Ou Uma carta (muito longa) para as minhas irmãs
Não vou me aprofundar nas causas do atual debate sobre gênero no universo do Twitter, mas estou preocupada com uma linha de raciocínio frequentemente repetida por transativistas e seus aliados. É comum ouvir transativistas dizendo que sexo e gênero não são binários, citando a corporalidade (e fisiologia) das mulheres negras como prova da natureza não binária do sexo.
Já vi alegarem que mulheres Negras têm maior densidade mineral óssea (DMO) do que homens Brancos como justificativa para a inclusão de mulheres trans nos esportes femininos. Isso é falso. Enquanto Negros, em geral, têm maior densidade mineral óssea do que Brancos, essa generalização só é verdadeira entre indivíduos do mesmo sexo. Mulheres Negras têm maior densidade mineral óssea do que mulheres Brancas e homens Negros têm maior densidade mineral óssea que homens Brancos. Como Negros são o grupo “racial” mais geneticamente diverso do mundo, os estudos de densidade óssea são algumas das poucas áreas de pesquisa que ocasionalmente levam em consideração a etnia dos Negros em suas pesquisas.
Eu li afirmações ridículas de que mulheres Negras têm mais testosterona que outras mulheres, o que resulta em nossa suposta “masculinidade”. Transativistas desinformados, mas confiantes, não parecem perceber que a testosterona é necessária para o desenvolvimento feminino, e que mulheres Negras começam a puberdade mais cedo e desenvolvem caracteres sexuais secundárias femininas mais rapidamente do que outros grupos raciais. Mulheres Negras também têm níveis mais altos de estrogênio do que mulheres de outros grupos raciais. Devemos concluir então que mulheres Negras são naturalmente “mais” mulheres do que a maioria das mulheres? Uma omissão curiosa dessa linha de raciocínio.
Esses são os argumentos pseudo-científicos mais comuns em favor do agrupamento de mulheres Negras com mulheres trans. Mas os argumentos sociológicos são igualmente ridículos. Li alegações de que mulheridade e feminilidade são construções da “supremacia branca” impostas às mulheres Negras, como se as normas de gênero fundadas sobre o sexo que apareceram nas sociedades em todo o mundo por séculos tivessem sido introduzidas ao mundo por Brancos. Essa linha de raciocínio é uma mensagem política codificada (“dog whistle”) destinada a criar um reflexo condicionado em mulheres Negras socialmente progressistas. Sua função é silenciar mulheres Negras progressistas que são críticas de gênero. Também é uma forma de manipular emocionalmente mulheres Negras progressistas que não procuram a validação de homens “cis”, mas ainda sentem dificuldade em reconhecer e repelir o tom de submissão que algumas mulheres trans tentam nos impor. Os tweets abaixo (Nota da tradutora: os tweets originais estão linkados em cada uma das citações) são notáveis não apenas pelas afirmações que fazem, mas pela insinuação de compromisso moral e tom de responsabilização direcionado à mulheres Negras:
Você não precisa dar audiência pra ela. Então eu também não vou fazê-lo. Mas vou dizer o seguinte:
Então é melhor você tirar o nome de pessoas trans dessa sua boca suja.”
Não me surpreende que “outros” adotem prontamente essa posição. No entanto, me preocupa o número de jovens Negras que repetem essas declarações de forma acrítica; como um encargo retórico que somos condicionadas a aceitar sem questionar.
Alguns se referem a isso como “muling”, uma referência à observação de Zora Neal Hurston da exploração multifacetada que aflige mulheres negras há quase um século:
4) Como mulher negra retinta, vou dizer apenas uma coisa.
Ser uma aliada –e não um obstáculo– é nosso dever.
