Sobre homens nas organizações feministas
Sobre homens nas organizações feministas

Um diálogo corriqueiro sobre militância mista

– Homens poderão participar também, certo? — ela fez a pergunta. O raio da pergunta.

– Hmmm… acho que, pelo menos nessa fase inicial, é melhor não. Quer dizer, como é a primeira reunião, acho importante que as mulheres tenham a possibilidade de falar entre si sobre isso antes que homens possam estar presentes.

– Entendi… Não concordo muito com isso. – disse-me ela.

– Também discordo. – disse a outra – A exclusão só faz mal à democracia.

Falávamos sobre a primeira reunião, a assembleia fundadora de um Movimento de Mulheres na nossa cidade. Respirei fundo. Se homens estavam assim tão interessados na nossa libertação, por que ainda estávamos aqui? Por que ainda tínhamos não a vontade, mas essa necessidade de nos reunir, de ser feministas, de ter um movimento que lute pelos direitos das mulheres?

Era como um dèja vú cíclico, já tinha vivido essa conversa tantas vezes e cansava estar sempre a explicar porque era importante, pessoal e politicamente, que mulheres tivessem um espaço exclusivo, sem a presença de homens, para debaterem as suas necessidades, teorizar as suas opressões e falar abertamente sobre as violências que partilhamos.

É a maternidade compulsória de sempre. Sim, porque maternidade compulsória não é só a imposição de ter filhos ou o fato de não poder escolher tê-los, como no caso de países em que o aborto é proibido e a maternidade incentivada culturalmente. Maternidade compulsória também é esse sentimento de responsabilidade sobre todos os demais, de ter que maternar homens como se fôssemos as mães de todo o mundo.

Sim, já estava cansada de ter essa conversa. Mas também sei que é importante adaptar o meu discurso para cada contexto – ao invés da postura colonizadora de impor meramente o que penso aos demais ou da postura arrogante de não dialogar com mulheres que não pensam como eu, considerando-as demasiado “liberais” ou “pouco instruídas”. Estas são posturas masculinistas, o feminismo não pode cair nessa fossa. E, aqui, ao perceber com que noções e ideias estava lidando, fiz o mesmo.

– Eu concordo completamente com isso. – respondi. – E não quer dizer que homens nunca participem de qualquer coisa que façamos. Só acho que as mulheres deveriam ter a oportunidade de debater isso entre si antes que eles, de fato, sejam integrados. É uma questão de priorizar mulheres e, já que vai ser a reunião inicial, de fazer disso uma decisão realmente coletiva e horizontal, sabem?

– Entendi. Faz sentido. – respondeu a primeira colega. – Eu penso às vezes que pode ser pouco efetivo se conversarmos apenas entre nós e não envolvermos homens, quer dizer… Como vamos promover a mudança assim?

Lá vinha a maternidade compulsória novamente. “As minhas amigas lésbicas aqui estariam tendo coceiras”, pensei comigo mesma. Essa sensação que as mulheres têm de que são responsáveis por educar homens para que… eles parem de nos matar? Parem de nos violar? Não é por falta de instrução que fazem isso. “Homens sabem que isso não é certo, amiga…” pensei.

Homens instruídos estupram, agridem, assediam, exploram. Homens que fazem as leis, as regras, que julgam outros homens que fazem isso, homens que criam os manuais de ciência e medicina, homens que lutam ao nosso lado nos movimentos sociais. Eles sabem como fazer, sabem se livrar disso, sabem que outros homens os livrarão disso, sabem que é moralmente errado e fazem. Quanto tempo mais vamos adiar encarar isto?

– Eu sei, mas não estou dizendo que homens nunca estarão envolvidos em nada. Perceba: existem dois níveis aqui. Um, é a organização interna. Outro, é a organização com a sociedade. Nós precisamos debater as coisas entre nós antes de levá-las para a sociedade em geral, caso contrário não teremos uma posição sólida ou argumentos para debater com quem, talvez, sequer tenha parado para pensar sobre isso em qualquer dia da sua vida. Nós estamos fundando um movimento na cidade, mas isso não quer dizer que toda a cidade vai participar sempre. Existem as pessoas que trabalham para o movimento existir, e existem as pessoas, da sociedade em geral, que simplesmente vão ler sobre nós, acompanhar os eventos públicos, participar nas atividades que fazemos “para fora”, não “para dentro”. Vê?

– Acho que estou começando a entender… – disse a segunda colega.

