livro Julie Dbindel

 Julie Bindel é categórica e não deixa espaço para relativizações: o feminismo é um movimento de libertação das mulheres do patriarcado.

O título “Feminismo para mulheres” poderia parecer redundante ou auto evidente em outros tempos. Afinal, se não fosse para mulheres, para quem seria o feminismo? Essa é uma pergunta legítima, mas que não encontra eco na recente narrativa sobre feminismo, que habita as redes sociais e discursos acadêmicos. Certas obviedades estão sendo postas à prova nos últimos dez anos, com a popularização da teoria queer nos estudos de ciências humanas e sua total aceitação nas mídias e publicidade, instalou-se uma relativização do desequilíbrio de poder entre homens e mulheres no patriarcado. O próprio patriarcado se tornou um conceito fluido, independente de suas estruturas sólidas e da consequência material desse regime na vida de meninas e mulheres no mundo inteiro. E é nesse contexto, de enfrentamento político, mas também semântico, que Julie Bindel nomeia seu livro e delimita de qual feminismo ela está falando.

O livro pontua e esclarece boa parte das grandes questões sobre feminismo que se desenrolam no debate público atualmente (o que é uma mulher? O que é o feminismo e como se organiza sua história?) e responde claramente: mulheres são pessoas do sexo feminino e parte de uma classe historicamente oprimida. O sistema que organiza essa opressão atua de formas distintas em sociedades distintas, mas a violência masculina contra as mulheres — que toma forma de estupro, violência física, exploração reprodutiva, sexual e psicológica — é o único denominador comum. O mero fato de sermos mulheres, por termos nascido do sexo feminino, é o que nos posiciona enquanto classe subalterna e direciona nossa experiência no mundo. Mas esse histórico de vitimização, que pode facilmente ser classificado como genocídio e escravidão milenar, e que durante um despertar feminista geralmente causa indagações como “então como continuamos vivas?”, não apaga (mesmo que tente) o fato de que mulheres resistem. Durante todo o processo de civilização patriarcal, em todas as sociedades, é seguro afirmar: as mulheres resistiram e se revoltaram contra esse sistema. Essa revolta (feminista por si mesma) foi o que nos garantiu nossos parcos (e em constante disputa) direitos. E nesta obra, Julie Bindel traz a tona as histórias de mulheres que estão resistindo neste momento, de pandemia e crise de saúde mundial, e conecta a luta de antes com a luta de agora, expondo todas as semelhanças de discursos antifeministas que tentam barrar nossos avanços e manter o baixo status das mulheres no mundo.

O que acontece quando mulheres dizem “não”

Julie Bindel é jornalista, escritora, feminista radical lésbica e britânica, co-fundadora do grupo de reforma legal Justice for Women, que desde 1991 tem ajudado na defesa de mulheres que foram processadas por matar parceiros agressores. “Feminism For Women” é seu sexto livro, e entre suas obras publicadas, Julie já escreveu sobre a indústria do sexo em “The Pimping of Prostitution” e sobre heterossexualidade compulsória em “Straight Expectations”. Ao longo de sua carreira, Julie pode atravessar as décadas de 80,90 e os anos 2000 observando (e desafiando) as mais variadas formas de antifeminismo e misoginia, e toda retórica usada nos ataques direcionados a feministas que ousavam apontar, questionar e condenar as instituições que mantinham mulheres em posição de submissão, fossem elas a violência doméstica, a indústria do sexo, da pornografia, o casamento ou a heterossexualidade. Agora, em sua mais recente obra, Julie Bindel faz um chamado para que feministas tomem de volta o termo para si e resistam à normalização da violência sexual e ao esvaziamento da política do movimento.

