Meu quarto livro e o primeiro trabalho completo de não-ficção será lançados pela Seven Stories Press em junho. 100 Times (A Memoir of Sexism) é um livro de memórias de 240 páginas, escrito como vinhetas de cenas, contando as histórias de cem experiências de discriminação sexista, assédio sexual e violência sexual que experimentei e testemunhei pessoalmente, a partir dos cinco anos de idade até os dias atuais.
Recentemente, compartilhei um trecho deste livro numa mídia social e, imediatamente, um velho amigo com quem há muito tempo perdi contato, um homem do Meio-Oeste [estadunidense], começou a discutir comigo e comparou-me a Valerie Solanas. Eu poderia dizer pelo tom de seu comentário que ele esperava que eu recuasse diante da menção daquele nome — Valerie Solanas — o pior dos insultos; a personificação de uma mulher estranha, histérica, violenta, insana, “feminazi”. Esse nome era para invocar a vergonha em mim, como a invocação de algum demônio goécio para mitigar e conter meu feminismo enlouquecido.
Ele não é o único que a vê assim. Muitas pessoas quando pensam em Valerie Solanas pensam em “louca de pedra, violenta, assassina, ridícula, mulher”.
Em uma temporada recente do popular programa de televisão American Horror Story, por exemplo, Solanas foi retratada por Lena Dunham como uma serial killer demente que liderou um culto de feministas assassinas matando casais heterossexuais — jovens se agarrando no carro, recém-casados felizes e tal — em uma sangrenta onda de assassinatos feministas por todo o país. Isso, é claro, é uma narrativa completamente fictícia e, para os propósitos deste programa, o resumo do trabalho de Solanas, o Scum Manifesto, foi interpretado como um texto sério e literal. Dunham retratou Solanas como uma lésbica homicida mal-humorada e rabugenta.
Na grande mídia e na consciência coletiva, Solonas foi rotulada como uma artista sem valor, e lembrada apenas por seu ato violento contra Andy Warhol.
Tudo isso me fez pensar no preconceito inconsciente e o que é necessário para condenar o valor histórico de uma artista mulher, em comparação com o de um artista homem.
William Burroughs atirou e matou sua esposa enquanto estava bêbado e drogado, jogando um jogo que eles chamavam de “William Tell”, no qual sua esposa colocava uma maçã na cabeça, e ele atirava. Ele errou, matou-a e mais tarde escreveu sobre isso, sugerindo que era possível que subconscientemente quisesse matá-la, porque ele era gay e se ressentia de ter uma esposa. Ele ficou apenas duas semanas na prisão por este massacre. Como o homicídio ocorreu no México, através de uma combinação de suborno e fuga do país, ele conseguiu evitar qualquer sentença de prisão.
Burroughs, é claro, ainda é amplamente reconhecido como um grande autor. De fato, tive um poema meu publicado em uma revista literária há alguns anos atrás, cuja a capa era adornada com uma fotografia dele segurando um rifle. Esta imagem foi considerada sombriamente bem-humorada.
Quase todos os outros autores com quem falei sobre a ética de celebrar Burroughs e sua arte me apontaram na direção da compaixão; ele tinha um problema com drogas, ele e sua esposa estavam “juntos no jogo”.
Após o assassinato de sua esposa, ele atuou como membro da prestigiada Academia Americana de Artes e Letras. Seu corpo de trabalho ainda permanece relevante, ele é amplamente ensinado no currículo de inglês e redação em faculdades, e é citado com respeito em artigos acadêmicos atuais e nos principais meios de comunicação em todo o mundo. Ele geralmente é considerado um bom homem. Em sua biografia na Wikipedia, o massacre de sua esposa não aparece até o sexto parágrafo. (Eu estou citando a Wikipedia porque ela representa as opiniões coletivas mais populares do público em geral, não como uma referência acadêmica).
Valerie Solanas, por outro lado, atirou em Andy Warhol, não o matando, mas ferindo-o gravemente. Ele morreu vinte anos depois de complicações de saúde possivelmente exacerbadas pela lesão, bem como pelo vício em anfetaminas.