Uma quantidade exorbitante de mulheres Negras foram expostas a anos de ataques afromisóginos em forma de ridicularização e cyberbullying durante a adolescência, principalmente praticado por homens negros. É possível que exibições públicas de racismo e colorismo intragrupo vivenciadas por mulheres Negras tenham encorajado outros grupos a afirmarem suas próprias reivindicações de gênero se baseando em argumentos racistas. A abordagem mais comum e proeminente em sites como o Tumblr e o Instagram não se baseia no discurso feminista Negro. Portanto, não é de se admirar que meninas Negras concluam que o todo o mal causado pela afromisoginia realmente teve origem em sua incapacidade de atender a um padrão de gênero inexistente. Diferentemente de nossas antepassadas, essas meninas não entendem que a hipocrisia, abuso e manipulação que sofreram são características históricas da experiência social das mulheres Negras. Nossa capacidade de resistir a essa opressão, protegendo e regozijando nossos próprios modos de ser -os modos pelos quais as mulheres Negras expressam amor por si mesmas e entre uma e outra- significa que uma mulher Negra verdadeiramente realizada nunca olha para fora de si a procurar algo que só pode ser achado dentro. Os termos “black girl magic” ou “professional Black girl” podem ser novos, mas os princípios não são.
Esse déficit de conhecimento indica uma desconexão alarmante de toda nossa história, profundamente atravessada por sexo e gênero. Me assusta pensar em como isso afetará os esforços de defesa e autopreservação das mulheres negras no futuro.
Então, permita-me oferecer-lhe um curso intensivo e extraordinariamente condensado sobre a obsessão histórica dos EUA em controlar e explorar a Mulheridade Negra. Afirmo aqui que a mulheridade Branca é um clube que a mulher Negra jamais desejou ingressar, e que qualquer sentimento que possa ser confundido com “desejo” é um desejo pela igualdade racial, não pela experiência da mulheridade ou feminilidade Branca em si. A mulheridade de Brancas e Negras nos EUA se desenvolveu em conjunto, e sugerir o contrário é negar que a mulheridade é a experiência social de fêmeas humanas adultas. Não se pode transmitir ou retirar a mulheridade de pessoas que nasceram mulheres. A afirmação de que nós, mulheres Negras, fomos “negadas” da realidade social que vivemos significa que você simplesmente não reconhece a mulheridade Negra pelo que é. Ironicamente, a supremacia branca latente no argumento oposto nasce desse mesmo lugar.
Em 1851 Sojourner Truth proferiu um discurso que se tornaria um dos mais famosos no Movimento Abolicionista e pelo Sufrágio Feminino. “Não sou eu uma mulher?” é um discurso em particular comovente para mulheres Negras, por ser um dos primeiros na história dos EUA a reconhecer o posicionamento ímpar da mulher Negra.
O problema desse discurso é que Sojourner Truth jamais o proferiu.
Ao menos não a versão publicada por Frances Gage no jornal New York Independent, dez anos após o discurso de Truth. A versão de Gage inclui frases jamais ditas por Truth, e foi escrita no dialeto de uma pessoa escravizada sulista, na interpretação distorcida de Gage.
Sojourner Truth era de Nova York/Nova Amsterdã. Ela falava um dialeto holandês (hoje extinto). Ela só aprendeu inglês aos nove anos. Ela era uma oradora habilidosa, e orgulhosa da sua fluência em inglês. É improvável que Truth tenha alguma vez pronunciado frases como “Aqueles homi ali diz que as muié percisa de ajuda prá subi em carruage, e que deve sê carregada prá travessá as vala, e que merece o mió lugar onde tiver”, uma das primeiras linhas do discurso na versão de Gage. [Nota de tradução: No trecho original, Frances Gage alterou a grafia das palavras para simular o dialeto do sul dos Estados Unidos, “Dat man ober dar say dat women needs to be helped into carriages, and lifted over ditches, and to have de best place eberywhar.” [A opção pelo dialeto caipira brasileiro vem no intuito de visibilizar um dialeto estigmatizado que costuma ser traduzido para a norma culta em obras literárias.]
