A maioria delas é mãe e está longe dos seus filhos, da sua casa. Muitas vezes é mãe-solo, provedora e mantenedora do lar com muitos dependentes. Essas mulheres foram presas por diversas razões, que no final não são tão diversas assim: mais da metade delas por envolvimento com o comércio de drogas. De maneira geral, as mulheres presas hoje no Brasil faziam transporte ou comerciavam pequenas quantidades de drogas. Ou faziam consumo próprio. Nesta extensa discussão que envolve a política criminal e encarceramento em massa, um objeto/sujeitA merece atenção especial: a condição das mulheres presas.
De acordo com o Relatório Nacional Sobre A População Feminina No Brasil (2014), a população penitenciária feminina subiu de 5.601 para 37.380 detentas entre 2000 e 2014, um crescimento de 567% em 15 anos. Sendo a quinta maior população carcerária feminina do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia. Sabe-se que grande parte das presas no país é jovem, 50% têm menos de 29 anos e estão em fase economicamente ativa da vida. A escolaridade delas é muito baixa, sendo que 45% têm o ensino fundamental incompleto e 15% o fundamental completo. Em relação à raça, há predomínio da negra, totalizando 62% das presas (BRASIL, 2017).
O baixo índice de criminalidade feminina — no passado- era decorrente de vários fatores, mas enraizado primordialmente pela “segregação” de gênero e condicionado pelos processos de socialização. As mulheres e os homens ocuparam espaços bem definidos e limitados. As mulheres ficaram reclusas na casa, privadas do que era público, enquanto os homens eram donos da rua, do trabalho, do exterior. As mulheres quando galgavam ocupações públicas eram afastadas de postos de liderança, por consequência, tiveram muito menos oportunidades para cometer determinados delitos, como o de colarinho branco. Essas dinâmicas distintivas, por tantos anos fortificadas fizeram com que o Estado não se preocupasse com a situação de mulheres infratoras exatamente por não existirem número significativos de delitos, nem de mulheres cometendo-os.
Conforme as mulheres conquistam posições em nossas sociedades, aproximando-se dos homens, as diferenças começaram a diminuir. Conforme as mulheres se enxergam de um modo menos subordinado aos homens, os índices de delinquência gradualmente se equiparam. Dessa forma, logo que as mulheres aumentam a sua participação no espaço publico, no mercado de trabalho, sua oportunidade para cometer certos tipos de delitos também se eleva.
Historicamente, a investigação criminológica tendeu a ignorar as mulheres, já que a criminalidade é um fenômeno predominantemente masculino. E, apenas nos últimos anos, com o desenvolvimento dos movimentos feministas no mundo, a partir de 1970, que ocorre o surgimento de uma criminologia feminista crítica às concepções criminológicas tradicionais, ou seja, uma criminologia baseada na suspeita. Com o amadurecimento desta epistemologia[1] que se começa a estabelecer parâmetros diferenciados para a pensar questões que envolvem a realidade do crime feminino. Especialmente, sendo necessário contextualizar o fato crime perpetrado por mulheres no Brasil.
Foi a criminologia feminista que levantou a importância de se levar em consideração as distintas necessidades das mulheres brasileiras presas revisitadas através da intersecção de raça, sexualidade, religião, classe, deficiência, etc. E maternidade. Afinal, uma das características mais definidoras da população carcerária feminina é ter filha/o(s). Desse total carcerário feminino, cerca de 80% são mães, o que significa que, na maioria dos casos de prisão, há crianças e adolescentes que são separados de suas mães, por isso, é tão urgente a atenção específica a essas mulheres levando em consideração também o que é melhor para a criança.
O impacto nocivo da pena de privação de liberdade não age apenas sobre a mulher presa, mas também, sobre toda a sua família. Todo o sistema familiar é afetado em relação ao declínio da situação financeira, rompimento das relações de amizade e de vizinhança, enfraquecimento dos vínculos afetivos, problemas na escolaridade dos filhos e perturbações psicológicas decorrentes da percepção de exclusão social. A separação mãe/filho(a) traz à tona questões como a culpabilização sobre o abandono, abalos na estrutura familiar e a possibilidade de o filho desamparado retroalimentar a carreira do crime.