“Neste livro eu argumento por uma definição clara de feminismo como libertação das mulheres, (…), feminismo não é uma escolha de estilo de vida, mas um movimento com objetivos específicos. Isso não é sobre quem tem a autoridade para definir o feminismo, mas sim sobre entender a urgência com que precisamos dessa definição” (p. 6)

Quando Julie relembra a movimentação de mulheres após o massacre de Montreal,  — em que um homem invadiu uma faculdade de engenharia, atirou e matou 14 mulheres estudantes, sob o pretexto misógino de que aquele lugar não deveria ser ocupado por mulheres, e que a culpa da degeneração do mundo era do feminismo — ela pontua que era muito claro entre feministas que esse tipo de crime era parte de um ódio direcionado ao sexo feminino que se manifesta tanto no pessoal quanto na vida pública. O ódio que levou o assassino a atirar nas estudantes (mesmo nas que gritaram que não eram feministas, na intenção de se defender) é o mesmo ódio e desumanização comumente perpetrados na violência masculina doméstica, no estupro, na pedofilia. E é triste, ao mesmo tempo que sintomático, que no evento em memória das vítimas do massacre, Julie e outras feministas tenham sido recebidas com protestos de transativistas e homens que as acusam de transfobia e discriminação contra mulheres na prostituição, como ela relata no livro. 

Apesar de seu comprometimento de décadas com o movimento das mulheres e suas relações com feministas do mundo inteiro, Julie Bindel é vítima de intensa campanha de difamação e cancelamento. Sua defesa dos direitos das mulheres baseados no sexo biológico e sua crítica à sistemas de exploração como a prostituição e a pornografia são vistas como “odiosas”, “opressoras”, e por isso vários eventos aos quais ela é convidada a falar (geralmente sobre o combate à violência masculina) são boicotados ou a organização é pressionada a desconvida-la. E se você pensa que quem pratica esse tipo de vilipêndio contra feministas atualmente são pessoas da direita conservadora, você está apenas parcialmente correto. Não só a direita conservadora se utiliza de antifeminismo para atacar o trabalho de Bindel e outras feministas, mas a própria esquerda e setores progressistas, que abraçaram o ativismo queer e permaneceram acriticos à indústrias como a pornografia e a prostituição (isso quando não as as incentivam ou celebram), também usam de argumentos antifeministas e misóginos semelhantes para desmerecer, minimizar a luta feminista ou simplesmente ressignificá-la a ponto de destruir sua essência. É inconcebível para ambos os lados do espectro político um movimento organizado de mulheres que não priorize pautas que incluam pessoas do sexo masculino. A mera organização autônoma de mulheres é o suficiente para que homens reajam como se estivesse literalmente sofrendo violência. 

No início dos anos 1980, o feminismo foi redefinido como algo tóxico, odiador de homens, histérico. Hoje em dia ele está na moda. Todo mundo se auto intitula feminista, e mesmo assim muito do que passa por “feminismo” continua não sendo nada além de uma tentativa de agradar homens e suprir suas necessidades. Mas o significado e objetivo autêntico do feminismo é a libertação das mulheres da supremacia masculina. O patriarcado é real e tangível — e nenhuma mulher, seja qual for seu privilégio ou falta dele, pode se esquivar ou facilmente negar esse fato. (p. 15)

Não é sobre “equidade de gêneros”

Nesse contexto de desequilíbrio total de forças, a ideia de “equidade entre os gêneros” faz pouco ou nenhum sentido na ótica feminista, apesar de ser anunciada como a finalidade do movimento em si. Bindel explica: não há como atingir a equidade dentro de um sistema criado na base da desigualdade. A própria noção de “gêneros” está apoiada nesse desequilíbrio, em que uma casta é dominante, violenta e forte e a outra forçada a ser submissa, amorosa e cuidadora. Advogar pelo equilíbrio dentro desse sistema naturalmente desequilibrado nos leva até extremos esdrúxulos, como casos que Julie Bindel cita de organizações masculinas que vão acusar a necessidade de mulheres em se organizarem sem a presença de homens de “separatismo radical” e que isso discrimina homens com base no sexo. Leis que garantem “a igualdade” muitas vezes acabam discriminando mulheres ou limitando sua participação e ignoram o fato de que quase 100% de homens foi a norma no comando de quase todas as sociedades há até muito pouco tempo atrás, e isso permanece comum e em constante estado de agravamento ainda hoje. 