Não temos como saber ao certo por que Gage escolheu deturpar o discurso de Truth. Sabemos que Gage e Truth se conheciam: Gage apresentou Truth como a principal palestrante no evento de 1851 em que Truth fez seu discurso. Muitos abolicionistas brancos, embora contra a escravidão, mantinham em secreto visões profundamente racistas sobre as habilidades naturais das pessoas negras. Gage pode ter pensado que não seria plausível que alguém antes escravizada poderia ser uma oradora talentosa. Talvez Gage tivesse apenas tomado a premissa da licença poética.
O refrão “Não sou eu uma mulher?” aparece várias vezes ao longo da versão de Gage do discurso, mas na versão mais antiga Truth jamais levanta essa indagação.
Na verdade, imediatamente depois de solicitar a atenção do público, Sojourner Truth começa o discurso dela ao declarar:
“Eu sou os direitos da mulher.”
A versão de Gage tenta desafiar as normas de gênero da delicadeza feminina, ao justapor a vida de trabalho duro de Truth sobre os padrões de feminilidade afirmados por homens Brancos na plateia. O problema é que Truth nunca falou de nenhum dos padrões femininos Brancos. Não eram uma preocupação expressa dela, mas sim de Gage.
Por que é importante saber isso?
As duas mulheres defendiam as mesmas causas, mas com motivações ligeiramente distintas. Gage fez questão de usar a voz de Truth para priorizar as suas próprias motivações: o desejo de ser liberta dos confins da mulheridade Branca. Ela não hesitou em contar com argumentos racistas para atingir esse objetivo. Por várias razões, a versão de Gage do discurso ganhou destaque e se tornou a versão que hoje a maioria das pessoas conhece e ama. No imaginário coletivo, agora ficou incrivelmente difícil desvincular a versão de Gage da realidade. Embora seja uma obra de ficção, tenho certeza de que há quem argumente que a versão de Gage tenha seus próprios méritos. Ainda assim, esse jeito de ser aliada abafou retoricamente Truth nas décadas seguintes, descentrando-a da sua própria história. Não sou eu uma mulher? é uma declaração da mulheridade Negra a partir da imaginação de uma Sinhá Branca.
Isso soa semelhante a um fenômeno recente?
Quando falo da natureza indissociável da mulheridade Americana Negra e Branca, assunto que espero explorar mais no meu podcast a ser lançado (The Doll Parts), estou falando de duas identidades, calcadas na mesma realidade material, forjadas em conjunto para moldar uma sociedade capitalista fundada sobre a raça. A mulheridade Branca não é um clube que qualquer outro grupo de mulheres possa, em teoria, lutar para “entrar”. É simplesmente a condição social de fêmeas humanas adultas classificadas como Brancas, em todos os seus privilégios e todas as suas dores. Alguém que não seja mulher vai vê-la como certo tipo de clube social exclusivo, mas a maioria das mulheres — Negras ou Brancas — também vão vê-la como uma espécie de gaiola. Não é difícil de enxergar por que algumas mulheres Brancas resistem à redução dessa identidade a uma noção, um sentimento, um impulso ou uma performance. Esses clichês da feminilidade/senhoria Branca são comuns entre mulheres trans, drag queens e cross dressers, Negras ou Brancas. Curiosamente, os maneirismos, os sotaques, as entonações e o jeito “atrevido” associados com as mulheres Negras são também comportamentos muitas vezes imitados. Que masculinidade, que nada.
Mas para além do debate contemporâneo em torno do gênero, quero fundamentar a nossa identidade feminina Negra no nosso passado coletivo.
Poucas pessoas percebem que a escravidão nos EUA não começou como um sistema permanente fundado sobre a raça. Sim, escravos africanos e servos contratados foram trazidos às colônias, mas eles podiam ganhar a sua liberdade e estabelecer-se como donos de plantações. Homens Brancos e Negros muitas vezes trabalhavam lado a lado para ganhar a sua liberdade. Conforme os frutos do capitalismo tomavam conta das colônias, crescia o desejo de uma força de trabalho permanente, facilmente identificável.
