Não-Binário é o novo "Não é como as outras Garotas", e isso está profundamente enraizado em misoginia
Não-Binário é o novo "Não é como as outras Garotas", e isso está profundamente enraizado em misoginia

No verão de 2018 eu vivi numa casa com outras três mulheres. Passamos muito tempo juntas naquela época; tivemos muitas conversas madrugada adentro sobre o sexismo, a misoginia e a violência masculina que todas nós experimentamos. Conversamos sobre não nos adequarmos ao que a sociedade espera de mulheres, paramos de nos depilar, e encorajamos umas a outras para não termos vergonha de nossos corpos. Pedimos linhas de crises de estupro, organizamos protestos e denunciamos homens violentos em nossas comunidades. Mitali* raspou a cabeça em um ato de rebeldia, desafiando as expectativas indianas de beleza feminina. Joy* se empoderou e se tornou uma voz para falar pelas oprimidas. Miriam* começou a confrontar seus pais religiosos e fez as pazes com sua sexualidade. Nós quatro sonhamos com o que um mundo feminista poderia ser e imaginamos nossas vidas livres do patriarcado e da violência.

Agora, um ano depois, todas as três se identificam como “não-binárias” — não mais como mulheres.

De acordo com a Campanha de Direitos Humanos, não-binário significa:

“Um adjetivo que descreve uma pessoa que não se identifica exclusivamente como homem ou mulher. Pessoas não-binárias podem se identificar sendo ambos — homem e mulher — alguma coisa entre os dois, ou algo totalmente fora dessas categorias.”

Como três mulheres feministas, que bravamente desafiaram normas de gênero e combateram violência masculina em suas vidas de repente se tornaram não-binárias?

Identidades não-binárias estão em ascensão. No Reino Unido, o número de estudantes não-binários parece ter dobrado entre 2017 e 2018. Com dois terços dos jovens que se identificam como trans sendo fêmeas, é mais provável que a maioria dos adultos que se identificam não-binários sejam mulheres jovens. Embora exista uma escassez de estudos nessa área, minha experiência não é única. Para as feministas, isso não deve ser uma surpresa.

Um artigo de 2018 da Teen Vogue descreveu a experiência de uma mulher não-binária:

“Eu rejeito o conceito inteiro de gênero. Enquanto eu crescia, nunca senti que fosse errado quando me chamavam de mulher, mas me parecia mais um rótulo imposto a mim, do que algo com o qual me identificava. Então, na faculdade, eu aprendi sobre a identidade não-binária, e realmente me identifiquei. Claro, existem coisas que gosto e coisas que não gosto que podem ser denominadas ‘femininas’ ou ‘masculinas’, mas não sinto, de nenhuma forma, que essas coisas precisam ser denominadas assim. O gênero binário sempre me fez sentir desclassificada, e eu não me identifico com nenhum deles.”

Feministas há muito já rejeitavam o conceito de gênero, definindo-o como papel sexual estereotipado opressor, e elas mantém seu objetivo de abolir a casta sexual que é gênero. Ao invés de rejeitar gênero, a escritora da Teen Vogue parece o ter adotado por completo, acreditando que ela não deve ser uma mulher simplesmente porque ela não se encaixa nas expectativas sociais de mulheridade. Será que ela pensa que sua experiência em ser falsamente categorizada no gênero é única? Será que ela “não é como as outras garotas”?

Poucos meses depois um website chamado Aeon soltou o seguinte título: “Um mundo segregado em categorias de feminino e masculino parece sufocante. A identidade não-binária é uma forma radical de escapar. ” A autora afirma que as identidades não-binárias estão dando uma “marretada” nas categorias de gênero, expondo o sistema opressivo, e criando um mundo melhor para todos. Ela conta histórias de que está sofrendo ameaças e humilhações causadas pela confusão sobre seu sexo. Em uma delas, um homem gritou com ela por usar o banheiro feminino.

Mulheres que miram se identificar fora da mulheridade ficarão dolorosamente decepcionadas, no entanto.

Gênero é um sistema que nos oprime e é inerentemente contraditório. Nenhuma mulher consegue se conformar totalmente com gênero (apesar de que algumas tentam mais que outras) e desde que gênero é construção social todos nós existimos para além desse binarismo em nosso interior. Não há nada inerente em identidade de gênero e dizer o contrário é anti-feminismo.

Considere por exemplo as várias atividades que não conformam com gênero que uma típica mulher ocidental pode fazer em qualquer dia aleatório:

· Colocar calças ao invés de saias

· Ir trabalhar ao invés de ficar em casa

· Não sorrir para todo e qualquer homem que ela vê na rua

· Usar seu cabelo de forma natural

· Falar o que pensa

· Passar tempo pensando em coisas que não sejam como agradar homens ou sua aparência física

· Curtir um filme de ficção-científica ou show de TV

· Fazer uma piada

Isso tudo parece trivial, no entanto quando olhamos para as obviamente ridículas formas nas quais a vida é categorizada por gênero, fica claro que nenhuma mulher viva poderia se conformar totalmente a isso. Se uma mulher se conformar a todos os marcadores estereotipados de feminilidade, ela provavelmente será considerada uma prostituta (independentemente de sua atividade sexual real). Pessoalmente, me recuso a usar maquiagem, permito que meus pelos cresçam naturalmente, uso calças e botas ao invés de vestidos e saltos, trabalho como engenheira de software, rejeito os deveres de esposa para com meu marido e planejo nunca ter filhos enquanto eu tiver o controle. Eu sou não-binária?