– Posso compartilhar minha experiência de militância. Não vou dizer que é assim para todo mundo, porque só sei da minha. O coletivo em que eu participava na outra cidade sempre foi aberto. Nós nunca dissemos “apenas mulheres podem participar”, nunca vetamos a participação de homens. Nossas reuniões eram convocadas publicamente, enviávamos convites para todos e quem quisesse aparecer, aparecia. Em três anos de coletivo, apenas um homem participou ativamente. Era um amigo gay imigrante, que esteve conosco por pouco tempo porque estava fazendo intercâmbio na universidade e teve de voltar. Ele era uma exceção e era muito consciente na sua participação. Ou seja, ele participava dos debates, colocava as suas perspectivas, ajudava nas tarefas e responsabilidades. Mas o mais importante: quando precisávamos votar e tomar decisões, ele se abstinha. Ele sabia que eram as mulheres que tinham de definir as pautas do seu movimento, votar as suas necessidades, tomar a frente das decisões que nos afetavam. Então ele nunca votava. Mas ele era uma exceção. – disse eu – E o fato de ter sido um único homem ao longo de três anos, quando tínhamos uma reunião por semana ao longo do ano e que nunca barramos ninguém de participar, é muito sintomático.

Eles sempre puderam participar, mas nunca quiseram. Nunca tomaram a iniciativa. Quando fazíamos eventos sim. Filmes, debates, angariação de fundos. Eles participavam em um número considerável, dialogavam, debatiam, ouviam. Mas aí o trabalho já estava feito. Eles não estiveram lá para fazê-lo, para dividir as responsabilidades.

Elas me ouviam atentamente. Aliás, todos nos ouviam. Estávamos no refeitório da empresa, almoçando, e de repente me dei conta que estava um grande silêncio no espaço, apesar de estarem ali muitos colegas. Todos ouviam a conversa. Então continuei:

– E tem outra questão ainda, isso foi algo que debatemos muitas vezes no nosso coletivo porque queríamos que fosse aberto a todos, horizontal e assembleário. Muitas mulheres que não têm experiência alguma em ativismo, mas que se juntam pela primeira vez a um coletivo, só aprendem a falar dentro dos coletivos. Nas reuniões. O que quero dizer é: muitas delas estarão a falar pela primeira vez sobre as violências que passaram e é nesse espaço seguro e de acolhimento que o coletivo representa que elas vão aprender a conectar experiências com outras mulheres. Falando sobre isso abertamente, sem medos, sem receios de serem mal interpretadas porque sabem que estão rodeadas de outras mulheres que viveram o mesmo ou que empatizam com o que elas viveram (porque se veem no mesmo lugar). E é em falar sobre isso abertamente que começam a entender a política por trás das suas experiências pessoais e começam a teorizar sobre isso e serem mais ativas socialmente. Mas para isso acontecer, elas precisam sentir que estão em um espaço seguro. O que nós vimos acontecer muitas vezes, em eventos abertos e debates públicos, é que a presença dos homens fazia as mulheres medirem suas palavras, pisarem em ovos para falar sobre suas experiências com medo de machucar os sentimentos dos homens ou de ofendê-los. Porque elas sabem que eles são os principais perpetradores das violências que elas sofreram, mas nesta situação ficam tão preocupadas em “deixá-los confortáveis”, porque “nem todo”, que não conseguem falar francamente ou analisar como precisam tudo que passaram. Imagine que a gente esteja debatendo estupro, assédio, sexo. Acha que mulheres falariam, na presença de homens, como falam na presença exclusiva de mulheres?

Ao meu lado, estava sentado um homem, um colega de trabalho. Dava para ouvi-lo engolir a comida. O refeitório estava um silêncio total.

– Você acha, então, que algumas mulheres deixariam de falar ou ficariam desconfortáveis se homens estivessem presentes? – perguntou a segunda colega.

– Eu acho que, se isso for uma possibilidade, não podemos arriscar– respondi – Estaríamos excluindo mulheres, que são as protagonistas da luta, para incluir homens, que são responsáveis por muitos motivos pelos quais ainda precisamos lutar.

Esperam que as pessoas negras e do Terceiro Mundo eduquem os brancos quanto à nossa humanidade. Espera-se que as mulheres eduquem os homens. Espera-se que lésbicas e homens gays eduquem o mundo heterossexual. Os opressores mantêm sua posição e evitam sua responsabilidade por suas próprias ações. Há um dreno constante de energia que pode ser melhor utilizada na redefinição de nós mesmos e na criação de cenários realistas para alterar o presente e construir o futuro. (Audre Lorde)