Como as mulheres na animação têm escrito sobre si
Como as mulheres na animação têm escrito sobre si

São muito curiosas as novas formas as quais mulheres que trabalham com roteiro e criação nos desenhos animados atuais escrevem sobre a mulheridade. A pesar do histórico de “boa representatividade” feminina que se pode constatar em animações televisivas já há algumas décadas, as narrativas parecem estar mudando. Resta a dúvida se para melhor ou para pior.

Desde o surgimento dos canais de TV fechada, os desenhos animados sempre foram um pouco mais permissivos quanto à apresentação de mulheres fortes e heterodoxas. Alguns exemplos que lembro de já ter assistido nos anos 1990 e 2000 são As Meninas Super Poderosas, Kim Possible, a antagonista do Jake Long o Dragão Ocidental chamada Rosa, Três Espias Demais, Witch, Mandy de As Aventuras de Billy e Mandy, e muitos outros.

Engraçado que quando existia um desenho desses, era sempre um grande acontecimento porque é muito raro, em desenhos animados feitos para televisão, existir personagens femininas em abundância. Entretanto, quando acontecia, as mulheres eram retratadas sob um envolto pseudo-feminista que continua até hoje. Elas eram guerreiras, lutadoras, femininas, batalhadoras, mágicas, inteligentes e independentes.

Três Espiãs Demais (2001)

Contudo, hoje em dia, na TV pós Hora de Aventura e Steven Universe, as coisas parecem estar se reinventando. Esses dois desenhos têm a mesma quantidade de mulheres e homens na animação. Como dito, geralmente tem-se mais homens.

Princesas de Hora de Aventura (2010)

Isso pode parecer um grande avanço da dita “representatividade feminina”, mas é preciso analisar as novas narrativas construídas para essas séries para que se possa concluir algo desse fato, visto que elas se distinguem claramente das narrativas animadas do passado (tanto Hora de Aventura quanto Steven Universe tiveram um papel fundamental na reinvenção das possibilidades dramáticas em animação após 2010). Ambos os desenhos se passam em universo em parte fantástico e as personagens femininas são sempre ET’s, criaturas místicas, ou algo parecido. Em Hora de Aventura, Finn é o único humano que é com certeza humano e 100% humano durante a maior parte da trama da série. Ele é um macho humano.

Quando aparecem humanAs, elas não são com certeza humanas, ou não são completamente humanas e em parte criaturas, ou são ex-humanas que se tornaram em parte programas de computador, ou humanas que tiveram seus cérebros modificados e não agem de uma forma normal. Não se pode simplesmente ser humanA em Hora de Aventura.

O mesmo ocorre em Steven Universe. O desenho é muito celebrado por ter personagens femininas fortes e pelo grande protagonismo feminino, mas se esquece que essas mulheres são, todas elas, alienígenas. No mundo dos humanos, existem mais personagens masculinos que femininos. São 19 humanos masculinos contra 9 femininos, segundo a wikipedia.

Alguns Humanos de Steven Universe (2013)

E as extra-terrestres não são as fêmeas da espécie delas. Elas são de uma espécie que faz reprodução assexuada. Ou seja, por mais que os justiceiros sociais que trabalham na produção do desenho achem “empoderador” chamar aquelas aliens de “elas” e dá-las curvas corporais, elas não são mulheres (ou homens, já que essa classificação nem sequer faz sentido para a espécie delas).

Na prática, isso significa que o desenho tem mais homens que mulheres. De toda forma, a animação foi criada por uma mulher, e, por mais que suas aliens não sejam fêmeas, os problemas que fêmeas humanas tipicamente vivem em sociedades patriarcais estão refletidos nas tramas que as dizem respeito. Isso é incoerente visto que o conceito de sociedade patriarcal e a opressão baseada em sexo inexiste na cultura alienígena delas.

Mesmo assim, há uma temporada inteira focada na discussão sobre abuso sexual e estupro, algo inacreditável para os padrões de animação. Primeiro porque são temas pesados a serem discutidos para um público supostamente infantil (não que os escritores da série se importem com usar ou não uma linguagem infantil, como já admitiram inúmeras vezes em entrevistas), depois que essas não são temáticas vistas tradicionalmente na TV fechada animada. As tramas costumavam a girar em torno de problemas com colegas de escola e salvar o mundo de algum vilão genérico antes da revolução de 2010 iniciada por Hora de Aventura. É fantástico que uma temática como abuso sexual seja possível na linguagem da animação.

Algumas alienígenas de Steven Universe

Além de levantar o tema do estupro, Steven Universe também é todo focado nos dramas de relacionamento de pessoas com a aparência de lésbicas masculinas e na discussão sobre o papel da família e da maternidade. Esses são assuntos feministas. Muito mais feministas do que mostrar mulheres super heroínas fortes lutando enquanto usam maquiagem e salto alto como na TV fechada mais antiga. Ou seja, por mais que os desenhos de outros tempos falassem de mulheres como se elas fossem fortes e independentes, elas sempre eram femininas e nunca viviam os problemas que as mulheres vivem de fato na nossa sociedade.

Mas aí que está. As mulheres as quais a narrativa feminista de Steven Universe são direcionadas… Não são mulheres! Quem as estupra, quem as abusa, são outras não-mulheres alienígenas. Quem engravida e perde a identidade por isso, é uma não-mulher (??!!). Quem forma uma família alternativa ao modelo de casamento patriarcal heterossexual são… não-mulheres!

