Gregory Ziborg, escreveu que: “… as milhões de feiticeiras, bruxas, endemoniadas e possuídas eram uma enorme massa de neuróticas e psicóticas graves… durante muitos anos, o mundo inteiro parecia ter se convertido em um verdadeiro manicômio…”
Essa reflexão propõe uma viagem ao passado, um transitar sobre-humano, um transmutar bruxa. Só voltando ao ponto zero dessa bruxaria que compreenderemos o correr dos nossos tempos. Precisamos acessar as verdadeiras narrativas das nossas bruxas ancestrais, afinal, muito do que se verbaliza, equivocadamente, no senso comum sobre esse acontecimento é pontuado através dos olhos dos nossos perseguidores, estamos em busca de um feminino ausente para torná-lo presente. E assim continuamos. Adentrar no universo das bruxas demanda tentar compreender a sequência de execuções de mulheres, durante mais de três séculos, em distintos países europeus, acusadas de terem vendido seu corpo e sua alma ao demônio, e por meio mágico assassinado várias crianças, sugado seu sangue, fabricado porções com sua carne, causado a morte de seus vizinhos, destruído gados, cultivos, provocado tempestades e realizado muitas outras abominações.
Essas narrativas opressoras ilustram a atmosfera mentirosa a qual muitas mulheres estavam sujeitas e deram início a uma vastidão de dor, ódio e morte. Durante vários séculos centenas de mulheres foram queimadas VIVAS, enforcadas e torturadas, o número exato de mulheres é uma questão controversa dentro da academia, afinal, muitos julgamentos não foram registrados e se foram o número de executadas não está especificado, além de inúmeros documentos que acumulam conhecimentos sobre o acontecimento ainda não terem sido estudados, ou pior, terem sido destruídos. Anne Barstow (1994) afirma que aproximadamente 200 mil mulheres foram acusadas de bruxaria em três séculos, sendo a menor parte delas executada. Outras teóricas acreditam que essa numeração não faz jus aos séculos de perseguição, subnotificação e morte, e afirmam que o número de mulheres executadas equivale ao número de judeus assassinados na Alemanha nazista.
A ideia desse texto é revisitar esse passado, muitas vezes oculto — das bruxas — para buscar nele algumas respostas para o presente, sendo esse caminho de volta um importante exercício de aprofundamento. Desvendar o passado, procurando nele as fontes que nos permitem questionar formas de ver, sentir e representar o mundo hoje. Sendo, sem dúvida, uma prática constante que nos faz reelaborar as formas de interpretação das coisas que nos cercam. O episódio das caças às bruxas, raramente aparece na história, até hoje continua sendo um dos fenômenos menos estudados na história da Europa (Midelfort, 1972), ou talvez na história mundial, a eliminação das bruxas das páginas da historia contribuiu para banalizar sua eliminação física na fogueira, sugerindo que foi um fenômeno com significação menor, quando não uma questão de folclore. E quando era relatado, como já apontou Mary Daly em 1987, toda literatura sobre esse tema foi escrita de um ponto de vista favorável à execução das mulheres, o que desacreditava as vítimas da sua perseguição, retratando-as como fracassos sociais. Poucas são as teóricas que emergiram nesse cenário preocupadas com a verdade.
Foi apenas impulsionada com o advento do movimento feminista, graças à identificação das feministas com as bruxas e muitas como bruxas e, especialmente, da prática de resgate e do contar histórias das mulheres pelas mulheres (herstory) que o fenômeno da caça às bruxas emergiu da clandestinidade. E o que foi esse episódio? Por que foi tão importante? Alguns dizem “antigamente, quando as bruxas existiam…”, mas eu insisto que as bruxas nunca deixaram de existir. E os conhecimentos que são passados de mãe para filha, de avó para neta, de vizinha para vizinha, amiga para amiga, são os elementos que fazem essa historia ser presente (Ehrenreich e English, 1973).
