A música “A vida é um desafio” foi composta nos anos 90, mas a realidade retratada nos versos cantados por Edi Rock não mudou em mais de duas décadas desde que a letra foi escrita. Para as mulheres negras, é uma luta constante.
“Desde cedo nossa mãe fala assim: filho, porque você é negra, você tem que ser duas vezes melhor. Depois de alguns anos, pensei: como você faz duas vezes mais se estiver pelo menos 100 vezes atrasado devido à escravidão, história, preconceito, traumas, psiquê, devido a tudo o que aconteceu? Como é o dobro de bom?
Essa música está de acordo com a questão da professora aposentada Julia Mariane Américo, ativista do Moconevi (Movimento da Consciência Negra do Vale do Itapocu), que mostra o quanto a mulher negra ainda sofre preconceito e é a maior vítima de violência e discriminação no trabalho.
“Você está competindo com uma mulher branca, precisa ser melhor, mas como você pode ser o melhor se não estamos no mesmo nível?” ela pergunta.
Os dados mostram como as mulheres negras são subvalorizadas e se tornam alvo de violência no Brasil. Os números trazidos pelo Atlas da Violência 2018, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que, em 2016, a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% maior do que o das mulheres não negras.
No estado de Santa Catarina, a taxa de homicídios de mulheres negras por 100.000 habitantes passou de 4,0 para 5,1 entre 2015 e 2016, um aumento de 27,7%.
O Mapa da Violência de 2015 apontou para um crescimento assustador de homicídios de mulheres negras entre 2003 e 2013, de 1.864 para 2.875, um salto de 54% em dez anos.
Por outro lado, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8% no mesmo período. A chance de uma mulher negra ser assassinada é duas vezes maior. O percentual de mulheres negras vítimas de violência doméstica foi, em 2015, 58,86%, segundo dados da Central de Atendimento à Mulher.
E os números de violência atingem todos os níveis, com mais impacto nas mulheres negras. Mais de 53% das vítimas de mortalidade materna eram negras. Os dados da Fiocruz para 2014 mostraram que 65,9% das vítimas de violência obstétrica eram negras.
O Ministério da Justiça anunciou em 2015 que 68,8% das mulheres mortas por agressão eram negras. No mesmo ano, no Rio de Janeiro, mais de 56% das vítimas de estupro no estado eram negras. Os anos passam e os índices continuam a apontar as mulheres negras como as maiores vítimas de violência.
Quando falamos de salários, elas também são as mais desvalorizadas. As mulheres, em geral, recebem apenas 76,5% do salário dos homens, em média e, segundo o estudo “Retrato das desigualdades de gênero e raça — 20 anos” do Ipea, o salário médio das mulheres negras entre 1995 e 2015 foi de 40,9% da remuneração dos homens brancos. Mulheres negras em cargos de gerência? 1,6%.
Nas diretorias, apenas 0,4%, segundo os resultados do estudo Perfil social e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas, do BID (Inter- American Development Bank), em parceria com o Instituto Ethos.
Isso está acontecendo em um país onde quase 54% da população é negra e onde 15,9 milhões de famílias são chefiadas por mulheres negras.
“Tudo passa pela auto-estima”
Os lenços são delicadamente colocados na cabeça e mostram o orgulho da história, tradição e cultura negra. A professora aposentada Jaraguaense (Jaraguá do Sul, Santa Catarina) Julia Mariane Américo desenvolveu um projeto que visa o reconhecimento de meninas negras.
Em uma caixa, mais de 30 bonecos são levados para as escolas e expostos para elas brincarem, mas não são apenas bonecos, são pretos.
Para ela, esse contato das meninas negras com bonecas que as representam é fundamental para a formação da personalidade e fortalecimento da auto-estima, tão prejudicada em uma sociedade racista, enfatiza.
“Todos os dias as mulheres ouvem algo como: cabelo ruim, cabelo de bombril. Eu ouvi isso na minha infância. Sofremos e, portanto, procurávamos maneiras de endireitar, abaixar e ocultar. Hoje, fico muito feliz quando vejo crianças orgulhosas de seus cabelos volumosos, indo para a escola com os cabelos soltos ”, diz ela.
A professora e ativista ressalta que o foco do projeto é tocar na auto-estima das crianças e mostrar a cultura negra através dos cabelos das bonecas, turbantes e roupas.
“Tudo passa pela auto-estima e começa na infância. Eu percebi isso com colegas, comigo mesmo. Fomos diminuídos em relação à cor, depois ao cabelo e depois ao nível social ”, diz ela.
Portanto, diz ela, é importante que as crianças se vejam em bonecas, se sintam representadas. “Eles podem se ver em uma boneca bonita e negra”, acrescenta.
O número de atos de violência contra mulheres negras é um assunto sério que precisa ser debatido, ressalta Julia.
“É uma coisa muito difícil de aceitar e entender, porque a maior população é negra, mas parecemos ser uma minoria em alguns lugares e somos novamente a maioria na questão da violência. Eu não posso fazer isso. Por que a maioria não está em evidência? E isso se evidencia em uma questão tão forte como a violência? A dor é muito grande ”, diz ela.
Para ela, a resposta a essa pergunta é a mesma há séculos: o racismo. A professora ressalta que o racismo, aliado ao machismo — ambos estruturais na sociedade brasileira -, irrompe em índices que vitimam diariamente a negra em insultos, assédio, estupro, violência obstétrica, violência física e assassinato.
“O que mais nos deixa indignados é que os casos continuam aparecendo, novos casos, coisas que pensávamos já terem sido superadas, parece que as campanhas não têm o efeito que imaginávamos”, diz ela.
Apesar disso, a ativista afirma que a luta dos movimentos das mulheres negras tem sido importante para recuperar a auto-estima e mostrar o protagonismo na sociedade. Ela ressalta que as mulheres são muito fortes quando têm esse poder de falar e de serem ouvidas.
A representação de pensadores e artistas negros é fundamental para que as mulheres negras sejam representadas em espaços ainda muito limitados a elas.
Segundo a professora, nomes como a atriz Taís Araújo, a cantora Iza e a jornalista Maju Coutinho são fontes de inspiração e servem de base para que as negras se sintam representadas e tenham um espelho para lutar por seu espaço e se sintam impelidas a elevar a voz por a questões raciais.
Artigo de Adrieli Evarini, traduzido do site Black Women of Brazil, publicado em 09/03/2019 pelo Dia Internacional da Mulher
Nota do BW do Brasil:
As pessoas no Brasil geralmente gostam de se esconder atrás de retóricas vazias, como a frase “somos todos iguais”, o que lhes permite convenientemente não abordar a gravidade da desigualdade que é a própria raiz da sociedade brasileira. No fundo, as pessoas realmente sabem que pensamentos e crenças vêm à sua mente quando ouvem os termos “mulher branca” e “mulher negra”. É óbvio que essas duas mulheres não são pensadas em termos iguais, mesmo sem considerar os dados concretos, mas reconhecendo que isso significaria ter que lidar com as realidades da raça, o que a maioria das pessoas realmente não quer fazer. Quero dizer, como podemos acreditar realisticamente “somos todos iguais” quando a maioria das posições de comando no país pertence a homens e às posições que as mulheres ocupam, a maioria pertence a mulheres brancas? Não vou entrar em detalhes aqui porque, desde 2011, a posição das mulheres negras brasileiras foi minuciosamente documentada em várias postagens anteriores neste blog, mas em reconhecimento ao Dia Internacional da Mulher, algumas das realidades da luta das mulheres negras no Brasil são enfatizadas.