No começo do movimento de libertação das mulheres, as feministas queriam revolução. Elas não queriam a oportunidade de se comportar como homens, mas ao contrário, buscavam revolucionar as relações entre homens e mulheres. (…) Essas mulheres eram diretas: homens tinham poder sobre as mulheres e esse fato havia moldado as relações pessoais assim como todas as instituições e instâncias da nossa vida social e política. (p.60)

Bindel entrevista e perfila mulheres a frente de abrigos para vítimas violência doméstica, ou que comandam entidades que resgatam mulheres em situação de prostituição ou exploração sexual. Mulheres que resistem à mutilação genital no Quênia e Nigéria, mulheres que libertam meninas de casamento forçado na Índia, britânicas que trabalham com refugiadas, mulheres encarceradas que enfrentam a ira do sistema penal ao matar seus companheiros agressores. Assim como Bindel, são mulheres que racionalizam e vivenciam as formas mais cruéis de violência que o sexo feminino, enquanto uma classe visível de pessoas, atura em sociedades patriarcais. É óbvio que mulheres não vivem todas as mesmas experiências, e que a raça, classe são fatores tão relevantes que as vezes parecem separar completamente mulheres em grupos diferentes. Mas a realidade que salta aos olhos, e que fica tão mais evidente quando apresentadas em forma de histórias de mulheres, é que em relação aos homens, mulheres jamais estarão em condição de igualdade enquanto o sistema que nos circula for patriarcal. Nós não queremos um pedaço do bolo dos homens e a única coisa que pode nos proteger de verdade é destruir, jogar esse bolo no chão. Imaginar novas formas de organização social que não se baseiem em violência masculina é talvez um dos exercícios mais desafiadores da luta feminista, e Julie também deixa claro em seu livro que essas tentativas não são em vão, uma vez que tudo que temos conquistado hoje em dia (nossas parcas proteções, parcos direitos, parca autonomia) foi fruto do trabalho de feministas que vieram antes. 

Sexo e Gênero, uma confusão interessante ou destruindo o feminismo em nome do feminismo

A atenção que Bindel presta às definições e termos é uma busca de desatar um nó sobre entendimentos sobre sexo e gênero, conceitos em disputa no campo progressista, e reafirmar a perspectiva teórica de feministas. Afinal, “gênero”, no feminismo, é entendido como os papéis sociais e estereótipos culturais atrelados ao sexo biológico, que produzem a desigualdade e hierarquia entre o sexo masculino e o feminino. Esses papéis não nascem no vácuo, ou naturalmente, eles seguem os princípios da supremacia masculina branca, são papéis ditados pelo patriarcado. É claro que, por terem sua natureza na cultura, os papéis de gênero vão variar a depender da região, classe social ou etnia, mas eles existem de maneira hierárquica há mais de 5 mil anos, enquanto um sistema global, separando homens e mulheres em classes sexuais muito distintas, e esse sistema é tão eficiente que é visto como parte da própria natureza —  mesmo que a natureza insista em nos provar o contrário. 

