feminismo
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“Você é uma bruxa”, disse-me a companheira. Minha melhor amiga e eu estávamos no apartamento dela bebendo cerveja, conversando e rindo de nossos problemas. Eu fazia uns seis meses não saía de alguns situações bastante cabulosas, que na realidade todos tinham a ver com o feminismo. Preocupava-me que, pouco a pouco, minha vida estava se convertendo nisso: nunca sair de bagunça alguma por cutucar o patriarcado com vara curta.

A companheira tem o dobro da minha idade. Sua personalidade sempre me causou grande admiração: é muito inteligente, bullosa e corajosa. Chama-se Gloria. A maioria das pessoas que a conhecem pensam que ela assusta. Cá entre nós, também me assusta, entretanto mais do que isso, ela me causa inspiração. Ela dedicou a sua vida inteira a trabalhar para erradicar a violência contra a mulher; é a sua missão. Talvez seja por isso que, ainda que na realidade seja muito simpática, ela sempre parece estar a dois segundos de agarrar uns fósforos e botar fogo em tudo. Sempre que eu estou com problemas, gosto de escutar e aprender com as companheiras feministas mais velhas. Elas viveram mais tempo nessa cultura machista, em meio a contextos legais e sociais mais áridos e, portanto, essa desproteção significa que o patriarcado lhes deu mais trabalho. Quando pedi à minha melhor amiga que fôssemos ver aquela companheira, mais do que uma visita de cortesia, sentiu-se como uma visita a um oráculo.

“Você é uma bruxa. E essa aqui é outra bruxa”, disse apontando para a minha amiga, também uma tremenda revoltada. “E eu também sou uma bruxa”, disse, levantando o copo de cerveja. Embora eu não admitisse nesse momento, eu tinha muito medo e me sentia muito insegura. Como mulheres, fomos criadas para ser sempre muito agradáveis e ser queridas. É uma estratégia de socialização que garante a nossa submissão, já que nos obriga a colocar os desejos e as opiniões das outras pessoas acima dos nossos. Provocar, questionar, raciocinar; tudo isso significa marcar posição e quando marcamos posição estamos impedindo que outra pessoa interponha a sua posição sobre a nossa. Isso tipifica como um Crime de Pensamento Tipo III, no regulamento do Funcionamento do Patriarcado.

Mas isso são raciocínios teóricos… eu pessoalmente não fui imune a essa mesma socialização. Então eu não esperava o momento em que saísse daquele caos e voltar à minha vida, mais ou menos chata. Porque na verdade (e isso eu digo em confidência a vocês), sou uma menininha pacífica e até certo ponto eremita. Ter que lidar muito com as pessoas me causa estresse, e estar em conflito com gente me dá coceiras. Mal sabia naquela tarde de outono em que conversava com companheiras, que depois dessa situação eu iria me meter em outro problema e depois desse, mais outro. Vocês nem imaginam o tremendo problemão em que estou metida agora!

Mas é que isso é o movimento. Eu podia facilmente escrever novelas históricas, que me fascinam, e me dedicar a analisar literatura barroca. Mas não. Eu escolhi a luta feminista… ou será que o patriarcado mexeu comigo e me converteu em feminista inadvertidamente? Se você está lendo, é provável que você ou escolheu a luta ou foi escolhida por ela. Então, sim mais delongas, falemos sobre o nosso movimento.

Se prestamos atenção detidamente, nos damos conta de que o movimento está atravessando um dos seus momentos mais difíceis, complexos e perigosos.

Se considerarmos a mídia de massa, diríamos que o movimento feminista vive o seu melhor momento. Graças aos esforços das mulheres que batalharam nas gerações passadas, hoje em dia todo mundo parece ter uma opinião sobre o assédio sexual: o que constitui ou tipifica isso, que tipo de consequências cada coisa deveria acarretar, será que estamos falado demais ou muito pouco sobre o assunto… Essa conversa coletiva representa um avanço, que se une a muitos outros avanços que as mulheres e meninas estamos colhendo, após décadas de esforços de nossas companheiras mais velhas.

Mas como o feminismo é um movimento que concerne, primordialmente, a 3,5 bilhões de pessoas, em contextos culturais e legais diferentes, com todo tipo de intersecções que devem ser levadas em consideração, isso quer dizer que temos muitos fronts abertos. Sempre em excesso, com um só denominador comum: nosso sexo biológico.