Solanas e Warhol tinham uma documentada relação profissonal/pessoal horrível, repleta de insultos. Ela achava que Warhol a humilhava constantemente em particular e em público, mesmo depois que ela atuou em um de seus filmes.
Warhol concordou em dar uma olhada numa peça que ela escreveu, possivelmente para produzi-la. Ela deu a ele o único manuscrito para ler, e ele (alegou que) o perdeu, embora ela acreditasse que ele tenha jogado fora para irritá-la. Este foi o catalisador dos tiros.
Pablo Neruda estuprou uma empregada enquanto ele visitava o país dela como diplomata. Ele escreveu sobre isso com bastante naturalidade e sem desculpas em suas memórias (Confesso Que Vivi, publicado pela primeira vez em 1974, em inglês em 1977):
“Certa manhã acordei mais cedo do que o meu costume. Eu me escondi nas sombras para ver quem passava. Da parte de trás da casa, como uma estátua escura que andava, entrou a mulher mais linda que eu já tinha visto no Ceilão, raça tâmil, casta dos párias. Ela usava um sari vermelho e dourado do pano mais barato. Nos pés descalços dela havia tornozeleiras pesadas. De cada lado do nariz brilhavam dois minúsculos pontos vermelhos. Provavelmente eram de vidro, mas nela pareciam rubis.
Ela se aproximou solenemente do banheiro sem me olhar, sem reconhecer minha existência, e desapareceu com o receptáculo sórdido em sua cabeça, recuando com seus passos de deusa. Ela era tão linda que, apesar de seu trabalho humilde, ela me deixou perturbado. Como se um animal selvagem tivesse saído da selva, pertencente a outra existência, um mundo separado. Eu a chamei sem nenhum resultado.
Eu então eu deixava algum presente em seu caminho, alguma seda ou fruta. Ela passava sem ouvir ou olhar. Sua beleza escura transformou aquela viagem miserável na cerimônia obrigatória de uma rainha indiferente.
Certa manhã, determinado a tudo, agarrei-a pelo pulso e olhei-a nos olhos. Não havia língua que eu pudesse falar com ela. Ela se permitiu ser conduzida por mim sem um sorriso e logo estava nua na minha cama. Sua cintura extremamente esbelta, os quadris cheios, as taças transbordantes de seus seios a faziam exatamente como as esculturas de milhares de anos no sul da Índia. O encontro foi como o de um homem e uma estátua. Ela manteve os olhos abertos durante todo o tempo, impassível. Fazia bem em me desprezar. A experiência não se repetiu.”
Ninguém se lembra dele por isso.
Charles Bukowski foi filmado chutando e socando sua namorada durante uma entrevista sobre seu trabalho, e foi dito ter sido fisicamente abusivo com várias parceiras mulheres. Ele ainda é celebrado em todo o mundo como um grande poeta.
Louis Althusser estrangulou sua esposa até a morte em um ato de assassinato a sangue-frio. Em sua biografia da Wikipédia, ele é descrito como “um filósofo marxista francês cujos argumentos e teses foram construídos contra as ameaças que ele viu atacando os fundamentos teóricos do marxismo”.
Enquanto escrevo isto, o assassinato de sua esposa não recebe menção até o último parágrafo, e então simplesmente diz: “a vida de Althusser foi marcada por períodos de intensa doença mental. Em 1980, ele matou sua esposa, a socióloga Hélène Rytmann, estrangulando-a ”.
Ele é amplamente celebrado. O assassinato de sua esposa é mencionado apenas no contexto de sua doença mental.
Valerie Solanas sofria de esquizofrenia. Ela também foi vítima de incesto na infância. Seu pai a estuprou repetidamente, e então quando era adolescente foi enviada para viver com seus avós, em seguida seu avô a estuprou, e depois ela fugiu de casa e se tornou uma trabalhadora do sexo.
O tiro em Andy Warhol é atualmente a primeira frase de sua biografia da Wikipedia. Ela é considerada e retratada amplamente e repetidamente como um pedaço de lixo humano inútil, raivoso e louco. Onde está a compaixão com ela que nos pedem que tenhamos com artistas masculinos?