A dominação masculina não é exclusiva de nenhuma raça ou classe social distinta, ela atravessa todas as formas de organização social no mundo atual e há milênios, e isso é verdade mesmo levando em consideração as profundas diferenças entre mulheres ou sua incansável resistência. Para se tornar o que é hoje, o patriarcado teve de contornar a desobediência maciça de mulheres, que ao longo da história se revoltaram e desafiaram o papel de submissão que as foi imposto, e por isso foram punidas, caçadas como bruxas, silenciadas como odiadoras, encarceradas como perigosas, internadas como histéricas, vendidas como posse, usadas como incubadora, mortas como gado. Para feministas como Bindel, essas são as consequências dos papéis de gênero na vida das mulheres e isso tem que acabar. Esse entendimento, porém, foi ofuscado pela aberta aceitação da teoria queer a partir dos anos 90, que diz precisamente o contrário. Tal teoria cristaliza os papéis sociais de sexo enquanto natureza do “gênero”, e o que era visto como imposição social e socialização patriarcal forçada se transformou em “identidade” interna, impulso subjetivo. Nesse panorama de identidades, as forças sistêmicas são relativizadas ou totalmente ignoradas. Transformar o “gênero” em uma categoria individual e subjetiva, ou criar novos gêneros na tentativa de “subverter” essa lógica não vai mudar a realidade de dominação que mulheres enfrentam. O termo gênero foi criado para explicar a relação social hierárquica entre homens e mulheres a partir da observação da realidade, e não o contrário. Não foram as feministas que impuseram essas regras ou que punem mulheres por cumprir ou não a cartilha social do que é ser mulher, apesar de serem responsabilizadas por “vitimizarem” mulheres ou retirar-lhes “a agência”. Essa inconsistência teórica que nada tem a ver com o trabalho de mulheres organizadas coletivamente em grupos feministas, foi aceita na academia como o próprio feminismo e propagado como a verdadeira luta das mulheres. Essa versão atualizada de “feminismo” exige que abandonemos nossa história de resistência em nome do “gênero”, que pode significar tudo e todes, desviando o foco, a agente e o objetivo do feminismo. Essa confusão proposital entre sexo e gênero, entre feminismo e estudos pós-modernistas, é bastante útil para se reclassificar atitudes e discursos profundamente antifeministas em feminismo, numa novilíngua que nem Orwell seria capaz de prever. 

Os inimigos do feminismo mudaram suas táticas com o tempo, e feministas devem permanecer alertas, se manter inventivas e com recursos para combater os novos obstáculos na nossa luta pela libertação das mulheres. As vezes o antifeminismo é um antigo inimigo em uma nova roupagem e as vezes novos inimigos entram no campo de batalha. (p.14)

O feminismo que chega à jovens de hoje por meio da publicidade e pelos meios de comunicação hegemônicos se parece pouco com organização politizada de mulheres. Por isso, “Feminismo Para Mulheres” é um livro para se lembrar do que é realmente importante em termos de ativismo, história e conceitos criados pelo movimento das mulheres. Ela deixa muito claro que o real interesse do feminismo enquanto movimento revolucionário é derrubar o sistema que oprime a todas: o patriarcado. Note que libertação é diferente de liberdade, e Julie marca distinção ao longo do livro, pontuando que a libertação envolve a emancipação de uma classe inteira de pessoas, a queda de regimes políticos e hierarquias sociais, as mulheres em toda sua diversidade e diferença estariam por fim livres de violência masculina, seja ela sexual, física, moral ou institucional. O livro também é uma chamada à uma ação reflexiva: ao mesmo tempo que evoca a importância de coletivizar a luta pela emancipação também ressalta a necessidade da constante busca pela história e conhecimentos construídos por mulheres. Ele traz problematizações que vão além das discussões em redes sociais, posicionando os atores e as forças políticas envolvidas na dominação patriarcal e como mulheres reais são afetadas diariamente por essa opressão. É um livro que deveria ser lido por toda mulher que se diz feminista, e é uma pena que ele ainda não tenha sido traduzido e lançado oficialmente no Brasil, se é que um dia alguma iniciativa nesse sentido vá ocorrer. Por isso fica aqui também o apelo às coletivas, grupos de estudo, de leitura, editoras, ativistas no geral que se interessam pela história das mulheres, para que se organizem pela tradução de “Feminismo Para Mulheres” de Julie Bindel para o português.