Próximo ao ponto de controle de Qalandia na Cisjordânia, eu olho enquanto duas soldadas israelenses disparam gás lacrimogênio em uma multidão de jovens manifestantes palestinos. Uma bomba ricocheteia, atingindo um jovem pelo braço. A soldada que estava atirando começa a rir. Sua colega, orgulhosa, dá tapinhas no ombro dela, enquanto ambas chegam para reabastecer suas armas.
Naquele momento, sinto as consequências repugnantes da opressão familiares a qualquer palestino. Mas também me sinto traída como mulher. Eu havia enfrentado essas soldadas de mulher para mulher, ingenuamente pensando que era para estarmos unidas na luta contra o patriarcado. Mas aqui estou eu, vendo-as reforçá-lo.
Como observa a escritora feminista bell hooks, o patriarcado é um sistema completo de dominação. A luta feminista é contra não apenas o sexismo alarmante do patriarcado, mas também todas as formas de opressão.
É uma mensagem que há muito tempo eu absorvia a partir dos ensinamentos da minha própria mãe, que me guiava constantemente a praticar um feminismo inclusivo e interseccional. Ela muitas vezes avisava que eu deveria reconhecer os poderes da dominação em todas as suas manifestações, inclusive dentro da sociedade palestina, caso eu aspire a implementar um feminismo genuíno.
Através dos seus ensinamentos e das minhas próprias experiências, ficou claro para mim que o sionismo, da forma como tem sido perpetuadamente expresso na Palestina, contradiz o âmago do feminismo ao executar suas políticas opressoras.
Quando escuto alguém defendendo o sionismo e ao mesmo tempo se identificando como uma feminista, minha mente se volta a imagens de ataques noturnos, à tortura das crianças e à demolição dos lares. Mas também penso naquelas mulheres soldadas que casualmente participam de tudo, incluindo a ex-soldada israelense e “Mulher Maravilha” Gal Gadot, que expressou seu amor e apoio pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) enquanto eles bombardeavam e matavam milhares de palestinos em Gaza, em 2014.
Ser feminista e sionista é uma contradição em termos, porque a feminista sionista é cúmplice na propagação da supremacia e da dominação sobre um povo por um lado, e por outro lado pede o fim do patriarcado.
De fato, a feminista sionista é uma reminiscência de outro tipo de feminista: a feminista branca. As mulheres não brancas historicamente têm sido marginalizadas dentro do movimento feminista, principalmente devido a mulheres brancas que abafam as questões de justiça racial e que tiram a ênfase das opressões específicas enfrentadas por pessoas não brancas por causa da sua raça, etnicidade e classe. Essa negligência muitas vezes foi justificada em nome de uma irmandade coletiva [collective sisterhood]. Mas conforme explica hooks de forma eloquente, “Enquanto as mulheres usarem classe ou raça ou poder para dominar outras mulheres, uma irmandade feminista não pode se realizar plenamente.” Basicamente falando, o feminismo não pode apoiar o racismo, a supremacia e a dominação opressora em qualquer forma.
O sionismo muitas vezes é pregado como uma chamada por uma pátria judaica para garantir que os horrores da opressão antissemita não ocorram de novo. Nessa narrativa simplificada, entretanto, o que se oculta é o fato de que essa busca por uma pátria foi iniciada por uma agência colonizadora, o que significou necessariamente se apropriar da terra e da cultura, e despojar as pessoas que viviam na região há milênios. Esses roubos de terras e essas violações à dignidade humana e ao direito internacional continuam regularmente em nome do sionismo, perpetuando o sofrimento de toda uma população e a negação dos seus direitos humanos básicos na premissa de etnia e raça. É por isso que eu estou cansada e desconfiada da feminista sionista. Ela ignora deliberadamente que o sionismo só avançou através de inúmeras violações de direitos humanos.
Recordo de momentos em que eu, eu mesma, fui detida pelas forças israelenses depois de protestar contra um soldado que disparando gás lacrimogênio diretamente em crianças palestinas. Enquanto a degradação era esperada, eu ficava desconcertada e irritada pelas mulheres soldadas. Eram elas que cumpriam minha detenção, colocando e tirando as algemas, me brutalizando, xingando palavrões e não dizendo nada enquanto os homens soldados verbalmente e sexualmente me assediavam, me chamando de “puta” e “cachorra”. As mulheres ficavam tímidas por um momento, só para retornar e rir ao lado de seus colegas.
O feminismo surgiu para lutar contra o silenciamento e a exploração das mulheres, enfrentando os poderes que suprimem e controlam um segmento inteiro da população. O que continua a acontecer na Palestina sob a bandeira do sionismo é exatamente isso, o silenciamento de uma população inteira e a proibição do protesto diante da anexação territorial violenta.
O Israel está envolvido no encarceramento em massa dos palestinos e no sitiamento de vilas e cidades inteiras. Os palestinos foram ocupados por mais de 70 anos, e palestinos com cidadania israelense enfrentam mais de 50 leis discriminatórias.
Denominar-se uma feminista sionista significa conceder na prática apoio à dominação patriarcal, pois o Israel encarna os mesmos papéis e técnicas que há muito foram, e continuam a ser, usados contra mulheres.
Ser uma sionista hoje significa dar apoio não apenas à ideia de um estado judaico e uma soberania judaica, mas também às políticas concretas do Israel conforme se manifestam no território. Mais especificamente, o sionismo significa a manutenção das liberdades e dos privilégios dos judeus israelenses às custas dos palestinos, inclusive aqueles na diáspora global que anseiam retornar.
É quando levo em consideração tudo isso cima que me vejo de volta a hooks, quem escreveu: “uma genuína política feminista sempre nos conduz da escravidão para a liberdade, da falta de amor para a amorosidade”. O feminismo não pode ser seletivo. Sua estrutura vem da verdadeira e absoluta libertação não apenas das mulheres, mas de todos os povos. Por isso que o sionismo e o feminismo não podem se mesclar. Uma feminista que não seja também anticolonial, antirracista e contrária às várias formas de injustiça está seletivamente e opressivamente a serviço dos interesses de um único segmento da comunidade global.
A alternativa que sugiro à feminista sionista é reconhecer e se juntar às lutas contra a opressão sistêmica. Seja corajosa o suficiente, seja firme contra as muitas faces da subjugação e da desigualdade e abrace o feminismo como uma força abrangente e formidável que ele é capaz de ser.
Mariam Barghouti é escritora e mora em Ramallah. Você pode segui-la no Twitter, @MariamBarghouti.
Original: Mariam Barghouti para Forward, 27/11/2017, https://forward.com/opinion/387675/no-you-cant-be-a-feminist-and-a-zionist/
Na imagem: Soldadas da infantaria das Forças de Defesa de Israel (IDF) em treinamento.