Antes de pontuar exatamente como ocorreu a queima das bruxas é necessário elucidar nossas mentes com a ideia de que as mulheres sempre foram bruxas, curandeiras e parteiras. Elas foram as primeiras médicas e anatomistas da história ocidental. Eram também enfermeiras, conselheiras e realizavam abortos. Foram as primeiras farmacêuticas com seus cultivos de ervas medicinais, compartilhando os segredos dos seus usos. Durante séculos, as mulheres foram médicas sem diploma, excluídas dos livros e das palestras, aprendendo umas com as outras e passando suas experiências entre vizinhas e de mãe para filha. As pessoas as chamavam de mulheres sábias, ainda que para as autoridades fossem bruxas, charlatonas ou impostoras. A medicina tradicional, que é essa das mulheres, dos povos tradicionais, dos quilombolas, das indígenas, não a corporativistas da atualidade, forma parte da nossa herança como mulheres, é nossa história, nosso direito inato.
Entretanto, ao longo da nossa história, uma série de acontecimentos como a caça às bruxas, o surgimento da medicina pautada só por homens, mudaram o rumo do “cuidar” e relegaram as mulheres papéis secundários, automáticos e não criativos nesses espaços de cura. A opressão das trabalhadoras sanitárias e a predominância dos profissionais masculinos não são resultados de um processo “natural”, diretamente ligado à evolução da ciência médica, nem muito menos produto de uma incapacidade das mulheres para realizar o trabalho de curadora. Ao contrário, essa situação é a expressão de uma tomada de poder ativa da parte dos profissionais masculinos que começou lá atrás, na caça às bruxas. É importante ressaltar que a caçada ocorreu majoritariamente entre as mulheres europeias, todavia, essa política, talvez, não com essa magnitude, perpetua-se até hoje no mundo todo. No Brasil existe a a criminalização do curandeirismo[1], mais que isso, o mecanismo da caça vai além e se apresenta sempre que o capitalismo precisa, é um mecanismo que se repete, ainda que com outras vestimenta, sempre que o capitalismo passa por alguma crise e precisa se reafirmar. Atualmente, está vestida através da crescente violência contra mulheres, negros e grupos LGBTQ. Não se pode pensar a caça às bruxas como algo que já passou.
O recorte histórico da caça às bruxas decorreu em mais de quatro séculos (do século XIV ao XVII), desde seu início na Alemanha até sua introdução na Inglaterra. A perseguição às bruxas iniciou-se nos tempos do Feudalismo e durou — com crescente virulência — até a “Idade da Razão” (Iluminismo). Adotou diversas formas segundo o momento e lugar, mas sem perder em nenhum momento sua característica essencial de campanha de terror desencadeada por uma classe dominante dirigida contra a população camponesa do sexo feminino.
E ao longo desses tempos, vai-se construindo progressivamente a demonização de certas práticas ancestrais, que até então eram relativamente aceitas e reconhecidas. Tais práticas, fortemente relacionadas com a vida, o nascimento, a saúde, o amor, a sexualidade e a morte estavam, no geral, em mãos femininas. Assim, estando as mulheres mais próximas do conhecimento a respeito do uso das ervas, da medicina popular e até mesmo da higiene, além das supracitadas práticas, a sua associação com o universo mágico foi se fortalecendo. A relação das mulheres com os partos, a alimentação, a higiene, em suma, com o corpo e a saúde ocasiona uma mescla de sentimentos que variam entre a admiração e o medo, o que culmina na demonização dos saberes femininos relacionados à vida. Essas mulheres sábias, herdeiras de conhecimentos ancestrais, em meados do século XV ainda não eram conhecidas como bruxas, mas já se especulava que poderiam estar envolvidas com espiritualismo, magia e feitiços.
A execução das bruxas, o maior generocídio (genocídio de gênero) da história, começou a publicação em 1486 do Malleus Maleficarum[2], — o martírio das bruxas- de Kraner e Sprenger, conhecido como a bíblia dos inquisidores, responsável por construir a imagem da bruxa como uma figura a ser eliminada, buscando minar os amplos conhecimentos das mulheres como se fossem obras demoníacas ou meios de causar mal à sociedade. Antes dessa data já existia na sociedade, durante o século VII e VIII o conceito de “bruxaria” e já se perseguia certos segmentos árabes “sarracenos” que se acreditava que eram especialistas nas artes mágicas, mas nunca houve julgamentos, nem execuções em massa.
