Muita polêmica se fez com o lançamento do clipe “Vai Malandra”, da cantora Anitta, cujo primeiro frame foi o longo close na sua bunda onde apareciam revolucionárias e esparsas celulites.
Antes de qualquer coisa, eu quero apontar aqui que não, eu não acho que a Anitta seja feminista nem que ela tenha qualquer proposta feminista na carreira dela, e tenho consciência de que ela sequer levantou a bandeira de “feminista” pra si. Mas por ela ser uma mulher (muito) bem-sucedida e por conta principalmente desse último clipe dela, tem muita gente (dos “movimentos sociais” rs e muitas mulheres, também) defendendo que a cantora é, sim, um ícone feminista (porque aparentemente qualquer mulher que ganhe dinheiro fazendo qualquer coisa, ou qualquer filme ou clipe que tenha protagonismo feminino — vide o sucesso de Mulher Maravilha — é feminista atualmente rs). E eu acho isso bastante problemático.
Antes de escrever, vou responder a algumas perguntas e comentários que apareceram na publicação da página com essa foto.
“Empoderamento é, inclusive, a mulher que QUEIRA, que ESCOLHA usar ou mostrar o corpo como objeto, possa fazê-lo sem esse tipo de crítica.”
“Que eu saiba o feminismo luta pelo direito de você fazer O QUE QUISER, inclusive mostrar a bunda.”
Isso estaria certo, se não estivesse errado.
Feminismo luta pelo direito de a mulher poder fazer o que quiser enquanto dentro de uma coletividade — a coletividade das outras que, como ela, são subordinadas e exploradas por terem vagina, sem esquecer das outras que acumulam outras opressões além da sexual.
Não dá pra você enquanto mulher achar que algo te “empodera” se esse mesmo algo acorrenta outras mulheres e as objetifica. Não é porque algo aumenta sua autoestima que esse algo deve ser mantido — não é porque algo te faz bem que você, em nome do feminismo, deve ser “livre” pra fazer esse algo.
O feminismo luta pela emancipação feminina — em outras palavras, pela abolição de todos os institutos, de todas as instituições e de todos os comportamentos que, de alguma forma, nos mantêm subordinadas aos e exploradas pelos homens. Isso inclui, por exemplo, a abolição da prostituição e da pornografia, a luta por mais direitos para as mães, a luta pelo direito ao aborto e a luta pelo fim da objetificação dos nossos corpos (vou falar mais sobre isso no próximo comentário).
Então bota uma coisa na sua cabeça: feminismo que só pensa no que faz bem pra cada uma individualmente não é feminismo, porque não liberta mulher nenhuma de nada, só joga glitter na nossa opressão. Você pode ler mais sobre isso aqui.
Realmente Anitta vende a música dela rebolando a raba mas o fato dela ter mostrado as celulites está relacionado a REPRESENTATIVIDADE!!!
Ah, tá… então o problema não é necessariamente a objetificação dos nossos corpos, mas a objetificação de apenas alguns. Então se a gorda, a “fora do padrão” (adorei esse argumento rs), a com alguma deficiência física etc. forem todas objetificadas então tá tudo bem?
Gente, não! A lógica disso leva à aceitabilidade do que algumas pessoas chamam de “pornô feminista” — cuja proposta é, entre outras, um pornô mais “representativo” (!).
Qual a diferença prática de um close de vários segundos em uma bunda com celulite e em uma bunda sem celulite? O foco ainda é a bunda. Não o rosto, nem a voz, mas a bunda. O corpo. É isso que nós somos? É isso que Anitta é? Um corpo?
“Representatividade” (eu odeio esse termo, porque foi vulgarizado da pior forma possível) importa quando é algo que realmente pode trazer benefícios pra população representada: no campo político, principalmente. Porque a intenção é essa — representar. Não é? Levar a vivência e os problemas de uma parcela da população que, de outra forma, dificilmente seria ouvida.
Clamar pela “representatividade” quando se trata de objetificação é, no fundo, pedir pra ser inserida na listinha de “comestíveis” do patriarcado. É, no limite, pedir por reconhecimento masculino. Olha, eu também sou bonita, viu? Também sou gostosa. Também posso ser desejada!
A gente precisa mesmo do olhar masculino pra se sentir gostosa? Ou, então — a gente precisa mesmo de representações feitas sob a ótica do olhar masculino pra se sentir gostosa?
Isso é cultura do estupro!
Leia mais sobre isso aqui.
