autocuidado
Arte de Mariana Amaral, para o Grupo de Autocuidado da QG Feminista

Em maio de 2020, devido ao isolamento provocado pela epidemia de Covid-19, nós vimos que o sentimento de angústia das pessoas, em geral, estava crescendo e, no meio da militância feminista, não era diferente. Acreditamos que “o pessoal é político” e, bem como nos ensinaram Carol Hanisch e Audre Lorde, não podemos individualizar questões pessoais, por sermos seres complexos. Nós não abandonamos nossos seres políticos do lado de fora de nossas casas. Muito pelo contrário: nós dormimos e acordamos seres políticos. Por isso, a integridade psíquica e física das nossas companheiras nos importa tanto. Nosso pessoal e nosso político são partes igualmente relevantes que constituem o nosso ser.

Nós somos mulheres acostumadas com a militância no mundo virtual, mas também atuamos em espaços físicos. Muitas de nós organizamos caminhadas, protestos, palestras, grupos de estudo, coletivas, panfletagens e diversas outras atividades para o despertar de consciência crítica feminista. Contudo, o isolamento suspendeu todas essas atividades. Percebemos, então, que muitas feministas começaram a se sentir desconectadas da militância e desconectadas umas das outras.

Somos uma coletiva que produz vasto material e que está atuante no mundo virtual, e mesmo assim o sentimento de solidão e não pertencimento aflorou em muitas de nós. Diante disso, compreendemos a importância do autocuidado entre militantes, porque, para continuarmos na luta, precisamos estar bem com nós mesmas. Como feministas, acreditamos que nos fortalecemos juntas, compartilhando nossas experiências e sentimentos.

Foi com esse propósito que criamos na QG Feminista um grupo de autocuidado, que nos aproximasse, onde pudéssemos buscar acolhimento entre irmãs, e no qual pudéssemos fortalecer umas às outras para continuarmos nossa luta diária no feminismo.

Ativistas e militantes devem estar cientes que, ao contrário do que se possa crer, durante períodos de isolamento social, seja provocado pela distância entre pessoas localizadas em estados diferentes, seja determinado por uma pandemia, mulheres e crianças se encontram em riscos ainda maiores, o que acaba demandando ainda mais ações coletivas organizadas. A luta pela transformação social demanda estarmos firmes e fortes, principalmente quando a maior parte das pessoas está reclusa em casa. O movimento feminista não para.

Nesse sentido, a nossa primeira tarefa foi ler o livro “Bem viver para a militância feminista”, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), para nos ajudar a desenvolver estratégias de como nos cuidar melhor. Além de também conhecer práticas feministas que outros grupos realizam, porque acreditamos na importância de aprender com outras mulheres que vieram antes de nós e com as que estão na luta agora.

Vivemos em uma época de perseguição a militantes. Existe uma vontade forte, por parte de alguns setores sociais, de criminalizar diversas lutas pelos direitos humanos. O clima de perseguição e silenciamento produz um sentimento de insegurança em ativistas e militantes. Esse sentimento de insegurança aparece também no meio feminista, porque sofremos diversos ataques regularmente.

O feminismo encontra resistência em diversas frentes da sociedade. A depender da pauta, sofremos represálias de conservadores, de liberais ou dos ditos progressistas. Além disso, enfrentamos diariamente nos espaços públicos e nas nossas relações pessoais muitos desafios que podem acabar por nos afastar da luta. Se não nos sentimos bem, confiantes e seguras, dificilmente conseguiremos seguir na militância feminista.

O bem-estar de feministas, então, é de extrema importância para a luta, porque só assim podemos continuar resistindo às diversas dificuldades encontradas no caminho. Além disso, o bem-estar de todas as mulheres deve ser também uma preocupação do feminismo, porque o pessoal é político.

Não se pode pensar que o bem-estar é apenas individual, porque todas as questões que afetam as pessoas em geral estão entrelaçadas com a sociedade. Somos seres sociais, as nossas vidas não existem de forma descoladas do meio em que vivemos. O que as pessoas fazem refletem na sociedade e são também reflexos dela. É isso que significa o pessoal ser político. Os atravessamentos que afetam as mulheres, como seus problemas cotidianos, por mais pessoais que possam parecer, também devem ser pautas do feminismo.

Devemos também estar abertas a reconhecer as diferenças entre as mulheres. Os caminhos traçados pelas mulheres de diversas classes e etnias não são os mesmos. Além disso, a subjetividade de cada uma é importante. Nós somos diversas e essa diversidade é parte de nossa força. Audre Lorde diria que reconhecer onde nossos caminhos se cruzam e onde divergem é importante para avançarmos na luta, porque estamos conectadas como uma classe. Aprendemos sobre essas diferenças quando escutamos umas às outras e compreendemos que podemos aproveitá-las de uma forma que fortalece a todas nós.

Nos espaços de autocuidado feminista é possível adquirir habilidades de organização e de grupo, que não estão disponíveis em outras frentes de militância. Contudo esses espaços são raros. Muitas vezes não são nem pensados ou são deixados de lado como algo de menor importância. Mas não é. Historicamente, a reunião de mulheres é vista como perigosa. Nossas falas são interpretadas como fofocas ou mentiras. Se vivemos numa sociedade violenta, que nos descredibiliza e silencia, precisamos aprender a nos cuidar. Precisamos saber que temos uma rede de suporte e que sabemos como nos proteger dessa violência, não só fisicamente, mas mentalmente também.

Saber ouvir e se fortalecer, no entanto, demanda uma metodologia que possa ser eficaz para a não-formação dos chamados “grupos terapêuticos”, como nos ensina Aline Rossi, feminista e autora do blog Feminismo com Classe; ou como nos ensina Carol Hanisch, em seu famoso texto “O pessoal é político”. As experiências de mulheres devem servir para nos entender enquanto classe, para nos ajudar a tomar decisões coletivamente, para nos estimular a agir coletivamente e, como consequência, deve servir para nos fortalecer. Para engajar mulheres para a luta.

O medo e a sensação de impotência nos desestimulam. Assim, a mobilização da luta de mulheres acaba passando pelo bem-estar das militantes. Precisamos estar juntas e nos fortalecer, para o nosso próprio bem e o do movimento de mulheres. Precisamos sempre nos recordar do que aquilo que fazemos é importante.

A questão do autocuidado nos espaços feministas deve ser debatida. Como estão se sentindo as militantes (a saúde mental e o bem-estar) é muito importante para suas vidas e também para a própria luta. As mulheres que se sentem seguras e acolhidas nos espaços normalmente acabam se envolvendo mais e sendo mais comprometidas com a causa.

Fontes:
CFEMEA. Bem viver para a militância feminista. Brasília: Centro Feminista de Estudos e Assessoria, 2016. Disponível em: https://www.cfemea.org.br/images/stories/publicacoes/bem_viver_para_militancia_feminista.pdf
HANISCH, Carol. O Pessoal é Político. 1969. Tradução livre aqui: https://we.riseup.net/assets/190219/O+Pessoal%2B%C3%A9%2BPol%C3%ADtico.pdf
LORDE, Audre. A Burst of Light: and Other Essays. Ixia Press, 2017.
ROSSI, Aline. Um grupo terapêutico. 2020. Disponível em: https://medium.com/@feminismoclasse/um-grupo-terap%C3%AAutico-109eaf3b5d90

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