Ela era uma artista brilhante. O SCUM Manifesto é uma obra-prima literária da arte do protesto, e com frequência é completamente mal interpretada. Grande parte é, na verdade, um reescrito ponto-a-ponto de vários escritos de Freud. É uma paródia.
Em seu ensaio A Psicogênese De Um Caso de Homossexualidade Em Uma Mulher, Freud sugere que um bom tratamento para lésbicas seria ter seus ovários (provavelmente já hermafroditas) e genitais removidos e substituídos por um transplante de genitais femininos “reais”.
As exatas palavras de Freud:
“Os casos de homossexualidade masculina que tiveram sucesso satisfizeram a condição, que nem sempre está presente, de um hermafroditismo físico muito patente. Qualquer tratamento análogo da homossexualidade feminina é atualmente bastante obscuro. Se consistisse em remover o que são provavelmente ovários hermafroditas, e em transplantar outros, que se espera que sejam de um único sexo, haveria pouca possibilidade de ser aplicado na prática. Uma mulher que se sentiu homem e amou de maneira masculina dificilmente se deixará ser forçada a representar o papel de uma mulher…”
No SCUM Manifesto, Solanas postula que um bom “tratamento” para homens heterossexuais é fazer com que seus paus sejam cortados: “Quando o homem aceita sua passividade, define-se como mulher e se torna um travesti, ele perde seu desejo de foder (ou de fazer qualquer outra coisa, aliás; ele se realiza como uma drag queen) e aceita seu pau cortado. Ele então atinge um sentimento sexual difuso contínuo de “ser mulher”. Foder é, para um homem, uma defesa contra o desejo de ser mulher ”.
Os textos de Freud são repletos de sugestões de castração feminina e histerectomia como tratamentos para todos os tipos de problemas psicológicos sofridos pelas mulheres e, em resposta, o Manifesto SCUM é famoso por sugerir que a castração pode melhorar o comportamento dos homens.
Freud postulou que as mulheres heterossexuais são sexualmente passivas, só se envolvem com sexo porque querem filhos. Ele inventou a teoria da “inveja do pênis”. Ele alegou que, porque as meninas não têm pênis, elas passam a acreditar que perderam o pênis e, eventualmente, procuram ter filhos do sexo masculino na tentativa de “ganhar um pênis”. As mulheres, em algum nível profundo e subconsciente, viam a si mesmas como machos castrados. Em sua teoria do desenvolvimento psicossexual, ele afirmou que, para as mulheres, o sexo (com os homens) também pode ser uma tentativa subconsciente de ganhar um pênis.
Em seu ensaio O Tabu da Virgindade, Freud escreve: “Aprendemos com a análise de muitas mulheres neuróticas que elas passam por uma idade precoce em que invejam seus irmãos e seu signo de masculinidade e se sentem em desvantagem e humilhadas por causa da falta dele (na verdade, por causa de seu tamanho diminuído) em si. Nós incluímos essa “inveja do pênis” no “complexo de castração”.
Solanas substitui a inveja do pênis não só pela inveja da vagina, mas mais frequentemente pela abertura emocional das mulheres, sua complexidade e individualidade, como o foco da inveja dos homens. Ela escreve sobre os homens: “A individualidade da mulher, da qual ele é extremamente consciente mas que não compreende e que não é capaz de se relacionar ou entender emocionalmente, o assusta e perturba e o enche de inveja.”
Na época que o Manifesto SCUM foi escrito Freud era uma figura célebre na psicologia, e suas teorias estavam sendo amplamente divulgadas nas esferas acadêmica e popular. Solanas discordou disso e escreveu o SCUM Manifesto como uma paródia, ridicularizando o pensamento popular, sexista e heterocêntrico sobre sexo e sexualidade da época. Mas o texto é uma reversão. No Manifesto SCUM, Solanas dirige tudo o que Freud disse, com igual vigor e confiança, aos homens. Assim, em vez de a “maternidade feminina” ser um impulso primário, ela inverte isso para atacar/analisar o “impulso sexual masculino” através da mesma linha de pensamento de Freud.