Já existem diretrizes da ONU para o tratamento específico para as mulheres presas –Regras de Bangkok. Algumas das resoluções envolvem que: as mulheres presas devem ser alocadas em prisões próximas ao seu meio familiar; devem receber auxílio para se comunicar com parentes, devem ter acesso à assistência jurídica, permissão de tomar as providências necessárias em relação aos filhos, incluindo a possibilidade de suspender por um período razoável a medida privativa de liberdade, levando em consideração o melhor interesse da criança. As acomodações devem oferecer instalações e materiais exigidos para satisfazer as necessidades de higiene específica das mulheres. No entanto, essas regras nem sempre, ou quase nunca, são respeitadas. E a verdade sobre as mulheres presas se mostra bem diferente:
Gestação e parto. São precárias a assistência pré-natal e as condições sociais das mães que pariram nas prisões. Inúmeras são as denúncias do uso de algemas durante o trabalho de parto e parto, bem como o relato de violência e a péssima avaliação do atendimento recebido, denotam que o serviço de saúde não tem funcionado como barreira protetora e de garantia dos direitos desse grupo populacional (Ensp/Fiocruz, 2017).
Filhos do cárcere. Tratando-se de mulheres gestantes, o ato criminoso cometido acaba se estendendo para o seu filho, que nasce quando sua mãe está presa e poderá permanecer na cadeia na fase inicial de sua vida. O tempo de permanência com a mãe na prisão variava entre 4 meses a 7 anos de idade. São poucos os estados brasileiros que disponibilizam ambiente berçário ou creche para o cuidado das crianças dentro das penitenciárias. Dentre as instituições que dispõem esse ambiente, são raras as que possuem um local adequado, apesar de ser um direito concedido pela lei. Ainda hoje, muitos dos filhos dividem as celas da prisão com a mãe, sem a mínima condição adequada para seu cuidado. O fato da adequação do local às necessidades da criança faz com que os filhos das apenadas acabem sendo também aprisionados, pois não usufruem o seu direito de receber condições favoráveis ao desenvolvimento.
Amamentação. As mães têm um prazo mínimo de 6 meses para amamentação, inclusive estabelecido pela Organização Mundial da Saúde. Entretanto, as mulheres denunciam que dentro do sistema prisional esse tempo é tido como prazo máximo.
Estresses. “Toda gravidez na prisão é uma gravidez de risco”, Verônica Sionti, defensora pública. Apenas pelo fato da mulher estar em privação de liberdade a gravidez já é considerada de risco, por conta do alto nível de estresse e vulnerabilidade. Quando essas mulheres passam mal, elas não precisam apenas de uma ambulância e um médico, elas são obrigadas a aguardar uma agente para poder acompanhá-las. A segurança é posta muito acima da saúde da mulher. Nessa situação o estresse acomete as mães e as crianças.
Saúde e desenvolvimento da criança. As mães contam sobre casos de crianças que saíram do presídio com problemas de saúde, especialmente subnutrição. E são as péssimas condições das prisões (higiene, alimentação, etc) que levam elas, na maioria das vezes, a querer que os filhos não estejam ali, o que termina acarretando em problemas decorrentes da separação precoce das mães-filhos. Os resultados do estudo de Poehlmann (2005) revelou que, diante da separação de suas mães, as crianças costumam apresentar tristeza, preocupação, confusão, raiva, solidão, medo, problemas de sono e retrocesso no desenvolvimento. Por isso, essas crianças apresentam um risco maior de desenvolver problemas de comportamento, evasão escolar e abuso de substâncias.
Autonomia. O encarceramento de mulheres que são mães ou são gestantes envolve o não reconhecimento da sua capacidade de exercer a maternidade e, portanto, a falta de liberdade para escolher o que é melhor para os seus filhos. Muitas mulheres relatam que juízas, defensoras, agentes penitenciárias questionam suas escolhas, dizem que elas não são mães por exercer sua escolha de não querer que o filho cresça numa prisão.