A acusação de bruxaria abarcou uma infinidade de delitos, desde a subversão politica à heresia religiosa até a imoralidade e a blasfêmia. Mas existem três acusações principais que se repetem ao longo da história da perseguição às bruxas em todo o Norte da Europa. Antes de tudo, acusavam-nas de todos os crimes sexuais concebíveis contra os homens. Nitidamente, sobre elas pesava a “acusação” de possuir uma sexualidade feminina. Em segundo lugar, acusavam-nas de estar organizadas. A terceira acusação, finalmente, era de que possuíam poderes mágicos sobre a saúde, que podiam provocar um mal, mas também que tinham a capacidade de curar. Frequentemente, eram acusadas especificamente de ter conhecimentos médicos e ginecológicos.
Esse imaginário da bruxaria como uma grande ameaça foi semeado em toda a sociedade e no século XVI começaram a aumentar drasticamente o número de mulheres julgadas como bruxas, além disso a perseguição deixou de acontecer apenas no âmbito da Igreja, da Inquisição e também passou a ser julgada em cortes seculares (Monter, 1976). A caça às bruxas alcançou seu ápice em 1580, multiplicaram-se as fogueiras, o Estado começou a incentivar a denúncia e a própria caça. Em muitos estados, como a Inglaterra estabeleceu-se que a bruxaria ia ser penalizada com a morte e a perseguição foi legalizada em três atos, em 1542, em 1563 e em 1604. A Escócia, a Suíça, os Países Baixos também aprovaram leis que fizeram da bruxaria um crime.
Os mecanismos de perseguição às bruxas confirmaram que a caça não foi um processo espontâneo. Houve um firme processo de doutrinamento, no qual as autoridades viajavam de aldeia em aldeia expressando publicamente suas preocupações, ensinando como as pessoas iriam reconhecê-las, em muitos casos levando consigo listas de mulheres suspeitas e ameaçando castigar aqueles que dessem asilo ou lhe oferecessem ajuda (Larner, 1983). A caça também foi a primeira perseguição que usou propaganda multimídia com objetivo de gerar uma psicose em massa entre a população, existiu a produção de cartazes e panfletos que publicizavam os julgamentos mais famosos e os detalhes dos seus feitos mais atrozes. Juristas, intelectuais, artistas, figuras importantes da aristocracia estavam envolvidos e eram portadores das campanhas. Por isso, não pode haver dúvida que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de grande importância, reforçar esse ponto não significa minar o papel que a Igreja Católica teve na perseguição, especialmente porque forneceu o arcabouço metafísico e ideológico para a caça. Mas contrariando o estereótipo não foi produto apenas desse segmento, no seu apogeu as cortes seculares conduziram a maior parte dos juízos.
“Homens advogavam que as bruxas deveriam ser queimadas vivas, em vez de “misericordiosamente” estranguladas antes de serem atiradas às chamas; que deveriam ser cauterizadas, de forma que sua carne apodrecesse antes de morrer e que seus filhos também deveriam ser queimados”.
A caça às bruxas deve ser reconhecida como um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvimento da sociedade capitalista, isso porque desencadeou uma campanha de terror contra as mulheres nunca antes vista. A caça aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais. Se consideramos o contexto histórico, o gênero e a classe das acusadas, bem como os efeitos da perseguição, podemos concluir que a caça as bruxas foi um ataque à resistência que mulheres apresentavam contra a difusão das relações capitalistas e contra o poder que que obtiveram em virtude de sua sexualidade, de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade de cura (Federicci, 2017:305). Também foi um instrumento da construção de uma nova ordem patriarcal em que os corpos das mulheres, seu trabalho e seus poderes sexuais e reprodutivos foram colocados sob o controle do Estado.
