feminismo
como abolir o gênero

Se existe uma pergunta em comum que é feita para as feministas radicais tanto por pessoas críticas à teoria quanto por simpatizantes, é essa. Afinal, quem conhece — pelo menos um pouco — a teoria sabe que, depois de quase meio século de nascimento, essa pergunta permanece sem resposta pronta.

Pra quem está chegando agora, um pequeno resumo sem vergonha: o feminismo radical concebe o gênero como um sistema de opressão que estabelece uma hierarquia — portanto, uma relação vertical — entre pessoas que nascem com vagina e pessoas que nascem com pênis. O gênero é esse sistema que considera homens como naturalmente racionais, agressivos, lógicos; e mulheres, como maternais, carinhosas, passivas e santas. O gênero é a principal ferramenta do patriarcado, que é a forma como é estruturada a sociedade. O patriarcado, por sua vez, fez uma simbiose brilhante com o capitalismo, fazendo com que mulheres não sejam só naturalmente inferiores aos homens, como sequer humanas: são coisas. Posses. E os homens nos tratam assim, dispondo de nós e nos solicitando quando querem.

Só que tudo isso acontece pelo mísero fato de que nossa sociedade estabelece deveres, direitos, prerrogativas e expectativas pro ser-humaninho que acabou de nascer (ou nem isso) só com base no que ele tem entre as pernas.

Isso é gênero. É alguém ter escrito sua história antes de você, sem te dar direito à revisão.

Ok, o gênero oprime (todas as pessoas, mas principalmente) mulheres. Ponto pacífico até aqui? Então vem o problema:

Como abolir gênero, se ele atualmente está presente em todas as células da nossa sociedade, impregnado na nossa cultura, na nossa linguagem, na nossa formação, na nossa educação, no nosso Direito, no nosso Estado… enfim! Em todas as áreas da vida em sociedade?

Justamente assim: nesse trabalho de formiguinha, identificando tudo que o gênero afeta, todos as desigualdades que ele acarreta, em todas as áreas, e atuar em cada uma delas com a especificidade que elas têm.

Porque a principal ideia que o sistema de gênero impõe — isso é, a superioridade do homem frente à mulher, basicamente — se manifesta das mais diversas formas! Comportamentos, ações, músicas, imagens, tratamentos, remuneração, divisão do trabalho doméstico, obrigações e direitos, educação em todos os níveis, preço pra entrar na balada, diferenças de preços masculinos e femininos, produtos e serviços especializados e diferentes pra homens e mulheres, representação na mídia, representação política, decisões judiciais, contratação, e eu poderia escrever mais e mais exemplos por um dia inteiro aqui mas acho que vocês já entenderam.

Ficou decepcionada, né? Você queria um insight brilhante.

Mas não tem. Porque é isto: não tem resposta pronta. Não tem uma fórmula revolucionária a ser aplicada. Também não adianta atuar em uma frente só.

Mulheres foram afetadas pelo sistema de gênero ontem, estão sendo afetadas hoje e podem ser afetadas amanhã, se não conseguirmos pensar em formas eficientes de inibir a reprodução de pensamentos e ideias misóginos.

Temos, de cara, frentes de atuação importantes e cujas ações serão essencialmente diferentes: ações que gerarão respostas e efeitos a curto prazo, a médio prazo e a longo prazo — e a atuação de uma frente não anula nem contraria a atuação de outra, porque voltadas para necessidades, agentes e realidades materiais diferentes.

As ações com efeitos a longo prazo são as mais preciosas, porque tratarão de impedir que o sistema de gênero continue se reproduzindo. O principal foco desse tipo de ação é, naturalmente, a educação: cuidar pra que a próxima geração já cresça pensando diferente. O foco recai não só sobre a menina e a mulher, vitimizadas pelo sistema de gênero e que enxergarão no fim desse sistema sua libertação*, mas também sobre os homens e principalmente os meninos: estes crescerão pra não ver sentido na discriminação sexual, e aqueles criarão consciência da violência que perpetuam.

Ações com efeitos imediatos ou a médio prazo são igualmente importantes, porque tratam de melhorar as condições de vida das mulheres agora, no presente — porque enquanto algumas de nós, notadamente as brancas e mais abastadas, são afetadas pelo machismo apenas na área intelectual ou doméstica, outras morrem por conta dele. Não basta, por exemplo, que o menino chegue à sua casa contando pra mãe que aprendeu na escola que não existe brinquedo de menino e brinquedo de menina se essa mãe continua ganhando quase um um quarto do que ganha um homem branco executando sua mesma função. A ação com efeito a curto prazo não visa a uma mudança de mentalidade, porque sabe que isso não é tão simples. O foco não é a pessoa que produz e reproduz a violência criada pelo gênero; o foco é a mulher afetada por essa violência.

Exemplo: se queremos acabar com a dita desigualdade salarial, podemos criar nossas crianças pra tratarem todas as pessoas como iguais (respostas e efeitos a longo prazo), podemos tentar conscientizar o empresariado de como isso é uma atitude injusta, misógina e racista (respostas e efeitos a médio prazo) ou podemos estabelecer uma obrigação legal, prevendo multa pra quem a descumprir (respostas e efeitos a curto prazo).

Outro exemplo: se queremos parar com a representação da mulher negra na mídia como um ser exótico extremamente sexualizado, podemos (de novo) criar nossas crianças pra não discriminar ninguém nem por cor de pele nem por órgão sexual (respostas e efeitos a longo prazo), podemos tentar conscientizar as pessoas responsáveis por essas propagandas sobre como isso fere a autoestima e autoimagem da mulher preta e de como isso a prejudica ao contribuir pra construção de um imaginário social misógino e racista (respostas e efeitos a médio prazo), ou podemos criar uma agência reguladora de publicidade que impeça propagandas machistas e racistas de serem veiculadas (respostas e efeitos a curto prazo).

*Por fim, mas não menos importante: feminismo e capitalismo não combinam, porque enquanto existir capitalismo persistirá toda forma de exploração, e isso inclui a exploração da mulher — em outras palavras, enquanto existir o capitalismo, vai existir gênero. Assim, em última instância, a abolição do gênero também deve passar pela destruição do capitalismo.

É, realmente, uma empreitada hercúlea: se não houver esforços conjuntos da sociedade civil, do movimento de mulheres e, principalmente, do Estado (que pode atuar legislando, criando políticas públicas, investindo recursos em áreas específicas, financiando pesquisas sobre o tema… — enquanto existir, rs), a taxa de feminicídios por ano vai continuar crescendo mais rápido do que a taxa anual de meninas completando o ensino superior.

Temos que sair um pouco da internet, dos simpósios, dos seminários e dos grupos de estudos (que também são importantes, mas, de novo — e o curto prazo?) pra ir pra rua e cobrar o poder público, cobrar a prefeitura, o governo do estado, o Congresso, a secretaria da mulher, as pessoas candidatas dos partidos… porque essas entidades podem — e devem — ajudar nesse processo.

Enquanto isso, façamos barulho. Incomodemos! E muito! E mais, que tá pouco.

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