E ainda que na mídia de massa nos vendam a ideia de que deveríamos cantar vitória pelo tardio reconhecimento que alegam estar “desfrutando” o movimento nesses momentos, isso é a mídia de massa. E se há algo que sabemos sobre os meios de comunicação, é que só nos contam metade da realidade… no máximo.

Se prestamos atenção detidamente, nos damos conta de que o movimento está atravessando um dos seus momentos mais difíceis, complexos e perigosos. Particularmente, em termos de direitos legais de mulheres e meninas já conquistados. Se o feminismo está no seu melhor momento, por que as mulheres na Inglaterra temos que nos reunir em segredo para debater sobre as implicações de mudanças legais a partir de uma lei sobre o gênero? O lógico é que se todas, todos e todes temos gênero, então todo mundo tem direito a debater sobre gênero. Por que então temos tido que contratar segurança para garantir que não aconteça nada com as mulheres (e aliados) que venham ao nosso próximo evento? Por que temos que manter o lugar do evento secreto? Por que tão secreto? Bom, eu estou presidindo o evento, que ocorrerá em oito dias, e eu mesma não sei onde será… de tão rigorosas têm de ser as medidas de segurança. Por que se se supõe que nosso movimento está mais aceito que nunca, eu estou recebendo ameaças violentas e enfrentando uma campanha de difamação, só por me atrever a presidir um painel feminista?

Nunca, nos anos que tenho de ativismo, havia tido que aprender táticas tão circunspectas. Nem sequer quando realizamos um protesto contra o então candidato presidencial estadunidense Donald Trump, tive que tomar tantas precauções.

Por que após o meu último artigo sobre sexo e gênero, não param de me escrever mulheres que me confessam em confidência, que elas também “faz muito tempo estão questionando tudo isso do gênero” e “o que está acontecendo com o movimento”, mas que têm medo das repercussões que podem sofrer se questionam em voz alta? Nota editorial: não deixem de me escrever, por favor, que não me incomodo. Só me preocupa que esse seja o nível de censura que existe dentro do movimento.

Se o feminismo está indo de vento em popa, por que há tantas companheiras com medo de que, se questionam alguns assuntos, e se não pronunciam o discurso aprovado pelos seus superiores, tal qual, vão sofrer um linchamento simbólico, e até ameaças de morte, por parte de pessoas que dizem ser nossos aliados progressistas? A maioria das companheiras que me leem sabe perfeitamente do que estou falando. Mas se você não se deu conta, sugiro que se atualize, pois já é hora de termos essas conversas em público e não como sussurros atemorizados.

O feminismo atravessa o seu melhor momento, mas o que é o feminismo? É curioso… mas parece que justo agora surgiu numa profunda confusão sobre quem somos e o que queremos.

Em dezembro, o dicionário estadunidense Merriam-Webster selecionou a palavra “feminismo” como a palavra do ano 2017. Quando vi la notícia, este coraçãozinho cínico meu pensou “claro que botaram uma definição super insossa, como essa que diz que o feminismo é acreditar na igualdade.” Mas, felizmente, eu me equivoquei. A definição ganhadora foi decente. Segundo o dicionário o feminismo é “a teoria da igualdade política, econômica e social dos sexos” e “atividade organizada em nome dos direitos e interesses das mulheres”.

A poderosa organização de lobismo feminista Ms. Foundation for Women [Fundação Ms. Pelas Mulheres. Ms. é uma revista feminista americana fundada em 1971] celebrou a notícia anunciando “O que é o feminismo? É a palavra do ano segundo o dicionário Merriam-Webster!” E em seguida, ofereceram a sua própria definição: “Caso não se lembrem: o feminismo é a igualdade social, política e econômica de todos os gêneros”.

Eu nunca havia visto uma definição do movimento tão despolitizada como essa promovida pela Ms. Foundation for Women, e olhem que já vi muitas. Essa definição, débil e confusa, é uma concessão ao patriarcado. É dizer ao sistema de supremacia dos homens: “Sim, eu sei que a vocês incomoda que nós mulheres falemos tanto sobre feminismo. Mas vejam, que tal se nós trocássemos as definições do feminismo, apagando todo rastro das dinâmicas de poder e a opressão dos homens sobre as mulheres, para que vocês se sintam mais cômodos?” É ceder não só o argumento, mas também o movimento.