Dessa forma, a caçada, foi um mecanismo inteligente para sequestrar das mulheres toda a autonomia de que desfrutavam. As “bruxas”, postas como “servas do diabo”, eram todas mulheres sábias, independentes, irreverentes e muitas vezes pobres e solteiras. Enquanto morriam nas fogueiras, queimava junto com elas a resistência ao incipiente capitalismo. Ocorreu assim, muito lentamente, todo um processo que consolidou a estrutura patriarcal sob o capitalismo (patriarcalismo): uma separação da produção e da reprodução, e uma hierarquização da divisão sexual do trabalho, explicando que, enquanto as mulheres eram condenadas como bruxas ou relegadas ao lar, os homens passaram a trabalhar fora de casa e a receber um pagamento por isso. O que sobrou para as mulheres, então, foi o trabalho reprodutivo — ter filhos, ou, em outras palavras, reproduzir a mão de obra. O grande problema é que a reprodução dentro do sistema capitalista não é vista como um trabalho, mas como um dom natural, biológico. Por isso, as mulheres foram, pouco a pouco, afastadas do trabalho e tornando-se dependentes dos homens, já que eram eles ganhavam dinheiro. Por ter sido implantada de forma tão gradual, a opressão feminina e seu afastamento do trabalho passaram a ser vistos como normais, quando, na verdade, eram bases criadas para o sistema capitalista, e que funcionam até hoje.
Saiba mais:
Bruxas paulistas: pesquisa resgata história de mulheres acusadas de feitiçaria. O ano era 1754 e o local, a Justiça Eclesiástica, na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo. As rés, Thereza Leyte e Escholástica Pinta da Silva, mãe e filha, estão no tribunal do Santo Ofício acusadas de terem feito um pacto com o demônio e matar o primeiro marido de Escholástica, Manoel Garcia, utilizando feitiçarias.
Bruxas paulistas: pesquisa resgata história de mulheres acusadas de feitiçariaO ano era 1754 e o local, a Justiça Eclesiástica, na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo. As rés, Thereza Leyte e…jornal.usp.br
· Bruxas, Parteiras e Enfermeiras: Uma história das curandeiras, de Barbara Ehrenreich e Deirdre English.
Bruxas Parteiras e EnfermeirasBruxas parteiras e enfermeiras: Uma história de mulheres curandeiras Barbara Ehrenreich e Deirdre English “Nossa…monstrodosmares.com.br
Disponível para download grátis:
https://drive.google.com/file/d/0B9PMZ1w3n1qJVmhYYUVPVlNEUGs/view
· Calibã e a Bruxa, de Silvia Fderici.
Calibã e a bruxaAs acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas…www.editoraelefante.com.br
· Blog: Curandeira de Si, de Carolina Lana.
Surgiu através da própria busca pela cura do feminino sagrado. Cada mulher é uma curandeira e possui dentro de seu próprio corpo o poder de curar a si mesma e suas irmãs. Nós estamos conectadas através da energia do sagrado feminino, somos uma e todas ao mesmo tempo. Nesta corrente de amor e união podemos juntas nos curar.
HOME – Curandeiras de sihttps://www.curandeirasdesi.com.br/wp-content/uploads/2019/05/RODA-DAS-CURANDEIRAS-5.png 350 600…www.curandeirasdesi.com.br
· Herstory: Una historia ilustrada de las mujeres, de MARIA BASTAROS, NACHO MORENO e CRISTINA DAURA.
https://www.amazon.com.br/Herstory-historia-ilustrada-mujeres-Illustrated/dp/8426404863
[1]O Curandeirismo é crime constituído no Capítulo III — Dos Crimes Contra a Saúde Pública, no Título VIII — Dos Crimes Contra a Incolumidade Pública, posterior aos crimes de Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica (Art. 282) e de Charlatanismo (Art. 283).
[2]Kraner e Sprenger ofereciam instruções detalhadas sobre o uso da tortura para arrancar confissões e novas acusações. Como regra geral, se despia a acusada e depilava-se todos os seus pelos. Logo, amassavam seus dedos, colocam-nas no cavalete (para estirar-lhe o corpo), torturavam-nas com pregos, colocavam “botas” para quebrar-lhes os ossos, deixavam-nas sem comida e espancavam-nas. A conclusão é evidente: a fúria da caça às bruxas não surgiu espontaneamente entre a população camponesa. Foi o resultado de uma campanha calculada de terror da classe dominante. Durante três séculos, todos os juízes e todos os inquisidores tiveram este sádico livro sempre ao alcance das mãos.