Em 1662, Virgínia foi uma das primeiras colônias a identificar legalmente uma subclasse permanente: isso aconteceu por meio do útero das mulheres Negras. A condição escrava era determinada por meio da identidade da mãe, não do pai. Qualquer criança parida por uma mulher escravizada também era sujeita à escravização perpétua.
Um ano depois, as mulheres Brancas foram notificadas: Após 1663, qualquer casamento entre uma mulher Branca e um homem escravizado resultaria na escravização da referida mulher Branca e da sua prole. Portanto, diferentes formas de controle foram usadas em conjunto para moldar uma nova ordem social. Se a natureza feminina da mulher Negra fosse tão enigmática, como foi que os donos de plantações em todas as colônias sabiam que podiam construir todo um sistema econômico a partir do ventre de um grupo de mulheres?
As mulheres escravizadas tinham plena consciência de como a sua fertilidade seria violentamente explorada para sustentar a economia escrava, e elas resistiram. Como as mulheres nos séculos anteriores a elas, as mulheres escravizadas praticavam uma variedade de métodos de controle de natalidade e de interrupção da gravidez, e os compartilhavam com as mulheres de toda a comunidade. Um médico sulista frustrado uma vez reclamou da “tendência antinatural” da mulher escravizada a “destruir a sua prole”, lamentando que famílias inteiras de mulheres não conseguiram ter filhos. Elas resistiram. Elas ajudaram umas às outras a resistirem. Elas muitas vezes escolheram romper a linhagem em vez de enriquecer fazendeiros Brancos. O romance de Toni Morrison, Amada,toma por base a história verídica de Margaret Garner, uma mulher escravizada que matou suas crianças para poupá-las da brutalidade da vida da qual ela havia escapado. O julgamento dela chocou a nação quando ela admitiu tais atos, sem remorso.
Engenhosidade, irmandade e resistência são características da mulheridade Negra.
Somos os direitos das mulheres.
Irmãs, não nos esqueçamos da Lei Tignon no estado de Louisiana dos séculos XVIII e XIX. Preocupado com as mulheres racializadas (em geral filhas de homens brancos com mulheres racializadas escravizadas ou libertas) que apreciavam a sua própria beleza feminina, o prefeito as proibiu de deixar as suas casas sem que amarrassem e ocultassem os seus cabelos da vista do público. Isso se deu para reforçar a ordem social, e mitigar o espetáculo “perturbador” das mulheres Crioulas estilosas. Em resposta, as mulheres Crioulas passaram a vestiar tecidos coloridos decorados com miçangas e joias. O Tignon tornou-se um acessório de moda que ainda é adotado por muitas mulheres Afrodescendentes até hoje. Para o bem ou para o mal, a vigilância das práticas de adorno únicas da mulher Negra ainda é um esporte cultural nos Estados Unidos. Das tranças aos preenchimentos labiais, a nossa estética é criticada e depois copiada. Enxergamos isso, mesmo quando outros optam por não fazê-lo.
Engenhosidade, irmandade e resistência são características da mulheridade Negra.
Somos os direitos das mulheres.
No período anterior à Guerra Civil Americana e para além dele, as mulheres Negras tiveram a função principal de babás e amas de leite das mulheres Brancas. Não se engane, tal trabalho é categoricamente explorador para uma mulher escravizada. Mas a prática era um lugar paradoxal de distância social e intimidade entre mulheres Negras e Brancas:
Por outro lado, o poder relativo das mulheres escravistas lhes concedia opções de usar ou não uma ama de leite, e ocasionalmente (por uma variedade de razões) as mulheres brancas amamentavam bebês escravizados. Também as mulheres escravizadas às vezes compartilhava o seu leite materno entre si num exemplo de processos de cuidados maternos mais comunitários… Olhando de fora, Fanny Anne Kemble observou, talvez com um tanto de arrogância, como as hierarquias raciais do sul não conseguiu impedir que as mulheres brancas “pendurassem os seus bebês nos peitos das negras.”
