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Foi assim que eles quebraram nossas avós

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Antigamente, havia bruxas. Não. Nunca houve bruxas. Pelo menos não da forma como os homens disseram.

Antigamente, havia muitas tradições nativas de origem politeísta e animista no que é agora a Europa Ocidental. Seus costumes tinham níveis variados de respeito e autoridade com as mulheres. Eles tinham mulheres santas, mulheres curandeiras e líderes mulheres.

Antigamente, havia uma igreja que era um reino, construído sobre o corpo do Império Romano, que foi construído sobre o rapto e estupro das mulheres Sabinas. Na verdade, esta igreja era um principado, governado por príncipes que tinham um apetite por terra e ouro que era quase tão voraz quanto seu ódio ardente às mulheres.

Eles converteram os chefes de estado e exigiram o dízimo dos seus membros, deixando a maior parte do governo local por conta própria. Eles criaram um império muito primitivo, efêmero, transnacional, que exigia pouco pessoal e armamento, e se preocupava principalmente em governar o que é frequentemente classificado como a esfera privada.

Eventualmente, os estados-cliente da igreja tinham problemas em manter seus camponeses na linha, porque a igreja e a aristocracia queriam roubar toda a terra e privatizá-la através dos Cercamentos¹.

Como Sylvia Federici explica em seu livro, Caliban e a Bruxa, as autoridades seculares eventualmente atingiram o objetivo comum de dar tudo o que as mulheres tinham para os homens, incluindo as próprias mulheres. Os funcionários públicos não se esqueceram de explicar o valor econômico do trabalho das mulheres; pelo contrário, ele foi explicitamente descrito nos manuais de contabilidade — declarou-se não ter nenhum valor durante a era de apropriação de terras comuns. Os negociantes homens coordenavam os boicotes das concorrentes e dos homens que trabalhavam com elas. As mulheres que persistiam na tentativa de se envolver em negócios públicos eram perseguidas, chamadas de “prostitutas” ou “bruxas”, ou até mesmo agredidas sem nenhuma repercussão.

Eventualmente, ser uma mulher sozinha em público era quase sinônimo de ser uma bruxa ou uma mulher prostituída. A violência contra as mulheres era normalizada e sexualizada. As mulheres eram levadas cada vez mais à prostituição se não estivessem ao lado de homem ou se fossem expulsas da sociedade por meio de acusações de má conduta, relações não autorizadas ou abuso sexual. No comércio do sexo, em suas comunidades, os homens de honra poderiam torturar essas mulheres à vontade, suas vítimas sendo a única parte sujeita a sanção legal.

Com o objetivo de fazer sua parte na resolução do problema dos camponeses revoltados e adquirir sua própria parcela dos antigos bens comuns, a igreja se apressou em abençoar a destruição dos direitos e da independência das mulheres com o selo da aprovação divina. Seus sacerdotes inventaram bruxas. Ou seja, eles inventaram mulheres que adoravam e faziam sexo com o Diabo, e então lhes atribuía poderes ridículos — o que a historiadora feminista Max Dashu chama de “diabolismo” (satanismo). A igreja afirmou ainda que tudo o que não era aprovado como cristão era bruxaria.

Mais uma vez, não havia bruxas como a igreja as definia. A imagem pornográfica e diabólica descrita no Malleus Maleficarum² não se referia a nenhuma pessoa existente. Em sua maior parte, nem sequer se referia a coisas que são possíveis, apesar de algumas práticas espirituais e de saúde das mulheres nativas terem sido incluídas como evidência de feitiçaria.

“Bruxas” eram apenas mulheres. Isso é o que os homens queriam dizer, em suas próprias palavras.

“Toda maldade é pouco para a maldade de uma mulher… O que mais é uma mulher, senão a inimiga da amizade, um castigo inescapável, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejável, um perigo doméstico, um acidente deleitável, uma natureza maligna, pintada com cores justas… Quando uma mulher pensa sozinha, ela pensa mal… As mulheres são por natureza instrumentos de Satanás — são por natureza carnal, um defeito estrutural enraizado na criação original. “- Malleus Maleficarum

O satanismo tinha uma definição tão ampla, que qualquer rejeição feminina a autoridade masculina era uma evidência potencial de feitiçaria. Qualquer mulher poderia ser uma bruxa. Qualquer olhar ou palavra que ofendesse um homem, qualquer discurso irritado, qualquer confraternização desnecessária com outras mulheres, qualquer atividade sexual fora das relações aprovadas pela igreja — tudo isso poderia desencadear uma acusação de bruxaria.

