens deveriam considerar o caráter das mulheres; ou que nossos padrões de beleza são muito paroquiais, ou até que julgar mulheres de acordo com sua conformidade com o padrão de beleza serve para transformá-las em produtos, bens móveis, diferindo da vaca favorita do fazendeiro apenas em termos literais. O problema em questão é diferente e crucial. Padrões de beleza descrevem em termos precisos a relação que um indivíduo terá com seu próprio corpo. Eles determinam sua mobilidade, espontaneidade, postura, maneira de andar, os usos que pode dar ao seu corpo. Eles definem precisamente as dimensões de sua liberdade física. E, claro, a relação entre liberdade física e desenvolvimento psicológico, possibilidade intelectual e potencial criativo é umbilical.
Andrea Dworkin — “Woman Hating”