Que prática estranha para um grupo de mulheres supostamente “excluídas” das mulheridade. Cada criança Branca alimentada por uma mulher Negra é prova da hipocrisia embutida na supremacia Branca. Nós sabemos disso. Não tivemos motivos para aspirar a isso.
Engenhosidade, irmandade e resistência são características da mulheridade Negra.
Somos os direitos das mulheres.
O zelo do movimento sufragete do final do século XIX se estendeu para o século XX, com as organizações sufragetes se desenvolvendo em cidades de todo o país. [Nota de tradução: O termo suffragette se refere a mulheres que lutaram pelo sufrágio feminino por meio da ação direta e da desobediência civil, tática diferente da adotada pelas sufragistas. O filme de 2015 é sobre As Sufragetes.] O Movimento do Clube da Mulher (Women’s Social Club Movement) refletia o desejo crescente de influenciar a política pública, dando um senso de urgência à luta pelo direito ao voto. Embora alguns desses clubes sociais fossem integrados, a maioria não era. Isso não impediu a atividade política das mulheres Negras, que têm se organizado entre si desde o fim dos anos 1700. Ida B. Wells-Barnett, a jornalista mais conhecida por documentar os horrores do linchamento no sul dos Estados Unidos, é provavelmente a mais notável sufragete Negra. Ela também é a fundadora do Clube do Sufrágio Alfa (Alpha Suffrage Club), um dos primeiros clubes exclusivos para sufragetes negras. Ainda que ela tenha participado de atividades conjuntas com sufragetes brancas, ela se recusou a ser preterida para acomodar o racismo das feministas Brancas moderadas. Por exemplo, durante a marcha das sufragetes de 1913, Wells-Barnett se recusou a marchar no fundo da procissão tal como as sufragetes Negras foram convidadas a fazer. A Drª. Rosalyn Terborg-Penn da Morgan State University identificou muitas mulheres Negras como Wells-Barnett; mulheres que respondiam ao sexismo e ao racismo criando um porto seguro político e social para as suas irmãs. É provável que boa parte das mulheres Negras americanas faça parte ou conheça alguém que participa de uma organização de mulheres Negras fundada durante a era do clube social. As irmandades Negras mais populares surgiram durante esse período, a partir de missões e valores explicitamente vinculados aos alicerces estabelecidos por sufragetes Negras.
Engenhosidade, irmandade e resistência são características da mulheridade Negra.
Ida B. Wells-Barnett eram os direitos das mulheres.
Apesar de todas conhecermos Rosa Parks como a senhora discreta que se recusou a ceder o seu assento em um ônibus segregado, algumas de nós a conhecemos como a feroz investigadores de agressões sexuais que arriscou o próprio bem estar para contar as histórias de mulheres Negras vítimas de estupradores. A própria Parks quase foi vítima de estupro pelo vizinho em 1931. Tenha em mente que homem Branco algum havia sido condenado por agressão sexual a uma mulher Negra até o caso Betty Jean Owens em 1959. Parks trabalhou tanto pelo seu gênero quando o fez pela sua raça. Seus esforços são diretamente responsáveis pelo reconhecimento da vulnerabilidade sexual da mulher Negra perante a lei. As mulheres Negras do passado não estavam preocupadas em substituir as mulheres Brancas aos olhos dos homens Brancos. Elas estavam focadas em proteger mulheres Negras dos olhos dos homens Brancos e da depravação de uma cultura do estupro que violou mulheres Negras impunemente durante gerações. A feminilidade Branca não ampararia as mulheres Negras disso, pois as mulheres Brancas também estavam sujeitas à violência fundada sobre o sexo, uma violência de gênero.
Engenhosidade, irmandade e resistência são características da mulheridade Negra.
Rosa Parks eram os direitos das mulheres.