Em seu ensaio Leonardo Da Vinci e Uma Memória de Sua Infância, Freud supõe que a homossexualidade nos homens decorre de sua relação com o pai e a mãe. Ele propõe que a homossexualidade (que ele presume ser uma coisa ruim) é causada por um relacionamento com uma mãe que é muito carinhosa com seu filho (como em todos os seus textos, ele afirma repetidamente que as crianças são por natureza sexualmente atraídas por seus pais do oposto sexo), e que é, ao mesmo tempo, muito assertiva e independente em relação ao próprio marido (o pai do menino). Isso faz com que o menino veja a figura materna, que também é objeto de seu desejo sexual na infância, como homem, não como mulher. E isso faz o menino ser gay. Ele escreve:
“Em todos os nossos casos de homossexuais masculinos, os sujeitos tiveram uma ligação erótica muito intensa com uma pessoa do sexo feminino, como regra sua mãe, durante o primeiro período da infância, que depois é esquecida; esse apego foi evocado ou incentivado por muita ternura por parte da própria mãe, e reforçado pela pequena parte desempenhada pelo pai durante a infância. Sadger enfatiza o fato de que as mães de seus pacientes homossexuais eram freqüentemente mulheres masculinas, mulheres com traços energéticos de caráter, que conseguiam tirar o pai de seu devido lugar. Ocasionalmente vi a mesma coisa, mas fiquei mais impressionado com os casos em que o pai esteve ausente desde o início ou deixou a cena em uma data precoce, de modo que o menino se viu completamente sob influência feminina. De fato, quase parece que a presença de um pai forte garantiria que o filho tomou a decisão correta em sua escolha de objeto, ou seja, alguém do sexo oposto.”
No SCUM Manifesto, Solanas pega essa análise e vira de cabeça para baixo através de uma lente feminista extrema, onde se tornar um “homem real (hétero)” já é considerado uma coisa ruim. Ela escreve: “O efeito da paternidade nos homens, especificamente, é torná-los, ‘Homens’, isto é, altamente defensivos em relação a todos os impulsos à passividade, à viadagem e ao desejo de serem fêmeas. Todo menino quer imitar sua mãe, ser ela, se fundir com ela. Assim, ele tenta convencer o menino, às vezes diretamente, outras indiretamente, a não ser um maricas, a agir como um “Homem”. O menino, borrando-se de medo e “respeitando” o pai, obedece e torna-se exatamente como o Papai, esse modelo de virilidade, o ideal Americano — o imbecil heterossexual bem-comportado.”
Enquanto Freud acusa a mãe de ser culpada pelo horrível destino de um menino se tornar homossexual, Solanas acusa o pai de ser o culpado pelo horrível destino de um menino se tornar um homem hétero.
Como você pode ver acima, o Manifesto SCUM é, muitas vezes, quase uma zombaria linha-a-linha dos escritos de Freud sobre mulheres e homossexuais, e nunca foi concebido para ser lido como um texto literal e sério. Isso não significa contudo, que seja uma piada ou que deva ser menosprezado. Como alguns podem ter percebido nos textos acima, não faltam críticas sérias, significativas e ressonantes das instituições patriarcais. Há muita verdade nesta paródia. É uma sátira política. É simultaneamente muito sério, mas escrito com um aceno de cabeça e uma piscadela. De acordo com a arte de protesto da época, se você não entendesse, ela não iria explicar isso para você. Ela estava feliz em fazer comentários arrogantes, como, “cada palavra foi intencional”, sabendo, e de fato esperando, que os “quadrados” que não entendiam o sarcasmo inerente à base do texto, ficariam muito mais chocado com a sua afronta.
Valerie Solanas apenas disse, em uma linguagem modernizada (agora datada), exatamente o que Freud havia dito sobre as mulheres, só que sobre os homens, e todos enlouqueceram, porque quando falamos de homens da mesma maneira que os homens falam sobre mulheres há séculos, entende-se como grotesco e insanamente violento, insensível e chocante, o que era exatamente o que ela queria demonstrar.
