Eu realmente achei que tínhamos chegado mais longe. A Barbie mesmo diz: “Meninas podem fazer qualquer coisa.” Afinal de contas, temos agora a maioria dos diplomas de bacharelado, ocupamos metade dos assentos em faculdades de Medicina e de Direito, comandamos empresas e universidades, e participamos do Congresso. Há até três de nós no Supremo Tribunal Federal [estadunidense — 2 no brasileiro]. Mas se você perguntar por que os homens ainda dominam o mundo, a resposta que você terá de volta não é discriminação, assédio sexual ou violência masculina — coisas cujas simples menções são profundamente injustas, para os homens.
A explicação, ao em vez disso, ainda é alguma variação da que Lisa Belkin deu na The New York Times Magazine em 2003, quando ela perfilou um monte de ex-alunas de Yale que tinham desistido de seus grandes empregos para se tornarem donas de casa: porque nós não queremos. Nós preferimos ser mães e ter uma vida profissional equilibrada, fazer yoga e assar biscoitos. Lembram-se quão indignadas as pessoas fingiram estar quando Hillary Clinton disse que ela preferia exercer uma profissão na área dela, que é Direito, do que assar biscoitos? Esses malditos biscoitos. Não é o ato de assar que importa, é que você sente que tem que fazer isso: para ser uma boa mulher, para provar que, mesmo se você for uma neurocirurgiã, ainda é apenas uma mãe por dentro.
Estas são as regras do Patriarcado que o movimento #MeToo expôs: a educação, as atividades extracurriculares, os projetos, as credenciais — ser uma garota não é sobre nenhuma dessas coisas. Ser uma garota é sobre agradar aos homens: O que eles pensam de você e o que querem de você e como você negocia isso em um mundo que não quer ouvir sobre o lado mais obscuro do que isso pode significar. Você pode ser um atleta de classe mundial, como aquelas ginastas olímpicas, e ainda ser abusada pelo seu médico — e nada será feito sobre isso por anos. Você pode ser fantasticamente talentosa e perder sua carreira se você não entrar no jogo do Harvey Weinstein* ou Les Moonves**. E. Você pode ter um trabalho de fábrica com um bom sindicato e um salário decente e ainda assim ser assediada e insultada tanto por seu chefe quanto por seus companheiros de trabalho. Você pode só tirar notas 10 e fazer um ótimo trabalho e ainda assim sentir que deve pagar um boquete num encontro porque isso é esperado, e parece mais simples dessa maneira — e talvez mais seguro também. Você não gostaria que ele pensasse que você só quer provocar ou é uma escrota. Porque, desde o momento que você nasceu, te disseram de mil maneiras que homens gostarem de você era a medida real do seu valor no mundo. E mesmo sem perceber você fez isso, você aprendeu a se fazer agradável. Para atrair homens, para desarmá-los, para administrá-los, para confortá-los.
Este para mim é o significado do testemunho dado pela Dra. Christine Blasey Ford no Comitê Judiciário do Senado. Seja o que uma mulher for — uma PhD, uma mãe, uma vítima de um crime sexual — o mais importante é ser agradável: atraente, não ameaçadora, boazinha. E Dr. Ford foi tão boazinha! Bonita — mas não tão bonita — educada, de classe média alta, branca, com óculos, um marido, filhos e uma casa. Ela foi apenas emotiva o suficiente — não distante, não histérica — para agir conforme as expectativas de como uma mulher deve parecer quando ela diz a verdade sobre ser atacada. Ela tentou tão fortemente apaziguar os velhos répteis do comitê: fazendo piadas auto-depreciativas sobre seus anseios por cafeína, explicando a ciência cerebral por trás de suas memórias, como se estivessem todos na sala de aula tentando entender como uma mulher pôde recordar que os dois homens que a atacaram tinham rido, mas não recordar como chegou em casa nesse dia.
Imagine se a Dra.Ford fosse pobre ou gorda ou racializada. Imagine se ela tivesse tido um divórcio complicado, seguido por inúmeros namorados. Imagine se ela tivesse escrito um artigo na Elle sobre suas fantasias sexuais, ou seu vício em remédios controlados, ou seu aborto. Outros já disseram isso, mas vale a pena repetir que se a Dra. Ford tivesse se comportado como fez o juiz Brett Kavanaugh, ela seria dispensada como uma mentirosa e velha louca. Imagine se ela tivesse falado umas 30 vezes o quanto ela gostava de cerveja. Imagine se ela tivesse demonstrado raiva, hostilidade, arrogância, se gabado sobre ter ido a Yale, chorado lágrimas de pena de si mesma, e rebatido perguntas na cara dos senadores, perguntando a eles se já tiveram ‘blecautes’. Imagine se sua página do livro do ano do segundo grau estivesse cheia de termos com conotações sexuais e insinuações sobre bebedeiras óbvias a qualquer um que tinha sido adolescente, e ela tivesse os afastado com explicações obviamente falsas. Nós diríamos, bem, esse é exatamente o tipo de garota que ‘estava pedindo’ na época e está mentindo agora.
Mas porque um homem que fez e disse essas coisas, é tudo excelente. “Ele era um estudante imaturo. Assim como éramos todos”, disse o Senator Orrin Hatch. Ele treina basquete; suas filhas pequenas rezaram “pela mulher”. “Garotos são garotos”. “Faz muito tempo”.
O #MeToo tem o poder de mudar esta narrativa? A raiva das mulheres é o tópico do dia. O brilhante ‘Good and Mad’ (“Boa e Louca” em português) de Rebecca Traister não poderia ter sido publicado em um momento melhor e se soma a ‘Rage Becomes Her’ (“Raiva lhe Cai Bem”) de Soraya Chemaly e ‘Eloquent Rage’ (“Raiva Eloquente”) de Brittney Cooper em uma prateleira crescente de livros chamando mulheres para admitir sua raiva justificada e usá-la para ter justiça. Depois que o senador Jeff Flake disse que votaria por Kavanaugh, duas ativistas, Ana Maria Archila e Maria Gallagher, o confrontaram no elevador e vociferando furiosamente contaram a ele sobre os ataques sexuais que sofreram. “Olhe para mim quando eu estou falando com você”, exigiu Gallagher. Flake então pediu um tempo para o voto, com uma semana pendente da investigação do FBI.
“Olhe para mim quando eu estou falando com você”.
Imagine exigir isso. Imagine ele olhando de volta. Finalmente.
Por Katha Pollitt — traduzido do The Nation
Nota da tradutora
*Harvey Weinstein é um ex-produtor de filmes estadunidense, co-fundador da empresa de entretenimento Miramax, que foi demitido e expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas depois do grande número de denuncias de abuso sexual por parte de mulheres. Essas alegações provocaram a campanha de mídia social #MeToo e muitas alegações similares de abuso sexual e demissões de homens poderosos em todo o mundo, agora chamado de “efeito Weinstein”. Em 25 de Maio de 2018, Weinstein foi preso em Nova Iorque, acusado de estupro e outras crimes, e liberado sob fiança.
**Les Moonves é o apelido de Leslie Roy Moonves, executivo de mídia norte-americano que atuou como Presidente e CEO da CBS Corporation de 2003 até sua renúncia em setembro de 2018, após várias denúncias de assédio e abuso sexual
Obrigada pela tradução. ❤️
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