O problema de muitos ativistas trans mais jovens de todos os gêneros que mobilizam a afromisoginia é o pressuposto errôneo de que as mulheres Negras aspiram à mulheridade Branca. Eis o fundamento lógico do argumento “você também é uma outsider”. De fato, as mulheres negras desejaram as migalhas do capitalismo. Mulheres negras desejaram as disposições e proteções de um patriarcado comandado pelos seus próprios homens. Mas as mulheres negras jamais desejaram tornar-se mulheres brancas, nem nunca precisaram disso. Por quê? Pois até muito recentemente, as mulheres Negras estiveram mais intimamente envolvidas nas vidas das famílias Brancas como domésticas do que qualquer outro grupo nos EUA. Pode-ser argumentar que a relação entre as mulheres Brancas e suas domésticas Negras era mais íntima do que aquela entre marido e esposa. Não se permitia às mulheres toda a gama de autoexpressão na esfera pública, e isso foi negado a muitas em suas próprias casas, também. A gama de emoções da mulher Branca eram postas a nu quando ela estava “sozinha”; muitas vezes “sozinha” significava na presença de uma mulher Negra.
Toni Morrison explicou a ambivalência que as mulheres negras sentiam em relação à condição das mulheres brancas no seu texto de 1971 submetido ao New York Times: “As mulheres negras ‘têm sido capazes de invejar as mulheres brancas (pelas aparências, pela vida fácil, pela atenção que parecem receber dos seus homens); elas podiam temê-las (pelo controle econômico que estas detinham sobre as vidas das mulheres negras) ou mesmo amá-las (como era possível para mammies e trabalhadoras domésticas); mas as mulheres negras têm achado impossível respeitar mulheres brancas. Quero dizer que elas nunca tiveram o que os homens negros têm tido pelos homens brancos — um sentimento de admiração por suas realizações. As mulheres negras não possuem uma admiração duradoura pelas mulheres brancas como pessoas competentes e completas. Seja ao competir com elas pelas poucas vagas profissionais disponíveis para mulheres em geral, ou levando a sujeira delas de um lugar para outro, elas as consideravam crianças obstinadas, crianças bonitas, crianças malvadas, crianças feias, mas nunca como verdadeiras adultas capazes de lidar com os problemas reais do mundo.”
As palavras de Morrison são difíceis de digerir, em especial se descontextualizadas da época em que foram escritas. Nesse momento da história, a maioria das mulheres Negras dos EUA não estavam muito distantes de alguém que trabalhou na casa de uma mulher Branca (isso quando elas mesmas não haviam sido domésticas). A relação entre trabalhadoras domésticas e suas empregadoras possui nuances que a maioria de nós teria dificuldade para entender. Junte isso a uma cultura que normalizava a antinegritude de maneiras que hoje estão menos comuns, e eis que se tem uma relação caracterizada por necessidade mútua, mas desprezo tácito.
Então não era a mulheridade nem a feminilidade de onde as mulheres negras eram “excluídas”. Era a Senhoria, ou a condição de Sinhá (Ladyhood). Um termo que descreve os privilégios e penitências impostas sobre mulheres de uma casta superior. Na verdade, era a mulheridade que as feministas Brancas lutavam para exaltar, ansiando escapar da condição de senhoras/sinhás. Toni Morrison escreve, “Até mesmo a palavra ‘senhora’ é um anátema para feministas. Elas insistem no rótulo de ‘mulher’ como declaração da sua rejeição de toda aquela meiguice, desamparo e modéstia, vistas por elas como características que serviram unicamente para reforçar a sua dependência.”
A crença moderna de que as mulheres Negras levaram vidas apenas minimamente conectadas à experiência social de mulheridade e feminilidade constitui uma falsidade sem bases históricas. A estadista e candidata a presidente Shirley Chisolm disse a famosa frase, “Como uma pessoa negra, o preconceito racial não me é desconhecido. Mas a verdade é que no mundo da política eu fui discriminada com muito maior frequência por ser mulher do que por ser negra.” Ela posteriormente discutiu a urgência das necessidades das mulheres por igualdade de salários e acesso igual a oportunidades. Ela criticou a ideia de que as mulheres que desejavam independência financeira e autonomia sociopolítica eram “pouco femininas” ou “excêntricas”.
