Eis uma das coisas que grupos minoritários tem em comum: sua história roubada.
Quando estudamos a história como disciplina na escola ou até na universidade, é raro que nos seja passado qualquer protagonismo negro, nativo-americano ou feminino, por exemplo. A história foi documentada por homens brancos da forma como eles quiseram que esta fosse.
Assim, os grandes heróis de guerra reconhecidos são homens brancos, nada de Tereza de Benguela. Os grandes escritores e romancistas reconhecidos são homens brancos, mesmo que Carolina de Jesus seja tão pertinente, quase nada para ela.
Também os grandes inventores da medicina e farmacologia são homens brancos europeus, e até hoje os seguimos, sem ao menos menos questionar às custas de que mortes e/ou apagamentos isso se consolidou.
Pois bem. Já passa da hora de que nós, mulheres, comecemos a tentar interpretar a narrativa feminina da história. Precisamos assumir que a inquisição foi uma das mais sangrentas batalhas conhecidas da guerra patriarcal contra as mulheres. Esse é um passo importante para compreender o que nos foi roubado. E sim, fomos literalmente roubadas, saqueadas.
Eu sei, nem todas as pessoas executadas na Inquisição foram mulheres, mas elas eram a grande maioria. Não se sabe ao certo a quantidade de pessoas que foram vítimas da igreja naquela época, sabe-se apenas que foram muitas e que as “bruxas” eram os maiores alvos.
Mas por que isso tudo aconteceu? Primeiramente, é importante considerar que poder nenhum gasta energia aniquilando um grupo se não estiver se sentindo ameaçado pelo mesmo.
Na idade média, nem igreja e nem Estado se preocupavam em fazer qualquer bem pela população, sabe-se bem que as pessoas viviam em condições precárias tanto nos campos quanto nas cidades européias daquela época.
Partindo desse ponto, podemos supor que, se as ditas bruxas fossem problema pouco, com a influência que a igreja tinha, promover linchamentos populares seria o suficiente. Mas não, foi necessário todo um procedimento de intervenção clérica para o extermínio de tais “pragas”. Foram escritos livros, documentos oficiais onde constavam desde como identificar uma bruxa até métodos de tortura e execução absurdos. O mais famoso é o Martelo das Bruxas.
Neste livro, usado por Inquisidores como guia para seu terrorismo, pode-se comprovar que os motivos para que uma mulher fosse considerada uma bruxa eram dos mais diversos, vagos e aleatórios possíveis. Também os procedimentos utilizados para “provar” que a acusada se tratava mesmo de uma bruxa eram bastante contestáveis: desde torturas extremas que chegavam a fazer pessoas confirmarem que transaram com o capeta ou coisas nesse nível, até testes como o do afogamento, em que a pessoa era amarrada e jogada na água, se morresse não era bruxa a coitada, mas se sobrevivesse era, então poderia ser assassinada na fogueira.
Os inquisidores iam buscar a acusada em sua casa e passeavam com ela pelas cidades em uma gaiola de ferro para que fosse humilhada. A partir desse momento não havia escapatória, ela certamente seria morta. Pessoas que não haviam cometido barbaridade alguma, em sua maioria do sexo feminino, foram executadas em praça pública. O que gerava, ao mesmo tempo, medo e entretenimento para a população.
Um fato bastante curioso e no minimo suspeito é que os bens das acusadas eram confiscados, mesmo que fossem poucos. Estes eram usados para pagar seus algozes. No caso de esta mulher ser, de fato, algum tipo de curandeira ou parteira, ou mesmo só uma senhora que sabia usar a natureza ao seu favor, suas anotações eram guardadas. Isso mesmo, não eram queimadas ou destruidas, eram guardadas. Sabe o que guardamos? Coisas úteis.
É interessante também saber que a Inquisição começou no século XII, e enquanto isso, a primeira universidade européia foi fundada em Paris no ano de 1150. Naquela época, nessas instituições, estudava-se direito, medicina e teologia, e, claro, apenas homens eram permitidos. Tanto o estudo quanto a prática da medicina eram proibidos de serem exercidos por mulheres mesmo que informalmente.
As famílias ricas tinham médicos particulares, o resto da população ainda recorria a parteiras e curandeiras. Algumas delas eram pagãs por serem camponesas e ainda estarem distantes da grande influencia da igreja católica nas cidades, outras eram sim cristãs. Diante do juri eram todas demoníacas.
Podemos dizer que a Inquisição foi uma jogada extremamente eficaz para o patriarcado, pois, além de assassinar mulheres, roubando seus conhecimentos para usá-los ao próprio favor, eles conseguiram aniquilar também aquelas(es) consideradas(os) loucas(os), impertinentes ou irritantes. Hereges eram todos aqueles que iam contra os interesses da igreja, sendo estes poder absoluto e riqueza.
É inevitável reconhecer o quanto a inquisição foi tão útil para o estabelecimento do poder europeu, visto que esta perdurou por muito tempo. Durante o periodo de colonização, povos nativo-americanos e africanos tiveram suas tradições apagadas e/ou usurpadas com o mesmo pretexto de heresia.
Não existe um marco para “o fim da Inquisição”. Isso nos faz pensar se ela realmente acabou, quando vivemos em uma sociedade supostamente moderna (ou pós-moderna, para alguns) e, ainda assim, a intolerância religiosa só foi considerada crime no Brasil no ano de 1989, há apenas 30 anos.
Ainda hoje, terreiros são profanados, queimados e destruidos, como as bruxas foram. Povos indigenas até então preservados ainda são invadidos por religiosos e por suas missões, colonizadores. As plantas das nossas avós são esquecidas por nós mas cooptadas pela industria, que te vende produtos caros com aloe vera, enquanto na casa sa sua vizinha idosa, crescem pés de babosa puríssima e saudável em incontáveis caqueiras.
A supermacia branca, o capitalismo e o poder masculino ainda utilizam-se de técnicas inquisidoras. Vivemos ainda uma caça às bruxas e temos tanto pavor da mulher feia, velha e inadequada que carregamos dentro de nós.
Ainda há muito a ser discutido.
Ainda há muito a ser recuperado.