Será que o feminismo está se tornando popular justamente porque estamos aceitando passivamente a descentralização das mulheres do nosso próprio movimento?

Mas poderia ter sido muito pior.

A popular revista estadunidense sobre ativismo feminista Everyday Feminism alega que não só devemos tirar as mulheres do centro do movimento, mas além disso insistir em dizer que o feminismo é um movimento que busca a libertação das mulheres é “danoso” e “prejudicial” … E eu pergunto: para quem?

Em um artigo intitulado “É o feminismo um movimento só para mulheres, ou é sobre todas as formas de opressão?”, a escritora e estudante de filosofia Celia Edell argumenta que na realidade há dois tipos de feminismos: um que “luta para acabar com todas as opressões” e outro que é “feminismo centrado nas mulheres”. Segundo ela, o mau e opressor é o segundo… Esses são aspectos ilustradores no caso de você não ter se dado conta de por como anda a coisa.

Edell argumenta:

“O feminismo nos faz pensar em um movimento enfocado nas mulheres, que luta pela libertação da mulher da opressão patriarcal. Esse movimento tem várias décadas e tem enfocado as iniquidades legais, o voto da mulher, a reforma do sistema de educação, desigualdades culturais, papéis de gênero, feminilidade etc.

Mas esse feminismo é danoso e potencialmente prejudicial. Prejudica as minorias de gênero e as mulheres trans, pois se centra na opressão, e somente na opressão e experiências das mulheres cis. Algumas feministas se identificam com a noção de que o feminismo busca a libertação da mulher, e embora isso seja tecnicamente correto, esta definição não encapsula todas as maneiras pelas quais diferentes tipos de opressão afetam as mulheres. Tampouco toma em conta as opressões que afetam pessoas que não são mulheres”.

Quem representa uma “minoria de gênero” senão as mulheres e meninas? Pareceria que, sob essa nova conceituação, nós somos na realidade parte da classe dominante. Na sua argumentação Edell conclui dizendo: “o feminismo é uma coleção de movimentos que reconhece todo tipo de opressões que afetam a todo tipo de pessoas”.

Vá lá e prepare uma xícara de chá de camomila para não baixar a pressão. Eu espero.

Já voltou? Bom, vamos começar!

Pessoalmente, não vou dizer nada sobre a ideia de que o movimento feminista “tem várias décadas” (quando a sublevação das mulheres e meninas contra a sua opressão é milenar), mas isso de que no feminismo não podemos focar nos direitos das mulheres é delicado e tem que ser analisado direitinho. Veja também como essa argumentação não menciona a principal luta do movimento: acabar com a violência machista.

O que é isso? Por que justo quando mais necessitamos de definições fortes, de repente tudo se dilui? Imaginem um dirigente sindical que diz a outro dirigente “Companheiro, cuidado com isso de socialismo que estamos excluindo os capitalistas”. Imaginem também os ambientalistas dizendo “Tenha cuidado com esse discurso focado em salvar a natureza. Que na realidade a nossa luta são todas as lutas, por todas as causas, que afetam a todas as pessoas, seres vivos, não-vivos, demais planetas, a Via Láctea, outras galáxias…”

Às vezes é difícil explicar qual é o problema com essas conceituações, mas imaginem uma prominente organização socialista dizendo que o socialismo é “libertação para todas as classes” ou o Black Lives Matter dizendo que o seu propósito é “libertar todas as raças”.

Imaginem um dirigente sindical que diz a outro dirigente “Companheiro, cuidado com isso de socialismo que estamos excluindo os capitalistas”.

Por que o feminismo tem que ser o único movimento que tem de estar tão diluído, tão sem dentes, tão apologista e desfocado sobre os seus propósitos? O problema é mais insidioso: se nós não fizermos um esforço deliberado para centrar e problematizar a supremacia dos homens em um sistema patriarcal, damos lugar à ideia de que as nossas opressões como mulheres são o fruto de falhas individuais de cada uma de nós.

Cuidado com isso.