Nova regra: feminista não pode curtir Anitta, nem Madona, nem Beyonce, nem Ryhana, nem bagaça nenhuma que tenha raba à mostra. Cuidado, você recolou, a patrulha vai te pegar!!! (há abertura porém, se a estética for ao agrado das zelites…)
Pode curtir a porra toda, desde que se tenha noção de que nenhum desses ícones tem qualquer coisa a ver com teoria feminista. São exemplos de mulheres poderosas e bem-sucedidas, mas isso não é feminismo.
Toda estética que faz sucesso é do agrado “das zelites”, porque está dentro do considerado tolerável. O que é verdadeiramente revolucionário e contrahegemônico não faz sucesso, não sai na Globo, não é tema de novela.
“E que poder mulher adquire com mais um desfile de corpos?” Se ele for um pouco mais real, fora do padrão: auto estima. Anitta pode ter liberado milhares de mulheres da vergonha de usar saia ou short. Eu sou uma que ia usar meia calça no show dela dia 03, mas agora vou bem linda balançando minhas celulites porque pensei melhor e vi que posso. Nem os olhares de “nossa, que gorda” nem os olhares de “ain, quanto objetivação” vão me parar. Se isso não é empoderamento, não sei o que é.
Então, não sabe mesmo. Porque empoderamento não tem nada a ver com autoestima ou com autoaceitação. Pode ler mais sobre isso aqui e aqui.
“Isso é muita cagação de regra.”
“Essa de cagar regras do que é ou não permitido. Do que pode ou não é ditadura. É totalitarismo.”
Não. Isso é uma chamada de responsabilidade e de consciência. Toda mulher que se diz feminista tem que ser minimamente responsável e consciente pra saber que nem tudo é feminista, nem tudo que é bom pra uma pessoa individualmente vai ser bom pra coletividade e isso importa sim, e que feminismo é um movimento coletivo. Coletivo. COLETIVO, não individual.
Tem algumas coisas, sim, que não são feministas e ponto final. Porque feminismo não é movimento identitário, não é bagunça, não é “autoidentificação” (você não é feminista só porque você pensa que é e ponto final). Pô, muita mulher foda por aí escreveu teoria pra caramba, fez pesquisa séria, enfrentou gigantes da política, do tráfico de mulheres e da pornografia por conta das coisas que escreveu e que falou — mulheres que nos deixaram um legado imenso de teoria, uma teoria coesa e baseada em pesquisa séria, não em achismos ou subjetivismos; e quando a gente aponta isso é cagação de regra?
Se alguém fala que a escravidão foi boa pras pessoas pretas porque “algumas tribos que vendiam escravos ganharam com isso” e você corrige, exigindo senso crítico, você tá cagando regra, por exigir que se pense na coletividade, e não na exceção ou na minoria?
Se alguém fala que o imperialismo foi benéfico pra economia dos países africanos e asiáticos e você corrige, exigindo senso crítico, você tá cagando regra, por exigir que se pense na coletividade, e não na exceção ou na minoria?
Se alguém fala que reformas como a trabalhista e a previdenciária aqueceram a economia de alguns países e beneficiaram empresários e industriais e você corrige, exigindo senso crítico, você tá cagando regra, por exigir que se pense na coletividade, e não na exceção ou na minoria?
Então por que diabos exigir que se pense na coletividade de mulheres, e não no que você, floco de neve único e especial, pensa ou sente com relação a uma matéria específica, é cagação de regra?
Cadê a sororidade?
Primeiro: sororidade com quem? Com a artista, com as mulheres que se sentiram representadas…?
E a “sororidade” com as meninas e mulheres vítimas da cultura do estupro (que está contida na objetificação do corpo feminino, não se enganem) todos os dias, não existe? A sororidade com o meio milhão de meninas brasileiras casadas antes dos 18 anos? A sororidade com as milhões de vítimas do tráfico sexual? A sororidade com as 3 ou 4 mulheres que foram vítimas de estupro desde que você começou a ler o texto? A sororidade com as pretas, maior grupo afetado pela prostituição (consequentemente, pela cultura do estupro)? A sororidade com as meninas pretas, que são sexualizadas desde a mais tenra idade?
Essas mulheres adorariam não ser objetificadas ou reduzidas a seus corpos, sejam eles perfeitos-padrões ou não.
Cadê sua “sororidade” com elas?
