Nos acostumamos a acreditar que para que um bem seja protegido é necessário que o Estado tipifique como crime determinadas condutas que podem colocar em risco esse bem, por esse motivo foi tão comemorado quando, no dia 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia.
Desta forma, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26) reconheceu, por maioria dos votos, o enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.
São três os pontos importantes a serem considerados nesse enquadramento:
1) O primeiro prevê que, até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/1989 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe.
Reais ou supostas significa que a pessoa não precisa ser homossexual, travesti ou transexual para ser vítima de homofobia ou transfobia, basta que os que as cometeram acreditem que as suas vítimas sejam.
2) O segundo ponto, a tese prevê que a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe a liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio.
3) Terceiro, a tese estabelece que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.
O que eu faço agora?
Antes de tudo, é necessário entender que o Crime de Racismo é taxativo, ou seja, a conduta para ser compreendida como tal tem que se encaixar no que está prescrita nela, não há analogias ou brechas, porque esse crime, conforme determina a Constituição, é inafiançável e imprescritível, por ser compreendido como um crime contra a coletividade, assim, a ação é pública e incondicionada, ou seja, não depende da representação do ofendido para ser apurado pelo Estado, porque a intenção dessa tipificação é evitar que haja segregação racial.
São exemplos de condutas racistas: Negar ou obstar emprego em empresa privada; Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador; Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau; Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau, Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar; Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social; Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos, dentre outros.
É imperioso notar que o racismo está no ato, na ação de recusar ou impedir que alguém em razão da sua raça, cor, etnia, religião, procedência nacional e agora, orientação sexual ou identidade de gênero, tenha acesso a um estabelecimento, emprego, concurso, ensino, local e até mesmo a convivência familiar e social, não é necessário xingar, gritar ou brigar para que esse crime seja cometido.
Então eu posso chamar alguém de “sapatão imunda” tranquilamente?
Você não pode, porque já existe um crime contra a honra chamado injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal Brasileiro, que é tipificado como um xingamento que ofende a dignidade ou decoro de alguém, uma ofensa pessoal direta, que não importa se é verdadeira ou falsa, se verbal, escrita ou por gestos.
O que nos importa saber é que esse ato, por mais repugnante que seja, não será tipificado como homofobia.
Mas se eu chamar alguém de “macaco” é racismo, não é?
Não é racismo, xingar uma pessoa preta de “macaco”, agredir verbalmente, por escrito, gestos ou outra forma de comunicação, utilizando para isso elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, conforme previsto no art. 140, §3º, do Código Penal, é considerado injúria racial.
E se uma crítica de gênero, preocupada com a questão da autodeclaração, disser: “se homens podem se autodeclarar mulher e lésbica, ser mulher e lésbica não significam absolutamente nada”, é transfobia?
Não é transfobia, considerando que discutir questões de sexualidade, demonstrar temor diante a gravidade da opressão de gênero e todas as suas implicações para o cotidiano de mulheres e meninas não são atos segregatórios, portanto, não cabem na tipificação da Lei do Racismo, nem mesmo dos crimes contra a honra.
É necessário que haja liberdade para que sejam amplamente discutidas a autodeclaração, a socialização, a hormonização, a sexualidade, os bloqueadores de puberdade e as conquistas em razão do sexo obtidas pelas mulheres, afinal, apenas através do debate de ideias será possível avançar em pautas tão importantes e de grande impacto na vida de milhares de pessoas.
O silêncio e a omissão não nos levará a lugar nenhum!
Ideias contrárias, divergência de opinião, linha teóricas opostas e expressão de livre pensamento, não são crimes.
Dizer que lésbicas merecem ser estupradas para aprenderem a desconstruir sua sexualidade e aceitarem como parceiros afetivo/sexuais homens que se identificam como lésbicas é crime?
Primeiro é preciso entender que discurso de ódio são as manifestações que incitam a violência, assim sendo, se uma pessoa ou grupo de pessoas estão incitando atos violentos contra essas mulheres que se negam a aceitar homens que se identificam como lésbicas como parceiros afetivos/sexuais, elas estão, sim, cometendo crime de homofobia, uma vez que está previsto no art. 20 da Lei 7.716/89 que é racismo “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
Exatamente por isso que a manifestação de liberdade religiosa é permitida, exceto, se configurar como discurso de ódio.
Esse raciocínio também cabe para o crime de transfobia.
– Caso a pessoa tenha ameaçado estuprar uma lésbica para que ela “aprenda a gostar de pênis”, pode ser configurado como o crime de ameaça, prevista no art. 147 do Código Penal: “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave.”
– Se a pessoa forçou ou tentou forçar a lésbica a ter conjunção carnal com ela ou outro ato libidinoso (incluindo beijo e toque), constrangendo-a mediante violência ou grave ameaça, é estupro, previsto no art. 213 do Código Penal. Importante enfatizar que, em se tratando de lésbicas, essa prática é chamada de estupro corretivo.
– No caso de a pessoa mentir para essa lésbica, para ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima, como, por exemplo, omitindo que, mesmo que se identifique com o gênero feminino, seu sexo é masculino, de acordo com o art. 215 do CP, estará cometendo violação sexual mediante fraude.
Ese eu me sentir ofendida durante uma discussão?
Caso tenha sido uma discussão, real ou virtual, em que um homossexual (gays, lésbicas e bissexuais), transexual ou travesti tenha se sentido ofendido em sua honra pelas palavras da outra pessoa, trata-se do crime de injúria de que já tratei nesse texto, uma vez que ele trata da honra subjetiva, ou seja, de como a pessoa xingada se sente diante daquelas palavras.
Um ponto importante na injúria é que, para ela ser configurada, a pessoa que ofendeu tinha que ter a intenção de fazê-lo, portanto, não basta que você não goste do que foi dito, é necessária a intenção da ofensa, caso contrário, não haverá injúria.
Assim sendo, retorno à questão da necessidade de compreender o que são debates de ideias, não é porque alguém pensa diferente de você e está manifestando seu pensamento, sem é claro, induzir violência, sem ameaças, sem a intenção de ofender a sua honra subjetiva, que haverá crime.
Ese eu fizer uma falsa acusação de homofobia ou transfobia contra alguém, eu posso ser responsabilizada de alguma forma?
Também há previsão legal no Código Penal contra falsa imputação de crime, é o art. 138 do CP que trata do crime de calúnia, portanto, não é preciso falar o óbvio, não acuse pessoas de atos e condutas que elas não tiveram. Vou além: sendo você uma pessoa LGBT, entenda quais são os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) e o que pode ser enquadrado na Lei de Racismo.
Debates de ideias, opiniões contrárias, alguém dizer algo que você não considera legal não são crimes, nem tudo será e deverá ser resolvido em um Tribunal, a diversidade tem de ser respeitada, para que o limite entre liberdade de expressão e discurso de ódio seja entendido, sem isso, jamais iremos evoluir enquanto sociedade.
O punitivismo não é a solução para os problemas sociais, políticos e culturais que vivemos, não é prendendo, processando e acusando pessoas que chegaremos ao fim de atos discriminatórios. São necessários educação, leitura, debates e respeito pelos direitos humanos.
Vivendo a realidade de um Estado que prefere criar tipos penais a educar cidadãos conscientes, temos de ter ciência do que cada situação trata para que não fiquemos focados em ameaças e em acreditar que estamos mais protegidos só porque está escrito em algum lugar que determinada conduta é crime.