A falsa transgressão da feminilidade: outro privilégio masculino
A falsa transgressão da feminilidade: outro privilégio masculino

Nossa opressão não é brincadeira

Já faz bastante tempo que venho notando o que vou expor agora, mas em datas de orgulho me perseguem mais porque se tornam mais visíveis, então creio que seja um bom momento para comentar isso aqui.

A feminilidade não é menos opressiva porque os homens decidiram participar dela. A feminilidade não se transformou em um elemento de liberdade só porque os homens gostam dela.

Cada vez vemos mais homens que se maquiam, colocam sapatos de salto e adotam demais elementos de “beleza” que são considerados femininos. Isso não é ruim per se, faz parte da liberdade pessoal de cada pessoa o que fazer com seu físico, o que vestir ou deixar de vestir e como quer viver. O problema surge no momento em que esse fato é utilizado para anular uma mensagem, concretamente a crítica feminista à feminilidade.

A maquiagem, os saltos, a roupa e os acessórios, que em geral sabemos que são usados para criar uma determinada imagem “sexy”, ou seja, coisificada, têm uma razão de ser em nossa sociedade, e é de manter a ideia da mulher como objeto sexual. Serve para colocar a imagem acima da pessoa. Serve para incentivar a ideia de que tal pessoa não está bem como é, senão que deve se modificar e se adaptar para agradar às demais.

Esta é uma regra social que nós mulheres recebemos durante toda nossa vida e que supõe de nós uma dependência. Para nós, a libertação não está em usar maquiagem vendendo-a como algo divertido por ter várias cores. A libertação passa por não depender disso e por deixar de fomentar esses elementos como uma aspiração para as mulheres. Desde que nascemos, as mulheres recebemos de forma constante a ideia de que valemos tanto quanto o reconhecimento a nível físico que obtivermos dos homens.

No patriarcado, essa é nossa razão de ser: subordinar-nos aos homens. Estar o que popularmente se entende por “bonita” é um imperativo social que condiciona a percepção que temos de nós mesmas e nossas aspirações. Até o ponto em que muitíssimas mulheres são incapazes de se deixar ver sem maquiagem ou sem determinado tipo de roupa. Mulheres, independentemente de sua idade, que se envergonham ao olhar seu reflexo no espelho e que necessitam ocultar-se por trás de uma máscara de cor, cremes anti-idade, saltos, roupas incômodas, mas que cumprem com alguns clichês, para se sentirem com confiança suficiente para se mostrarem ao mundo. Definitivamente, todo um sistema que cria repúdio a quem somos, condenando-nos a um cárcere de produtos industriais de beleza e operações estéticas para sermos qualquer coisa menos nós mesmas.

A feminilidade existe em contraposição à masculinidade como instrumento que o patriarcado utiliza para manter a estrutura sexual desigual de que é composto. Não é, portanto, um tipo de personalidade que surge livremente de cada pessoa; ao invés disso, pelo contrário, é um mandato social que nos inculca e que cala, em toda a realidade do mundo em que vivemos, uma opressão. É, portanto, necessário estabelecer uma crítica sobre a mesma, isto é, o gênero, para poder alcançar uma real igualdade.

A hipersexualização não se converte em algo bom só porque vocês, homens, decidiram se coisificar a vocês mesmos também. É a hipersexualização que configura a nós, mulheres, como corpos e não como sujeitos. É o que nos impede, definitivamente, de sermos consideradas pessoas tanto quanto homens. Não neutralizem nossas reivindicações para poderem se sentir mais cômodos em nome de uma falsa transgressão.

Homens que participam da estética feminina atual: sigam o fazendo, mas não transformem nossa opressão em seu parque de diversões.

Que vocês possam dispor voluntária e livremente desse sistema se chama privilégio, não avanço social.


Tradução do artigo La falsa transgresión de la feminidad: otro privilegio masculino, de Elena de la Vara, publicado originalmente em julho de 2018 na Tribuna Feminista. Você pode ler o original em espanhol aqui.