Já falamos que há homens que temem que ao mencionar as palavras misoginia, sexismo e patriarcado os testículos deles vão cair. Pois eu quero mais é que caiam! Também há mulheres que preferem perder um ovário a se colocar em contraposição ideológica aos fins do patriarcado… Amiga, no mínimo se poupe! Essa cansativa negociação constante de querer popularizar o movimento sem mencionar claramente quem somos e por que lutamos, nem ter que sujar as mãos com as batalhas e assuntos difíceis, não nos ajuda.

Por que justo no momento em que o nosso movimento precisa que sejamos mais fortes e corajosas, recebemos mensagens de que temos que ser extremamente complacentes, relaxadas e pudicas? De que o nosso movimento é tudo e nada… Nenhum movimento é sustentável sem definições claras e objetivos específicos.

Isso não é novo: acontece em todas as décadas. Sempre que ganhamos um centímetro, temos que cuidar para não perder um metro no retrocesso, devido ao revanche que acompanha cada êxito e vitória. Mas temo que talvez tenhamos demorado muito e nos dar conta de que também agora, especialmente agora, que nos dizem que o feminismo está no seu melhor momento, não podemos sentar em nossos louros, se é que temos algum louro onde nos sentar. Pelo contrário, temos que estar mais vigilantes do que nunca.

De modo que nesse 2018, eu me atrevo a argumentar que necessitamos de um feminismo menos complacente? Que já que rompemos a barreira de ser populares, o suficiente para chegar ao topo de um dicionário do establishment, nos atrevamos agora a deixar a paranoia de ser sempre solícitas e nunca ofender ninguém e nunca dizer as coisas com firmeza para que ninguém se sinta intimidado? Atrevo-me a isso e mais.

Eu creio que parte dessa apreensão se deve à maneira pela qual as mulheres fomos socializadas para sempre agradar. Como explica a companheira nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, a sociedade nos inculca que “agradar” é uma parte intrínseca do ser mulher.

Ngozi Adichie teoriza:

“Creio que nossa sociedade ensina às meninas que ser agradáveis e se dar bem é uma parte essencial de ti e do lugar que ocupas no mundo. Que temos que nos contorcer e nos moldar para ser mais agradáveis, que temos que nos frear, ficar para atrás, nunca dizer, nunca insistir, porque queremos ser agradáveis.

E eu digo que isso é uma porcaria.

Então a minha mensagem para as meninas e as jovens é: esqueça de ser legal. Se você acha que deve ser assim, nunca contará a sua história com honestidade, porque você terá que se preocupar em não ofender ninguém. E isso vai arruinar a sua história, então esqueça de ser agradável. E, além disso, o mundo é um lugar tão maravilhoso, diverso e multifacetado, que lhe garanto que vai acabar agradando alguém: não há motivo para estar se contorcendo e se moldando para agradar aos outros”.

Parece que Chimamanda Ngozi Adichie é outra orácula.

Quando a companheira me disse que eu era uma bruxa, mais do que uma acusação, senti isso como uma revelação. Como se a companheira estivesse me revelando um segredo que eu já sabia, mas que não queria admitir nem a mim mesma.

As bruxas, essas que foram vilipendiadas ao longo da história, estavam envolvidas em todo tipo de problemas. Não eram complacentes com quase ninguém e desagradavam a mais pessoas do que as que com elas simpatizavam. O movimento feminista busca desmantelar o sistema de opressão mais colossal que a humanidade já conheceu: aquele que subordina metade da população que habita esse Planeta Terra. Se a versão bacana do nosso movimento feminista agrada todo mundo (particularmente ao sistema), é porque há algo de errado e temos que questionar seriamente os nossos objetivos.

Não sou religiosa, mas rezo para que todos os dias nasçam mais bruxas. E oxalá as que já somos, sejamos todos os dias ainda mais bruxas.


Raquel Rosario Sánchez é escritora dominicana. Especialista em Estudos da Mulher, Gênero e Sexualidade. Arde pelo desmantelamento do patriarcado em sua totalidade, mas muito especialmente, ansiosa para ver o fim da violência contra meninas e mulheres. Todas as violências.


Tradução de artigo de Raquel Rosario Sanchez para Tribuna Feminista