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Hora de colocar o feminismo para dentro de casa

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Hora de colocar o feminismo para dentro de casa
Hora de colocar o feminismo para dentro de casa

É particularmente terrível este momento e o que venho escrever agora a todas as mulheres que me leem. Hoje, março/2020, estamos em meio a uma pandemia de um vírus chamado COVID-19, que tem embora tenha baixa letalidade, tem alta transmissibilidade e pode portanto contaminar um infindável número de pessoas simultaneamente colapsando os sistemas de saúde e portanto deixando o principal grupo de risco — idosos, grávidas, puérperas, hipertensas, diabéticos, imunodeprimidos em geral — suscetíveis a ficarem sem atendimento e vir a morrer. E pessoas estão já estão morrendo. Aos milhares. As previsões são terríveis. O mundo como conhecemos pode estar em desconstrução.

Precisamos então ficar em casa. Não sair exceto por necessidade absoluta. Aulas suspensas. Comércios fechados. Apenas o essencial em funcionamento. Quarentena. De repente, a vida não é mais como era antes e estamos todos confinados.

Confinadas.

Eu venho aqui falar com todas as mulheres sobre esse terrível momento em que vivemos, cuja gravidade vai muito além da pandemia.

Alguém disse (e supõe-se que seja Simone de Beauvoir) que basta uma crise para que os direitos das mulheres comecem a ser retirados. E nesse momento, são elas que enfrentarão os maiores desafios.

O desafio de estar confinada com seu parceiro: pela primeira vez, talvez, muitas viverão 24 horas convivendo com seus parceiros. Homens que foram criados para estar no mundo, na rua, não restritos no interior de um lar. A casa sempre o cativeiro feminino e para ele fomos criadas sem questionar. Mas os homens… são como leões enjaulados. Eles se ressentem. Eles se incomodam. A rotina de uma casa quase sempre os enerva. Eles se recusam a se integrar, a participar, porque não é para isso que foram criados. Seu lugar nunca foi o lar. E agora muitas mulheres conhecerão de verdade quem são seus parceiros. Eu costumo dizer que há dois momentos em que se conhece com quem nos relacionamos: quando temos um filho e quando nos divorciamos. Agora posso adicionar um terceiro momento. Durante uma pandemia.

A agressividade masculina será um desafio. Homens não são treinados para ter equilíbrio emocional. Eles são treinados para resolverem tudo para ontem, para já. Usando de força se for preciso. E agora estarão irritados. Entediados. Vão querer ordem, silêncio, carinho, sexo. Duas refeições diárias. Casa arrumada. Vão se recusar a fazer sua parte sistematicamente. Afinal, você também está em casa “sem fazer nada”. E isso é trabalho de mulher, não é mesmo? O que custa?

A exploração do trabalho doméstico elevado à enésima potência.

As adições. O alcoolismo. Agressões. Abusividades físicas, emocionais, psicológicas. O abuso de empatia. Chantagem emocional. Estupro marital. 24 horas por dia em que você será testada e poderá perceber claramente como a relação entre um homem e uma mulher é pautada na hierarquia. Naquele que manda e naquela que obedece. Uma relação de hierarquia que pode até ser camuflada com o trator do cotidiano que nos esmaga mas que ficará cristalina à medida que todas essas camadas de responsabilidades externas nos são retiradas. À medida que o medo bate à porta. A insegurança, a depressão. Olhe para o seu companheiro e finalmente veja quem ele é

O cuidado com os filhos. Pela primeira vez, muitas mulheres ficarão integralmente no cuidado dos seus filhos sem poder contar com nenhuma rede de apoio ou alívio, seja a escola, a creche, a casa dos parentes ou amigos, a pracinha. 24 horas de crianças demandando o dia inteiro. Demandando atenção, carinho, cuidado, comida, asseio. E mulheres sendo pressionadas para fazer o papel de professoras, pedagogas, animadoras. Enquanto mantém a casa em ordem. A roupa limpa. A comida pronta na hora. Muitas vezes enquanto o marido assiste e reclama do sofá sem mover nem um dedo. Muitas mulheres estarão também em home-office tentando fechar essa conta impossível: não dá pra trabalhar com a presença demandante dos filhos. Alguma coisa vai ter que preencher essa lacuna e quase sempre isso serão as telas. Da televisão, eterna babá, até sua versão repaginada na forma de tablets e smartphones. E não cultive culpa por isso.

A vida acontecendo. Veja filmes, descanse, cozinhe coisas gostosas, durma, jogue, tome um vinho, transe. E você pensa: “por que minha vida parece mais cansativa do que nunca?”. E eu respondo, porque você nunca esteve tão sozinha. Concretamente. Literalmente. Porque você nunca será tão exigida e explorada como agora.

