O papel e comportamento considerado apropriado para os sexos foram expressos em valores, costumes, leis e papéis sociais. Eles, além disso, e muito importante, foram expressos em metáforas que se tornaram parte da construção cultural e do sistema explicativo.
Gerda Lerner
Quando em 1º de março de 2020 foi exibida pelo Fantástico (Rede Globo de Televisão) uma reportagem que tinha como pauta mostrar as condições em que vivem as travestis que estão presas, o país se comoveu com o abraço dado pelo médico Dráuzio Varella na detenta chamada Suzy, que disse estar há aproximadamente 8 anos sem receber visitas.
Deste momento em diante várias campanhas para envio de cartas, presentes e até mesmo uma vakinha virtual foi feita para arrecadar dinheiro para Suzy.
Da mesma forma que outro debate passou a ser fomentado, já que as mulheres presas também sofrem de solidão, o próprio Dráuzio, no seu livro Prisioneiras, escreveu “De todos os tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas. Cumprem suas penas esquecidas pelos familiares, amigos, maridos, namorados e até pelos filhos. A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”.
Então seria o abandono um ponto comum para travestis e mulheres em situação de cárcere?
Assim, um tema que é extremamente ignorado em um país punitivista como o Brasil que é a qualidade de vida de detentas e detentos, passou a ser discutido abertamente em redes sociais, portais de notícias e por políticos, que geralmente os ignoram, afinal, eles não votam…
Até que uma reviravolta aconteceu, um perfil do instagram sobre ciências criminais revelou que Suzy, que há época se chamava Rafael, foi condenado por homicídio triplamente qualificado e estupro de vulnerável, Rafael havia estuprado, matado e ocultado o corpo de um menino de 9 anos.
Passamos a ser afogadas por palavras como “perdão”, “pena de morte”, “penas humanas para seres humanos”, “empatia”, “merecia morrer na cadeia” e as mais diversas que transitam de um extremo ao outro.
Dentre todas as pautas possíveis e relevantes que poderiam ser levantadas por essa discussão, como a realidade de famílias que perderam entes queridos em crimes hediondos, a vida pós violência das vítimas de crimes sexuais, como tratamos nossas crianças e adolescentes em suas vulnerabilidades, a solidão das mulheres no cárcere, a punição como uma ideologia patriarcal e outras tantas, decidi retomar meu TCC intitulado “ANÁLISE CRÍTICA DAS DECISÕES RECENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES DO BRASIL QUANTO AO CUMPRIMENTO DE PENA PELAS TRAVESTIS EM ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS QUE CONDIZEM COM SUA IDENTIDADE DE GÊNERO”, para tratar de uma dúvida que muitos levantaram: _como é de fato a questão das travestis e dos transexuais (homens e mulheres) que são condenados a prisão?
Antes, preciso confessar, que tratar de qualquer tema relacionado aos travestis e transexuais tem sido extremamente espinhoso, afinal, todos estão sendo calados pelo temor de serem taxados de transfóbicos, desta forma, temos presenciado insanidades ditas sobre o assunto, uma vez que a incapacidade de dialogar de forma racional faz com que muitos, na tentativa de fazer parecer que Suzy nunca foi o Rafael, além de apagarem a memória do Rafael, apagam a memória da sua vítima, a dor de uma família e a responsabilidade de um criminoso.
Mas retomando a questão do cárcere para travestis e transexuais, em 2014 foi assinada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e o Conselho de Combate a Discriminação, adjunto da então Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, a Resolução Conjunta nº 1/2014.
Fundamentada na vulnerabilidade dos corpos físicos e psíquicos diante uma situação extraordinária que é a de privação da liberdade, essa Resolução veio como uma de forma tentar dar efetividade ao previsto na Constituição Federal de 1988, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Princípios de Yogyakarta, dentre outros.
A função de uma resolução é regular o funcionamento de algo em específico, sendo ela de cumprimento obrigatório e tendo seu alcance limitado ao que se tenciona atingir, a em questão, o sistema carcerário brasileiro.
Desta forma, em seus 12 artigos, a Resolução 01/2014, apresenta, dentre outras coisas, quem são os sujeitos a que se pretende acolher, sendo as lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros, como também as características mínimas atribuídas a cada uma deles, trata do direito ao tratamento pelo nome social, apresenta a necessidade de um espaço de vivência específico aos travestis e gays em privação de liberdade em unidades prisionais masculinas, mostrando uma deferência à diferença sem desconsiderar o sexo biológico ao qual pertencem, assim como determina que os transexuais masculinos e os femininos sejam mantidos em unidade prisionais femininas, em razão da proteção dos seus corpos, tendo em vista que transexuais femininos, para Resolução, são aquelas que passaram pela cirurgia de redesignação genital.
É imperioso apontar que há ongs voltadas às travestis que são contrárias aos espaços de convívio específico pelo temor da autodeclaração de orientação sexual ser utilizada por homens que sejam heterossexuais e que, buscando “um local mais seguro” se autodeclarem gays, mas é aí que surge a primeira de diversas perguntas: o que impediria um homem de se autodeclarar travesti para ter esse mesmo acesso? Indo além, e se esse acesso fosse a presídios femininos?
O que se sabe é que Rafael quando foi preso, não se identificava como Suzy.
No tempo em que somos mulheres, medo é tão familiar para nós como o ar. É nosso elemento. Nós vivemos nele, nós inalamos ele, nós exalamos ele, e na maioria do tempo nós nem notamos isso. Ao invés de “eu tenho medo”, nós dizemos “eu não sei” ou “não posso”.
Andrea Dworkin
Desta maneira, tendo em vista que as duas se pautam em declarações baseadas exclusivamente em percepções pessoais de si mesmo, assim como as duas são baseadas na palavra de quem diz ser, não haveria local de fato seguro para ninguém, pois as duas podem ser fraudadas.
Por esta razão, a defesa de que diante tais probabilidades, mesmo que o ideal seria que nem houvessem prisões, já que a adesão ao sistema penal é fracassado e desumano, é de que os espaços de vivência específicos sejam a melhor alternativa na tentativa de proteger às mulheres que estão em situação de encarceramento, sendo essa a alternativa mais segura que o Estado pode oferecer, ao menos até que a educação para as diferenças, como também, o entendimento de que gênero é apenas um sistema de regras para separar e justificar as diferenças sociais, culturais e econômicas entre homens e mulheres, passem a ser uma realidade que levará a sociedade para a mais total e completa abolição do gênero (e quem sabe nesse momento, nos tornemos também abolicionistas penais).
Foto: Edu Garcia, Fabíola Perez e Pedro Canin (Portal R7)