Parece que não é possível existir uma discussão feminista no main-stream abertamente. É como se a única forma de se falar das questões das mulheres fosse dizer para toda a audiência que, na verdade, elas não são mulheres. Como se essa discussão fosse genérica e pudesse acontecer com qualquer um naquela situação (imagina, engravidar…. enfim).

Na realidade, isso foi exatamente o que a criadora da série, Rebecca Sugar, falou na internet — que suas personagens nunca foram mulheres. Mais que isso, ela começou a SE DIZER uma não-mulher, uma “pessoa não-binária”. Já abordei esse assunto neste outro texto. A primeira criadora mulher de um desenho animado para o Cartoon Network se disse uma não-mulher.

Isso torna claro, a meu ver, o quão difícil é ser mulher e ter um papel de destaque na indústria da animação americana. Trata-se de uma indústria dominada por homens a qual as mulheres participantes já se sentiram na obrigação de fazer um abaixo assinado solicitando que o sindicato tomasse medidas contra o assédio que sofrem constantemente.

Na verdade, a maior bandeira de que as mulheres na animação não possuem voz, quem deu foi a Lauren Faust, criadora do reboot de My Little Pony (contemporâneo de Hora de Aventura) e pessoa que teve grande influência sobre a confecção de As Meninas Super Poderosas.

Ela disse em entrevista que, desde que começou sua carreira, produtores gostam muito do seu trabalho e pedem para ela apresentar ideias de novas animações. Ela sempre apresenta ideias as quais os produtores gostam muito, ficam animados, mas sempre perguntam: “Você pode fazer igual, só que com menos meninas e mais meninos?” Ela sempre responde “não”. E, por isso, ela nunca consegue ter suas ideias aprovadas. Ela disse que demorou para perceber que era o fato de ela escrever sobre meninas o que fazia os executivos não a aprovarem, a pesar de ter ficado claro com o tempo que esse era o único motivo, devido à recorrência da pergunta. Mas ela não se dobrou e continuou insistindo, o que me faz admira-la bastante. Ela disse que só conseguiu ter sua ideia aprovada quando foi algo que, sem sombra de dúvidas, não tinha como não ser para meninas. Esse foi My Little Pony.

Quando ela disso isso, a plateia da entrevista riu, porque My Little Pony é um dos desenhos com o maior público masculino adulto, tendo se tornado um fenômeno por causa disso.

My Little Pony, o reboot da série dos anos 1980 feita para vender bonecos de cavalinhos mágicos às menininhas. O desenho mais feminino, colorido, brilhante, cor de rosa e apaixonado possível.

My Little Pony — Friendship is Magic (2010)

Fazendo um paralelo com Steven Universe, que apresenta mulheres não-femininas e reais ao mesmo tempo em que as nega a mulheridade, My Little Pony faz o oposto: fala sobre mulheres abertamente e sem restrições, mas se dobra à feminilidade, como faziam os desenhos anteriores a Hora de Aventura e Steven Universe. Feminilidade não é uma escolha, é uma imposição. É a única forma de falar sobre mulheres diretamente.

É interessante que, diferentemente das suas contemporâneas na animação, que seguem o modelo de Steven Universe, Lauren Faust prefere ater-se à feminilidade. No seu mais recente desenho, DC Super Hero Girls, regride-se à narrativa típica de mulheres super-heroínas que salvam o dia de batom e saem para fazer o cabelo e comprar roupas posteriormente.

DC Super Hero Girls (2019)

Essa criadora de séries é a única que fez isso, que eu saiba. Outras das poucas mulheres produzindo séries de animação para TV atualmente, como Daron Nefcy, criadora de Star vs As Forças do Mal, da Disney Channel, e Noelle Stevenson, criadora do reboot de She-ra, da Netflix, também usam uma forma subvertida de feminilidade em suas criações, a pesar de não fazerem uma análise de classe capaz de entender e subverter o patriarcado. Falam sobre sexismo sem admitirem que se trata de um problema referente ao sexo.

Feminilidade subvertida em Star Vs As Forças do Mal (2015)

No exemplo de Star vs As Forças do Mal, é cabível citar que o desenho aborda o problema da maternidade, os desafios e o fardo que mães tem que enfrentar na criação dos filhos, mesmo que as mulheres estejam perfeitamente conformadas com o fato de terem que lidar com esse fardo sozinhas, sem ajuda.

Em She-ra, vê-se a mesma contradição quando mulheres lésbicas têm que lidar com problemas de relacionamentos amorosos entre si que envolvem situações de abuso, enquanto os abusos que elas sofrem por parte de homens nunca é desmistificado e tratado como o tipo de abuso de homens com mulheres.

O que tiro disso é que, depois de Hora de Aventura e Steven Universe, abriu-se a possibilidade na animação em se falar de problemas realmente de mulher. Mas isso vem sido misturado ou com aspectos da feminilidade ou com a negação de que esses são problemas os quais concernem tipicamente mulheres. Portanto, não é tão certo se o que os novos desenhos estão fazendo foi um avanço em direção à priorização de mulheres. Parece que as criadoras querem avançar, mas acabam se traindo com a perspectiva neoliberal de que cada um é cada um e não há verdades sobre mulheres. A animação (e a sociedade) precisam começar a entender, discutir e refletir sobre o fato de que mulheres são reais.

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