Quem assume o lugar materno. É de extrema importância, tanto para o bem-estar da apenada quanto para o desenvolvimento da criança, o estabelecimento de uma figura materna (avô, tia, amiga, parentes), inclusive porque é essa pessoa que vai contar para criança a história da mãe. A história real de que a mãe está presa por tais motivos, ou a história ficcional, de que a mãe está trabalhando num outro país, por exemplo. Há situações em que os filhos de mulheres que cumprem pena são cuidados por parentes distantes, amigos da mãe ou em uma casa de acolhimento. A mãe apelidada de M12 conta sobre a situação dos filhos numa pesquisa (2018) no momento em que ela e sua mãe, avó das crianças, foram presas:
“Primeiro, eles ficaram com a minha irmã. Depois, com a minha irmã, porque ela tinha os dela né, daí tava aquela função, os meus, tipo, os meus pequenos brigavam com os pequenos dela, e a minha guria foi pra casa de uma amiga minha. Daí lá também não deu certo, ela foi pra casa de uma comadre minha. Daí por último, ela ficou com a mulher do meu irmão, que foi até que a mãe saiu daí. E depois, a minha sogra queria ficar só com os guris, com as gurias não, daí não dá né, como é que eu ia separar eles? (Smeh e Flores, 2018).“
Escolarização dos filhos. A prisão também tem implicações na escolarização dos filhos, reforçando os prejuízos que o afastamento da mãe representa na vida deles. Geralmente, ainda que, na atualidade, essa realidade esteja se modificando, a inserção e o acompanhamento da vida escolar dos filhos são responsabilidades atribuídas à mãe. Com a privação de liberdade, ela fica impossibilitada de acompanhar o processo educativo das crianças.
Culpabilização. Muitas pesquisas defendem que o bom vínculo e a convivência com a mãe nas visitas poderiam ter um efeito preventivo no desenvolvimento da criança. No entanto, muitas mães justificaram sua preferência por não receber a visita dos filhos. Elas temem que eles sejam expostos a um ambiente de relações interpessoais permeadas por hostilidade, nas quais não há reciprocidade de apoio e acolhimento. Logo, solicitar a visita e ver os filhos dentro do ambiente prisional seria infligir mais sofrimento a elas e seus filhos. A sociedade precisa entender que o direito da criança e da mãe são complementares e numa situação de prisão não podem ser vistos como opostos.
Projetos e Leis que envolvem o tema. No Brasil, somente em 1981 foi apresentado um anteprojeto da Lei de Execução Penal (LEP), sendo aprovada a Lei somente em 1984 (Lei nº 7.210/84), Lei que assegurava às mulheres, dentre outros direitos comuns a qualquer detento, independentemente do sexo, a conquista do direito ao alojamento em celas individuais e salubres, sendo as mulheres recolhidas em ambientes próprios e adequados a sua condição pessoal.
Recentemente, em 2009, duas modificações inseridas na Lei de Execução Penal pelas Leis nº 11.942/09 e nº 12.121/09, trouxeram significativas conquistas às mulheres quanto a sua situação como detentas. Dentre as garantias contempladas, está a que determina que os estabelecimentos penais destinados a mulheres sejam dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los no mínimo, até seis meses de idade, e ainda, tais estabelecimentos deverão possuir, exclusivamente, agentes do sexo feminino. Além disso, no artigo 89 da LEP, recentemente alterado, dispõe que a penitenciaria deverá também ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche que abrigue crianças de seis meses até sete anos.
Em fevereiro de 2018, a 2ª Turma do STF concedeu habeas corpus coletivo no qual figuravam como pacientes “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional” que ostentassem “a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade”, além das próprias crianças que porventura estivessem na companhia de suas mães.
A possibilidade de maternar entra em confronto com a precariedade das relações estabelecidas durante o cumprimento da pena. A realidade neste contexto não é fácil: são mulheres carentes e fragilizadas, desprovidas de poder, voz e autoestima para exercer a parentalidade. O ambiente em que vivem são degradantes e, por isso, na maioria dos casos, elas escolhem mantê-los distantes. Dessa forma, a culpa e a vergonha pelo delito preponderam, inviabilizando o estreitamento dos laços afetivos com os filhos. Por isso, é de extrema importância discutir o ambiente prisional feminino para as mulheres-mães (ou seja, a grande maioria), tanto no que se refere as relações dentro do presídio, ou seja, o local onde recebem seus filhos, como aquelas que reverberam fora do presídio, ou seja, quem são os cuidadores dessas crianças, que tipo de saúde, afeto e educação essas crianças estão recebendo.