Seu trabalho ainda é mal interpretado como um texto literal por muitos até hoje.
Depois de atirar em Andy Warhol, Solanas entregou-se à polícia. Ela foi acusada de tentativa de assassinato, agressão e posse ilegal de arma. Ela foi diagnosticada com esquizofrenia e se declarou culpada de “ataque imprudente com intenção de prejudicar”, cumprindo uma sentença de três anos de prisão, incluindo tratamento em um hospital psiquiátrico. Em uma reviravolta tristemente irônica do destino, ela foi submetida a uma histerectomia não consensual durante sua hospitalização. Logo após sua libertação da prisão, ela se tornou sem-teto e nunca publicou outro trabalho.
Michael Alig, conhecido por ser um famoso promotor de festas e club boy na década de 1980 (no filme sobre sua vida, Party Monster, ele foi interpretado por Macaulay Culkin), assassinou brutalmente seu amigo, Andre “Angel” Melendez, por causa de uma discussão sobre uma dívida de drogas.
Alig cortou seu amigo em pedaços e o jogou no rio Hudson. Ele foi libertado da prisão e atualmente trabalha como promotor de clubes em Nova York.
Desde que saiu da prisão, ele também apareceu em um filme independente com artistas que conheço pessoalmente, chamado Vamp Bikers, no qual Alig interpreta um sociopata homicida que lentamente, brutalmente, mata seu amigo.
Eu assisti esse filme acidentalmente em uma exibição de cinema no Brooklyn, anos atrás, sem ter ideia do que estava me metendo. Tive vontade de vomitar, vendo-o feliz em participar do retrato fictício de um assassinato tão parecido com o que ele realmente cometeu, e sendo celebrado por isso. Muitas pessoas ao meu redor estavam dizendo animadamente que esperavam que Alig pudesse comparecer à exibição.
Seu site michaelalig.com o descreve como um “artista, escritor, curador”. Você pode contratá-lo para promover sua festa ou comprar uma de suas muitas pinturas de arte pop por 500 dólares cada.
Eu acho que tudo isso é abominável. Eu tive debates com amigos sobre isso e me perguntaram: “Bem, ele cumpriu sua pena. Não devemos ter compaixão? Ele era jovem e usava muitas drogas quando fez isso. Você não acha que ele deveria ter uma segunda chance?”
Talvez. Talvez a chance de viver como uma pessoa livre novamente, sim, talvez isso, mas definitivamente não a chance de ser comemorado por ser o famoso garoto de boate que assassinou seu amigo. E não me passou desapercebido que a pessoa que ele assassinou foi um homossexual hispânico pobre e menos conhecido, e eu me pergunto se ele teria saído da prisão tão cedo se fosse ele quem tivesse assassinado Michael.
Talvez mais chocante do que isso, é a vida e a receptividade do ensaísta e romancista Norman Mailer. Ao falar sobre o feminismo e a libertação das mulheres, Norman Mailer disse: “Devemos encarar o simples fato de que talvez haja uma profunda reserva de covardia nas mulheres que fez com que elas acolhessem essa vida miserável e escravizada.”
Em seu livro Advertisements for Myself, Mailer afirma que um escritor sem “culhões” não é um escritor:
“Tenho uma terrível confissão a fazer — não tenho nada a dizer sobre nenhuma das mulheres talentosas que escrevem hoje. No que é sem dúvida uma falha em mim, não pareço capaz de lê-las. Na verdade, duvido que haja uma escritora muito empolgante até que a primeira puta se torne uma garota de programa e conte sua história. Correndo o risco de fazer uma dúzia de devotos inimigos para o resto da vida, só posso dizer que o cheiro que eu sinto da tinta das mulheres é sempre irreal, antiquado, professoral, minúsculo, psicótico demais, aleijado, rasteiro, tendencioso, frígido, barroco, banal como a maquiagem de um manequim, ou então brilhante e natimorto. Já que eu nunca fui capaz de ler Virginia Woolf, e às vezes estou disposto a acreditar que pode ser minha culpa, este veredicto pode ser tomado como a língua distorcida pelo gosto azedo, pelo menos por aqueles leitores que não compartilham comigo do ponto de partida — que a um bom romancista pode faltar tudo, exceto o vestígio dos seus culhões.”