O medo de passar fome. O medo da falta absoluta de uma renda para quantas e quantas famílias. Mulheres que em sua maioria ganham seu sustento na informalidade. Que criam seus filhos sozinhas sem nenhum apoio. Que passarão fome com suas crias, à míngua, sem nenhum apoio. Que poderão ser despejadas de suas casas. Ficar sem luz, sem água. A sanidade mental indo pro ralo. Nenhuma possibilidade de acesso aos sistemas de saúde. Aqui, agora. Isso não é o vírus. É o abandono do Estado mostrando sua cara nesse momento de catástrofe onde mulheres e crianças nunca vão primeiro.

Famílias que estarão confinadas em ambientes minúsculos, insalubres. Famílias que não tem acesso à água, que dirá álcool gel. Famílias na miséria. Famílias abusivas, violentas, assediadoras. Trancafiadas.

Mulheres que desaparecerão e nunca saberemos o destino. Mulheres sendo consumidas na pornografia como nunca. Mulheres sendo estupradas ao vivo pela internet e gerando lucro para seus captores. Mulheres que se prostituem na rua em plena pandemia porque não podem deixar de levar comida para casa.

Crianças. Expostas mais do que nunca à violência dos seus pais. Que resolvem tudo no grito. No tapa. Crianças em cárcere. Sendo abusadas sexualmente. Sendo engravidadas pelos homens da sua família que deveriam protegê-las. Sendo abusadas psicologicamente, torturadas. Crianças com fome. Subnutridas. Morrendo.

Mulheres, aprendemos que enquanto uma mulher não for livre, nenhuma mulher será. E essa liberdade hoje tem muito mais a ver com sermos capaz de quebrar os grilhões que nos prendem a essa relação de servidão doméstica, de cuidado exclusivo dos filhos, de abandono do Estado. Uma forte tempestade se avizinha, dentro dos seus lares olhem e vejam. Tirem a venda dos olhos porque seremos nós as sacrificadas se tudo ficar difícil demais. Mulheres e crianças primeiro, porque são as primeiras a serem jogadas no abismo.

Resistam.

Na medida do possível. Os homens terão agora a oportunidade de mostrar se realmente se importam com suas mulheres. Estarão em casa, nas mesmas condições. Cumprirão eles as mesmas obrigações? De cuidado com a casa, com os filhos? Serão capazes de enxergar o peso do trabalho doméstico sobre os ombros de uma mulher? Serão capazes de respeitar o corpo e às necessidades da sua companheira?

Resistam.

Não é sua responsabilidade manter o equilíbrio emocional das pessoas que te cercam. Você tem sua sanidade mental para cuidar. Você tem sua saúde e a saúde dos seus filhos para zelar. Não é sua responsabilidade acumular o cuidado com todas as pessoas que te cercam. Você tem limites. Não é sua tarefa exclusiva ficar acumulando técnicas para manter a casa em ordem, filhos felizes, marido satisfeito. Agora mais do que nunca é hora de dividir esse fardo. Responsabilizem seus companheiros pela parte que os cabe.

Resistam.

À exploração doméstica, econômica, emocional, de cuidados. Ao abuso verbal, de empatia, sexual. Serão muitos os desafios.

Resistam aos chamados da mãe perfeita. Você não tem que fazer das tripas coração para dar conta de demandas escolares, pedagógicas, de entretenimento. Faça o que você pode. Apenas proteja seus filhos, aninhe-os, curta-os. Talvez seja a primeira vez que você pode estar com eles tão proximamente e não sabemos o que é desse mundo que nos espera quando isso tudo acabar.

Protejam-se.

Protejam-se dos homens. Desconfiem. Saibam que a violência masculina está sempre à espreita.

Cuidem-se.

Priorizem-se nessa jornada. Não se coloquem em último lugar no cuidado, no descanso, na alegria. Cuide do seu corpo, da sua mente, do seu coração. Não se permitam magoar demais.

Unam-se.

Ajudem outras mulheres. Apoiem-nas. Agora é a hora das mulheres privilegiadas por condições de classe e raça fazer valer o seu discurso feminista e fortalecer um cinturão de proteção para mulheres negras e pobres e suas crianças. Que serão arrasadas por essa situação que vivemos.

É muito fácil ser feminista com palavras de ordem nas redes sociais e nas camisetas. Agora a vida pede que a gente leve o feminismo de verdade para nossas relações, para nossas vidas, porque hoje isso pode ser o que nos resta para nos salvar. A tábua em que iremos nos segurar para não afundar de vez. Nos valores que ditam que mulheres devem ser livres da dominação masculina.

Estamos em meio a uma tempestade. Mas essa tormenta vai passar. Trinquem os dentes e finquem os pés para não serem levadas. Agarrem seus filhos o mais forte que puderem. Isso vai passar. E temos que resistir para não sucumbir. Nós podemos sim passar por isso e quem sabe sair mais fortes do outro lado. Não tenham medo.

Resistam. Protejam-se. Cuidem-se. Unam-se.

E sobrevivam. É o que nós mulheres melhor sabemos fazer. Coloquem o feminismo para dentro de casa, e usem como escudo.

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