Os ativistas extremistas de gênero diriam que não, que eu não sou, porque ainda me identifico como uma mulher. Eu aceito que sou uma mulher, que meu corpo é de fêmea e é regulado pelo estado, que eu sobrevivi à infância e adolescência e à violência masculina a que eu fui submetida porque eu sou uma mulher.

Sou empática ao desejo de muitas garotas e mulheres de escapar da feminilidade. Crescer como uma criança-menina nessa sociedade não é fácil. Você nunca será bonita o suficiente, esperta o suficiente, ou desejada o suficiente. Ou então você será bonita demais, esperta demais, ou desejada demais. De qualquer forma, provavelmente a culpa é sua.

Mitali sabia que quando ela retornasse à Índia ela estaria em risco de ser assediada, mesmo com a cabeça raspada. Essa semana uma mãe e sua filha foram espancadas e tiveram suas cabeças raspadas em público como punição por terem lutado para não serem estupradas. Enquanto que nos EUA ela é capaz de dizer que não é uma mulher, as mulheres que andam por estradas mais traiçoeiras não têm o privilégio de optar por não serem mulheres. Será que essas mulheres poderiam ter evitado a violência e a humilhação se tivessem se auto proclamado não-mulheres? Suas mulheridades serão forçadas nelas quer elas queiram quer não; e quem iria querer?

Miriam se sente desconfortável em seu corpo feminino. Ela tem seios, curvas e uma vulva. Seu corpo não é igual ao das modelos de revistas, e ela sonha em abri-lo e escapar dos limites de sua carne. Ela quer existir para além das expectativas de feminilidade que o patriarcado coloca em sua forma física. É permitido aos homens viverem dessa maneira, como pessoas inteiras, independentemente da concha que abriga suas mentes. No entanto, ela sabe que não é um homem. Ela sabe disso pela forma que seu corpo é controlado e policiado. Ela diz “o gênero acabou”, mas porque ela não conseguiu escapar?

Joy está assustada e com raiva. Ela viu o que aconteceu a suas amigas mulheres. Ela ouviu as histórias de horror e assistiu todas nós lidarmos e escaparmos das maneiras que conseguimos. Ela manteve Mitali e Miriam por perto enquanto elas choravam de noite e procuravam cura e significado. Não me pergunto porque ela não quer ter nada a ver com isso mais. Ser uma mulher é uma porra de um terror!

Estou de luto por essas mulheres que abriram mão de suas mulheridades, escolhendo correr e se esconder da opressão de seu gênero ao invés de rejeita-lo bravamente acima da sua individualidade. Ter tanta dor, misoginia, e medo interior é viver em constante estado de inquietação, nunca se sentindo segura ou confortável. Em nossos últimos dias juntas, eu tentei mostrar a elas que o feminismo rejeita gênero e não abraça suas mentiras — mas já que eu sou “feminina” e elas “não” para mim não seria possível entender as dores delas. Elas disseram que eu era odiosa.

Nada poderia estar mais longe da verdade.

Mulheres e garotas deveriam poder viver em mundo livre de gênero e de todas as formas de patriarcado e violência masculina. Deveria ser permitido a nós, mulheres, ser complexas, criativas e inteiras. Nós não deveríamos rejeitar a realidade biológica em favor de pensamentos mágicos para lidar com o mundo em que vivemos.

Mulheres não-binárias são o testamento da grande dor que é ser uma mulher, e a necessidade desesperadora que muitas de nós temos de escapar. Ao mesmo tempo, mulheres que se dizem não-binárias jogam garotas e mulheres debaixo do ônibus. O argumento de que somos privilegiadas por nos identificarmos com o sexo “atribuído ao nascer” apaga a violência intrínseca em ser uma mulher sob o patriarcado. Em alguns países, 70% das mulheres passaram por violência sexual ou física vinda de seus parceiros íntimos. 137 mulheres são assassinadas por dia por um membro de suas famílias. Ao menos 200 milhões de garotas e mulheres vivas hoje sofreram mutilação genital feminina, a maioria antes dos 5 anos. É por isso que feministas pedem direitos baseados no sexo biológico para mulheres e garotas.

Aqueles que em sua maioria não conformam com gênero, não importa como se identificam, vão encarar opressão por transgredir as normas sociais. Mulheres serão especialmente alvos de violência e discriminação por não se conformarem. Isso é verdade independente de como a mulher se identifique, uma vez que o agressor não sabe a “identidade de gênero” interna da mulher antes que a prejudique.

Essa é a verdade desconfortável: dizer que você “não é como as outras garotas” não é uma identidade, é misoginia. Mulheres que se identificam como não-binárias dizem que sofrem uma opressão maior do que as mulheres que elas chamam de “cis”, um termo que deixa implícito que certas mulheres são cúmplices de sua própria opressão. Mas nós não somos privilegiadas por manter e entender as bases de nossa opressão; você é privilegiada se acha que pode escapar dela.


*Nomes mudados

A autora foi demitida de seu emprego (que nada tem a ver com sua produção textual) por ter escrito esse artigo. Se você quiser apoiar o trabalho dela para permiti-la a fazer mais conteúdos como esse, doe para seu Patreon.


Texto escrito por M. K. Fain, 14/07/19, original pode ser lido aqui.