Eu poderia dizer que Norman Mailer falou e escreveu de maneira tão violenta, grotesca e chocante sobre as mulheres quanto Valerie Solanas sobre os homens. Mas ele não estava dizendo nenhuma dessas coisas ou escrevendo seus textos sexistas como uma paródia ou protesto a sua própria subjugação.
Norman Mailer ainda é amplamente celebrado por sua ficção e seus ensaios, incluindo numerosos trabalhos que se posicionam de maneira inflexível contra o feminismo e as mulheres em geral. Em 1968 e 1980 ganhou o Prêmio Pulitzer. Em 2005, ele ganhou o National Book Award for Distinguished Contribution to American Letters (Prêmio Nacional do Livro pela Contribuição Distinta à Literatura Americana em tradução livre). Em 1960, ele tentou matar sua esposa, esfaqueando-a várias vezes no peito, por pouco não atingindo o coração dela.
Enquanto sua esposa estava no hospital em estado crítico, um dia após o esfaqueamento, Mailer apareceu a uma entrevista marcada no The Mike Wallace Show, onde ele falou da faca como um símbolo de masculinidade. Ele foi preso dois dias depois, embora sua esposa tenha se recusado a prestar queixa dizendo que temia pela segurança de seus filhos se o fizesse. Contudo, ela se divorciou dele assim que se recuperou.
Os paralelos entre Mailer e Solanas são tão surpreendentes quanto suas diferenças. A única razão que eu posso encontrar para as diferenças em como eles são vistos popularmente é que Mailer era um homem, falando e agindo violentamente contra mulheres em uma sociedade sexista, e Solanas era uma mulher, fazendo o contrário nesta mesma sociedade.
Eu não posso deixar de conjurar o legado de Solanas ao olhar para as questões atuais que continuam surgindo sobre o tema da violência, da arte e de quem celebramos hoje. Perdoamos Louis C.K. por se masturbar repetidamente com as inúmeras mulheres com quem ele trabalhou? O que significa perdão? Isso significa que ele continua a gozar do mesmo nível de reverência e celebridade de antes? Ainda podemos curtir a música de Michael Jackson sabendo que ele mantinha relações sexuais com o que parece ser um fluxo interminável de garotos? Devemos ainda estar patrocinando os filmes de Woody Allen? Está tudo bem se sentir de coração partido com a perda do Bill Cosby que tantos conheciam e amavam? E quanto as belas obras de tantos amados autores homens sobre quem falei acima?
Eu não tenho respostas claras para essas questões, nem acho que existe uma regra que seja correta para todas as situações, mas sei que o golpe social foi duro com as mulheres que cometeram atos semelhantes de violência, especialmente quando esses atos são dirigidos aos homens. Eu sei que o preconceito sexista julgou um das minhas heroínas da arte muito mais duramente do que seus colegas do sexo masculino.
Eu não celebro ou compactuo com os tiros de Valerie Solanas em Andy Warhol. Mas quando as pessoas mencionam Valerie Solanas como se ela fosse uma criminosa horrenda, assassina, louca de pedra, sem valor, histérica e violenta, cuja arte literária é tão valiosa quanto as divagações de uma doente mental, sugerindo que ela deveria ser descartada como nada mais além disso, eu sempre penso comigo: “bem, é exatamente o que ela esperava desta sociedade.” Muito menos do que eu esperava mudou desde que ela lançou o livro em 1967. Essas linhas de abertura ainda permanecem misteriosamente significativas:
“Viver nesta sociedade significa, com sorte, morrer de tédio; nada diz respeito às mulheres; então, àquelas dotadas de uma mente cívica, de senso de responsabilidade e de busca por emoções, só resta uma possibilidade: derrubar o governo, eliminar o sistema monetário, instaurar a automatização completa e destruir o sexo masculino.”
Tradução do texto de Chavisa Woods