Que estranho posicionamento para alguém supostamente “excluída” da feminilidade.
Engenhosidade, irmandade e resistência são características da mulheridade Negra.
Shirley Chisolm eram os direitos das mulheres.
Além de ser a-histórica, abusiva e racista, é profundamente sexista alegar que as mulheres Negras eram masculinas simplesmente por não encarnar certa ideia abstrata da feminilidade Branca.
Vejam, nos EUA os homens Negros têm tido uma relação contenciosa com a masculinidade Branca. O medo da proeza sexual masculina Negra levou a tumultos e destruição das comunidades Negras por quadrilhas Brancas em mais de uma ocasião. Alguns homens negros das forças armadas sobreviveram à guerra, só que depois morreram enforcados pelos frágeis egos masculinos Brancos. Historicamente, os homens adultos Negros, até os nossos mais velhos, eram por vezes referidos como “meninos” em vez de seus nomes próprios. Indivíduos mais respeitosos podem ter chamado esses homens pelo primeiro nome, mas raramente eles eram referidos como “senhor” (mister/sir) pelos seus colegas Brancos. Imaginem isso?
Uma longa história de opressão inflexível moldou a identidade de gênero dos homens Negros do passado e do presente. A despeito disso, nunca ouvi ninguém cogitar que a masculinidade foi negada aos homens negros por conta da opressão. Pelo contrário, a masculinidade Negra é exagerada, adorada, reverenciada e nos simpatizamos com ela; faz-se vista grossa para os seus elementos mais flagrantes (vide a afromisoginia desenfreada) como compreensíveis para um grupo de homens feridos psicologicamente pela antinegritude.
Muitos concordariam com a noção de que a supremacia branca tornou difícil para os homens Negros prosperarem nos Estados Unidos: sustentar suas famílias, proteger suas mulheres e crianças de danos, participar plenamente do processo democrático, desenvolver uma rede de amigos influentes, explorar as mulheres na mesma medida em que homens brancos podiam, ou adquirir e legar uma riqueza multigeracional: todas características da masculinidade Americana tornada menos acessível pelo racismo estrutural.
Ainda assim, não sou capaz de imaginar uma circunstância em que um homem trans de qualquer raça iria repreender, manipular psicologicamente (gaslight) ou desafiar um homem Negro quanto à sua masculinidade como uma justificativa por analogia para o desejo do primeiro por aceitação e reconhecimento. Sabemos que a condição do homem Negro e do Branco difere de algumas maneiras, mas a masculinidade Branca não é o referencial que usamos para entender a masculinidade Negra.
Por que tal reverência é negada à feminilidade Negra?
Quando ouço pessoas cogitando que as mulheres negras são masculinizadas como prova da construção social do gênero, escuto a continuidade de uma longa tradição de “outros” que usam e abusam da mulheridade Negra para ganhos pessoais. É o argumento de alguém desenraizado da memória histórica feminista Negra.
Mulheres Negras, vocês não serão capazes de se defender se não fundamentar a sua realidade na sua própria história. Igualmente importante, você deve salvaguardar essa identidade da exploração e do interesse de qualquer grupo que tente jogar o “Não sou eu uma mulher” na sua cara. Pois quando os objetivos deles forem alcançados e o movimento deles terminar de nos usar para avançar sua causa, o que será de nós?
Sabemos que as regras não foram feitas para nós. Nunca dependemos disso para validar a nossa feminilidade ou a nossa mulheridade. Nossa exclusão daquelas regras não significa uma dívida em forma de aliança a qualquer pessoa brigando por um lugar na mesma mesa de onde temos tido a satisfação de nos afastar quando acaba mais uma jornada de trabalho. Quem quiser, que se ajoelhe e ore no altar da feminilidade Branca idealizada. Não deixe ninguém supor que as mulheres Negras coletivamente estão se ajoelhando ao lado deles.
Original por The doll parts podcast, 15/07/2020
Parte do texto traduzido por Xis Beatriz