As acusações também poderiam ser cobradas em ganho material, já que a igreja ou o estado poderia então apreender a propriedade do acusado ou cobrar-lhe multas elevadíssimas em troca de uma chance de liberdade. Judeus e muçulmanos também foram alvos, expandindo a visão do satanismo como sinônimo de não-cristão, enriquecendo convenientemente as autoridades processuais.

Tornou-se um grande projeto público para humilhar e subjugar mulheres, ou para fazer com que mulheres e meninas testemunhassem contra suas mães acusadas e depois ficassem na fila da frente enquanto eram executadas.

As mulheres também podiam ser obrigadas a usar em público uma espécie de focinheira (scold’s bridles ou branks) apenas por falar fora de hora com qualquer homem, incluindo seus maridos, ou simplesmente por serem pobres e muito velhas para trabalhar. Os ferimentos aos quais elas estavam sujeitas ao serem exibidas pelas ruas, poderiam ter sido fatais naqueles dias antes da medicina moderna e dos antibióticos.

Quando a escravidão foi instituída nas colônias, a focinheira foi usada como um método de quebrar a vontade dos escravos. Afinal de contas, tinha funcionado tão bem com as mulheres no antigo continente. Em todas as colônias, após a conquista inicial, os povos subjugados eram controlados de uma forma que refletia fortemente os padrões de dominância que os homens europeus tinham sido treinados a usar em seus pares femininos.

Novamente, cada mulher era passível de ser uma bruxa desobediente que poderia desagradar seu senhor ou mestre. Toda mulher precisava de um controle estrito para mantê-la alinhada e leal na sua obediência aos homens. O fato de que as duas últimas frases são verdadeiras e soam familiares a uma história de BDSM, deve indicar que essas atitudes permanecem conosco. Eventualmente, os homens europeus já não precisam mais queimar suas mulheres vivas ou sujeitá-las à tortura pública a fim de fazê-las cooperar, serem mais caladas, ou consentir em brincar de bom grado, voluntariamente, com sua própria submissão.

“O sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada de relações dominantes/subordinadas. E nos prepara para aceitar a subordinação ou para impor o domínio. Mesmo em que seja um ‘jogo’, afirmar que o exercício do poder sobre a impotência é erótico, é capacitar, é definir o cenário emocional e social para a continuação dessa relação, política, social e economicamente. O sadomasoquismo alimenta a crença de que a dominação é inevitável e legitimamente agradável.” — Audre Lorde.

Quando os homens são submetidos a uma vigilância constante, tem sua fala controlada, são desumanizados, são supostamente sujos e inatamente malignos, ou sujeitos a tortura ou assassinato sob os pretextos mais insignificantes, na esperança da restaurar uma sociedade decadente e mundana, isso é chamado de fascismo.

Quando as mulheres têm de ensinar suas filhas a se conformar a esse tipo de opressão, geração após geração, sem qualquer outra esperança de sobrevivência, os homens chamam de ordem natural.

As pessoas parecem pensar que isso aconteceu há muito tempo, que não é tão importante. Ou que isso só afetou as bruxas, quem quer que fossem, e elas pareciam mulheres horríveis, terríveis, mas de qualquer forma, isso não é verdade.

O importante é perceber que as “bruxas” eram apenas mulheres de quem os homens tinham inveja, por quem se sentiam ameaçados ou de quem não gostavam. Na prática, essas eram as condições necessárias para serem julgadas como bruxas. Mas as bruxas eram apenas mulheres. Potencialmente todas as mulheres.

Para sobreviver sob a Inquisição, as mulheres se submeteram a isolar-se das amizades de outras mulheres, e aprenderam a ser muito boas em criar homens como eles. Elas ensinaram suas filhas a fazerem o mesmo.

Por centenas de anos, qualquer mulher poderia ser levada para a cadeia para ser torturada e sexualmente abusada. Qualquer mulher poderia ser pornograficamente torturada em público antes de sua execução, na frente de sua família se ela tivesse alguma.

Por que elas não reagiram? É por isso. Por que elas não defenderam outras mulheres? É por isso. Os homens europeus abusaram de maneira brutal das mulheres por expressarem qualquer solidariedade social entre si, ou independência para si, por gerações.

Os homens forçavam as mulheres a testemunhar contra outras mulheres, até mesmo suas próprias mães, para sobreviver. E ainda assim zombavam dizendo que mulheres são ciumentas e invejosas umas das outras, e fazem piadas sobre ‘briga de mulher’.

A destruição da história da liderança comunitária das mulheres, sua independência econômica e apoio mútuo, não foi tão completa que não tenha deixado evidências. Mas a prática cultural viva da solidariedade feminina foi tão destruída que ainda é crucial falar sobre o apoio mútuo.

