Aqui vou propor um exercício. É algo que acredito que devamos fazer de tempos em tempos, e não só sobre relações amorosas.
Um relacionamento abusivo se dá a partir do momento que 1) existe uma situação hierárquica entre as duas pessoas (e isso pode se dar em diversos âmbitos) e 2) a pessoa em posição de poder se utiliza disso para coação, manipulação e/ou em próprio benefício em detrimento da outra. Isso pode se dar em qualquer tipo de relação: amizade, amor romântico, pais e filhas. Pode acontecer inclusive entre mulheres.
É evidente que a grande maioria dos casos se dá no abuso de homens sobre mulheres, porque a situação hierárquica já está previamente definida social e estruturalmente. O cenário de abuso depende inteiramente das atitudes do homem, pois a hierarquia é inerente às respectivas posições sociais. Entre mulheres a posição hierárquica deve ser construída e — justamente por sua não inerência — é geralmente muito menos visível.
Partindo disso, o exercício é o seguinte: vamos pensar em todas as nossas relações?
Primeiro, feche os olhos e vá pensando nas pessoas que fazem parte da sua vida. Deixe sua mente correr por cada uma delas — e demorar-se em algumas se for preciso — e leia seus próprios sentimentos. Não se cobre, você não precisa tirar conclusão nenhuma a partir disso. Mas procure medo. Procure receio, culpa, tensão. Procure vergonha, procure constrangimento, insista quando quiser pensar em outra coisa. Procure obrigação, submissão, obediência. Seja sincera consigo mesma. Sua mente é o seu refúgio e ninguém pode te atingir aonde você está. Não há nada de errado em encarar as coisas com sinceridade. Quando você se deparar com qualquer um desses sentimentos, faça uma anotação mental: voltar a essa pessoa depois.
Ao final do processo, você deve ter anotado algumas pessoas, o que não quer dizer que sejam todas abusadoras — esse tipo de sentimento pode vir de diversas formas. É aí que vem a parte mais difícil, que é pensar relação por relação. Para fazer isso, coloque-se em um espaço seguro. Vá dar uma volta, senta numa praça, deita na grama, você consigo mesma, e lembre-se, antes de começar qualquer coisa, que você está segura naquele determinado momento. Não esqueça: sua mente é seu santuário. Nela você pode pensar o que quiser, e não há nada de errado ou vergonhoso nisso.
Eu não espero aqui que você saia com discernimento o suficiente para definir uma relação como necessariamente abusiva e por fim a ela. Isso é um processo de aceitação muito mais complexo e demanda muito mais tempo do que um pequeno exercício. Mas ele é suficiente para que você identifique um possível problema. O próximo passo, a partir disso, é pedir ajuda.
Então vamos lá.
Se for uma pessoa com a qual você tenha brigado em algum(s) momento(s): esqueça certo e errado. Pare de tentar pensar se você errou aqui ou ali, quem está certo na discussão, pare de tentar pesar os dois lados. Pode soar egoísta e injusto, mas é só por um momento.
Pense em você só um pouquinho. Você se refreia perto dessa pessoa? Você controla o modo de falar e agir? Sente que precisa manter a pessoa calma o tempo inteiro? Pense num ambiente com ela, e depois num ambiente sem ela. Qual é a sua reação nesses dois casos? É a mesma? Se não, o que muda? Você tem dificuldade de dizer não? Você sente sua mente confusa quando discute com essa pessoa? Você sente que está distorcendo as coisas o tempo inteiro?
Se o relacionamento que você estiver analisando for abusivo, provavelmente a culpa e o medo, mas principalmente a culpa, tentarão te atrapalhar. Se precisar, assuma como verdade que você errou nas suas atitudes, se a culpa estiver fazendo cócegas atrás da orelha que te impeçam de pensar; mas é o momento de ser egoísta mesmo, então os assuma mas não ligue para eles. Que se danem os seus possíveis erros. Se você conseguir pensar um “ok, tudo bem, eu errei ali, mas aquilo ali que ele fez/disse foi horrível”, já é um progresso. E isso não quer dizer que você errou. Mas às vezes precisamos ceder a nós mesmas e não exigir que nos isentemos do que nos manipularam a pensar. Da mesma forma, quando você ajuda alguma mulher em situação de violência, você tem que relevar algumas frases problemáticas (“ele fez isso porque eu deixei ele nervoso”, “eu não devia ter feito aquilo”), porque a análise racional da situação e consequentemente a nomeação de quem é realmente errado na relação vem apenas com o tempo. E a prioridade é sair da situação de violência, não importa se a relativizando ou não.
Analise se você conseguiria cortar essa pessoa da sua vida agora. Assim, do nada, se você conseguiria deixar de sair com ela, ou deixar de morar com ela, ou deixar de namorar com ela. Se não, porquê? Pense em como você se sentiria se, por algum motivo, achasse que ela não gosta mais de você. Nesse ponto, se sentir mal é normal. Mas pense na intensidade. Pense em se isso mudaria suas percepções de si mesma. Nessa hora pode doer. Mas pense. É rápido, e pode fazer um bem enorme. Lembre-se que, de novo, independente de quaisquer erros que você também possa ter cometido, independente do que isso parece a outras pessoas, independente de quem é majoritariamente certo ou errado: se você não consegue sair dessa relação, você precisa pedir ajuda.
Agora, pense em como você se vê. Em como você tem se sentido independente da pessoa. Você está bem? Sua mente está saudável? Você consegue pensar nas coisas com clareza? Senão, quanto tempo faz isso? Procure recaídas de traumas já superados, procure agravamentos em quaisquer doenças psicológicas que você possa ter, procure problemas de auto-estima, procure aquela melancolia sem sentido que tomou os seus dias, aquela dor inexplicável na boca do estômago. Há quanto tempo você se sente assim? Há quanto tempo você conhece/se relaciona com essas pessoas?
Se você pensar em tudo isso e não encontrar nada de possivelmente problemático, que bom. Mas pense numa última coisa: no momento em que você estava analisando a situação, agorinha mesmo, você se sentiu bem? Você não ficou incomodada, querendo que acabasse logo?
Identificou algo problemático? É hora de pedir ajuda e conversar com alguém de confiança, principalmente alguém que tenha o debate feminista e que vai analisar as coisas com a imparcialidade que lhe faltará se for realmente uma relação abusiva. Exponha as coisas abertamente, se esforce. Se não estiver conseguindo, peça ajuda mesmo assim. Haja o que houver, não deixe de pedir ajuda. Se você simplesmente não conseguir falar sobre, não se esqueça que isso também é um sinal. Não tem alguém de confiança? Peça ajuda na internet. Peça ajuda para aquela conhecida que você sentiu que tem o debate feminista que você precisa. Não tenha vergonha, não tenha medo.
E lembre-se: você não precisa resolver nada agora. Você não precisa ver as coisas com clareza agora. Não sinta que para se retirar da situação de violência você precisa colocar um ponto final em todas as questões da sua cabeça. Não há nada de errado em simplesmente sair, cortando da sua vida ou não quem te faz mal. Não há nenhum problema em se priorizar. Se você namora essa pessoa, peça um tempo, e se não quiser explicar porque, não explique. Se você mora com essa pessoa, vá passar uma semana na casa de alguém de confiança, pelo menos até sua mente se organizar. Se você é amiga dessa pessoa, não responda seus chamados pra sair, não converse, não atenda o telefone. Não se preocupe com o que vão dizer. Não é isso que importa. O que importa é você. É sua sobrevivência e sua sanidade. Nenhuma relação vale isso. O resto se vê depois.