Apesar desse aumento significativo da criminalidade feminina, nem homens nem mulheres encarceradas costumam receber atenção da população geral. O que acontece atrás dos muros das penitenciárias só interessa a população em geral quando ocorrem situações como fugas, greves, rebeliões. Fora isso, os cárceres são esquecidos e não cultivam o interesse da sociedade. Além de condições de vida digna para elas e para os seus, a condição privativa deveria dar oportunidades de promoção da saúde, através de educação, especialmente no campo da saúde reprodutiva e sexual. Além de alternativas ao encarceramento, como a prisão domiciliar, especialmente para as presas gestantes, que apesar de prevista na legislação brasileira, raramente é aplicada. A aplicação das Regras de Bangkok, apesar de aprovadas ainda no de 2010, e do forte engajamento do governo brasileiro em sua elaboração, nas cortes superiores brasileiras, por exemplo, é bastante tímida. É preciso alertar para o fato de como nós — sociedade- estamos tratando as mulheres negras e seus filhos dentro das prisões brasileiras.
Saiba MAIS:
O site “Mulheresemprisão” é uma iniciativa que busca contribuir para a maior visibilidade do assunto. Por meio de conteúdos (reunidos com muita pesquisa e trabalho de campo) e de espaços para ação aqui sugeridos, qualquer pessoa conectada pode acessar histórias, relatos, leis e até atuar em prol dessa causa.
O site “Women in Prison” é um projeto que apoia as mulheres afetadas pelo sistema de justiça criminal fazendo campanhas para acabar com os danos da prisão às mulheres, suas famílias e suas comunidades. Disponível em: www.womeninprison.org.uk/.
“Mães presas, filhos desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão”, de Nelia Maria Portugal Flores e Luciane Najar Smeh (2018): O objetivo do estudo é acrescentar informações ao discutir, a partir do relato de mães presas, vivências na relação mãe-filho(a) que são perpassadas por relações interpessoais, inclusive as estabelecidas dentro do presídio, que também reverberam na experiência de maternidade das presas. Disponível em: www.scielo.br/pdf/physis/v28n4/0103-7331-physis-28-04-e280420.pdf.
“C(elas)”, de Gabriela Santos Alves (2017). É um documentário sobre como vivem as presas do alojamento materno-infantil da penitenciária feminina de Cariacica, no Espírito Santo, a única do estado com estrutura para grávidas e mães com filhos recém-nascidos. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=27NTvdFWJ7g.
“Berço de Ferro”, de Vanessa Ramos. Este documentário é o recorte da trajetória de cinco mulheres que enfrentaram dificuldades inimagináveis para exercer a maternidade no cárcere. “O aborto”, “a separação”, “o parto algemada” e “a prisão” são episódios-chave na vida destas guerreiras. Disponívle em https://www.youtube.com/watch?v=lhNZkgoFgaw.
“Mães do Cárcere” (2011), de Fernanda Balera, Pedro Gueller e Heidi Ann Cerneka. O documentário traz o relato de três mulheres que perderam seus filhos quando foram presas.
O artigo “Quando a casa é a prisão”, escrito por Ana Gabriela Braga e Naila Ingrid Chaves Franklin, busca entender como tem sido a efetivação dos direitos de gestantes e mães presas pelos julgadores, com foco na aplicação da prisão domiciliar após a criação dessa lei.
[1]Assim, a criminologia feminista acredita que as teorias criminógenas tradicionais são insuficientes para explicar a delinquência das mulheres. Destaca-se que o incremento dessa nova vertente (criminologia feminista) surgiu na década de 1970, apontando como uma das causas da criminalidade feminina o fato de que até então homens e mulheres vinham desempenhando papeis distintos na sociedade, de maneira que a mulher se situava no segundo plano.
Foto: Dora Martins