Muito tempo depois que deixaram de nos queimar vivas em público, mulheres ainda podiam ser afastadas da vida pública e mandadas para o hospício, ou estavam sujeitas a tortura, por desagradar os homens ou mostrar demasiada independência. Elas podiam ser abusadas por estarem grávida ou por serem mães solteiras.

Quando a violência doméstica não era um crime, isso significava que ainda era legal para um homem torturar sua esposa na privacidade de sua casa se ela o desagradasse. Ou por nenhuma razão em especial. O estado considerou uma questão de saúde pública e de segurança processar agressões, exceto de um homem contra sua esposa, o que era legal. O estupro marital não era crime em todos os 50 estados dos EUA até 1993. E dado que apenas um por cento dos estupradores chega a passar um dia na cadeia, mesmo nos países supostamente mais igualitários, essa forma de tortura masculina contra as mulheres ainda é efetivamente legal também.

Às vezes os homens vão muito longe ao planejar e cometer abusos contra mulheres e crianças, e isso é muitas vezes visto como uma tragédia inevitável. Frequentemente, outros homens encobrem a violência dos seus pares ao decidir dar o autor do sexo masculino o benefício da dúvida — uma atitude que até mesmo a polícia parece estender aos homens acusados, mas que muitas vezes falta às vítimas do sexo feminino, já que a empatia por mulheres foi apagada das nossas normas sociais. O acobertamento da violência masculina e a culpabilização da vítima transformam os crimes no que Andrea Dworkin chamou de barricada do terrorismo sexual.

Há mulheres vivas ainda hoje que simplesmente sumiram de suas comunidades por conta de atividade sexual não autorizada. Talvez tenham ficado grávidas “fora do casamento”, fora do controle de um marido, por escolha ou estupro, e seus filhos foram tirados delas. Eram as garotas que iam embora, fosse para dar uma criança para a adopção forçada ou para serem internadas em hospitais psiquiátricos e, possivelmente, tratadas com eletrochoque.

Se deixar os homens com raiva, você pode simplesmente desaparecer. Essa tem sido a verdade por um longo tempo. Assim muitos homens ainda agem na expectativa da obediência instantânea que tal medo pode provocar, e a tragédia continua.

Essas formas de abuso foram exportadas para estados colonizados e, tendo começado como uma perseguição política às mulheres para obter ganhos econômicos, se transformou em perseguição política e estilo de conquista usado contra povos não-cristãos em todo o mundo.

O roubo de crianças de populações indígenas por colonizadores é por si só, uma violação contínua de direitos que difere mais em escala do que em espécie, dos furtos históricos de crianças de mulheres brancas “desobedientes”. É uma consequência lógica das sociedades que operam sob a presunção cumulativa de que apenas os homens (brancos) realmente têm qualquer direito à criança; Maldita seja a mãe, maldita a própria criança, malditas sejam as massas “feminilizadas” dos brutalmente subjugados.

A Inquisição certamente não inventou o patriarcado, a tortura ou o reinado de terror público projetado para quebrar a vontade dos povos conquistados. No entanto, ela pôs em movimento um poderoso conjunto de normas sociais que permanecem conosco. E mesmo que o mundo tenha mudado tanto que a Igreja Católica pediu desculpas por perseguir hereges, tais desculpas são raras entre as outras igrejas e governos que assassinaram pessoas com alegações de satanismo.

As mulheres continuam a ser expulsas dos empregos por conta do assédio masculino, demonizadas publicamente de maneira sexista, torturadas para entretenimento na indústria do sexo e mortas por homens desagradáveis.

Então e sempre, esses danos se transformam em degradação e desvantagem. Embora pareça algo pessoal quando acontece conosco, os homens que se beneficiam por nos expulsar da concorrência pública por poder e recursos, a eles não importa quem realmente somos. Se outra mulher estivesse em nosso lugar, eles fariam com ela.

Esse é o resultado de um longo e deliberado projeto político de para destruir a vontade, o poder e a independência das mulheres. Esse poder e independência não serão restaurados sem uma resistência política igualmente deliberada. Porque, como diz Lierre Keith, a opressão não é um mal-entendido.

Foi assim que fizeram dela uma prisioneira política em sua própria casa. Foi assim que a quebraram. Lembrem-se disso.


1 — O processo de transformar pequenas propriedades de uso comum em uma grande propriedade de uso particular foi um dos recursos utilizados para adequar o meio rural ao capitalismo comercial e reorganizar a produção de bens no século XVII

2 — O Martelo das Bruxas ou O Martelo das Feiticeiras é um livro de 1486, que serviu de guia para a Igreja Católica — através da Inquisição — perseguir, torturar e matar mulheres sob a acusação de bruxaria.


Tradução do texto de Natasha Chart para o site Feminist Current

http://www.feministcurrent.com/2016/10/04/this-is-how-they-broke-our-grandmothers/