O zumbi que a gente chama de “feminismo liberal” (que, por ser liberal, nem feminismo é) ganhou um novo fôlego recentemente. O mercado capitalista percebeu que o discurso feminista vem se espalhando como incêndio e precisou incorporar algumas ideias supostamente feministas a si para continuar sendo bem-sucedido.
Não à toa, diversas empresas começaram a mudar seu estilo de publicidade e de propaganda, reconhecendo erros misóginos históricos. Não à toa, bizarramente, começaram a surgir produtos com estampas e motivos feministas. Tipo aquela blusa que todo mundo tem com estampa do rosto de Frida Kahlo. (Tem incongruência maior do que vender algo com o rosto de uma anticapitalista declarada estampado?)
Como hoje o porta-voz do capitalismo é a mídia — uma vez que a mídia hegemônica é controlada invariavelmente por oligarquias milionárias, pertencentes portanto à elite econômica que se beneficia do capitalismo, na grande maioria dos países — se não houvesse “conteúdo feminista” na mídia pra reforçar o tipo de “feminismo” que o capitalismo “incentiva” (são muitas aspas…), a gente não acreditaria muito que é possível unir as duas coisas (o consumo e a luta, a opressão e a libertação, coisas assim).
Por isso começaram a surgir tantos programas tipo o Amor e Sexo em diversos canais, pra diversas idades e com diversos temas. Todos abertamente levantando a bandeira feminista, sem aquele pudor característico que a palavra envolvia (“feminismo” era quase palavrão). Houve uma tentativa de tentar transformar a imagem do que era feminismo e do que era ser feminista, pra desconstruir (adoro essa palavra, rsrsrs) a imagem de que toda feminista é aquele combo de lésbica, peluda e raivosa (por que será?). Afinal, feminista pode usar salto. Pode usar batom vermelho. Pode ser a favor da prostituição. Pode consumir pornografia. Pode tudo! Você é livre! Só o que não pode é cagar mais regra pra cima das mulheres, porque disso estamos fartas! Né?
Daí qualquer feminismo que estabelecesse limites e tivesse posições bem estruturadas sobre qualquer assunto — e que interferisse no dia-a-dia da mulher, e que exigisse mudanças (ou pelo menos consciência e coerência) em suas atitudes ou escolhas pessoais (já que o pessoal é político) — virou um feminismo chato. Um feminismo radical. Um feminismo um tanto antiquado, já que não é mais bem assim, a realidade é complexa, as tecnologias mudaram tudo, somos e não somos ao mesmo tempo, etc…
(Não preciso nem falar que começaram a surgir diversas teorias filosóficas e sociológicas pra legitimar academicamente a perseguição e a crítica a diversos posicionamentos feministas.)
É claro que nem todas as mulheres compraram a ideia desse feminismo midiático e sabem que ele “não é perfeito”. Mas se tem um comentário que ficou famoso ultimamente, frente a qualquer coisa com uma mulher no front, é
“Ah, mas já é alguma coisa”.
Ah, mas pelo menos mostrou uma mulher real, com celulites(?).
Ah, mas pelo menos tem representatividade.
Ah, mas pelo menos o programa existe, antes não existia nada do tipo.
Ah, mas tem um lado bom.
Em oposição ao feminismo midiático, surgiu o feminismo “pelo menos” — um meio-termo entre o feminismo midiático e o feminismo teórico materialista, que busca “conciliar” ambos. Vocês já devem ter lido sobre ele por aí.
É um “feminismo” meio Poliana, que adora ver o lado bom das coisas, ao ponto de simplesmente não parar pra pensar nas consequências negativas trazidas pelo lado ruim (porque pelo menos…!). É um “feminismo” de boa vontade, que se opõe às chatas e mal-amadas das feministas que não aceitam uma concessãozinha, só querem se for revolução (essas radicais…). É um “feminismo” Madre Tereza de Calcutá, que enxerga a bondade e a boa intenção até nas iniciativas mais perversas (ele só quer mostrar a beleza feminina real fora do padrão cisheteronormativo com esses ensaios de nudismo, aff!). É um “feminismo” fácil. E que te deixa bem na fita, afinal, você vai parecer crítica e realista porém sem perder o otimismo.
(Deu até preguiça de continuar escrevendo)
Esse feminismo trata como se a coisa contestada (uma concessão do capitalismo, vale ressaltar) fosse fruto direto de luta feminista — não uma mera adaptação do capitalismo em busca de mais mercado consumidor.
O programa não tá na emissora porque ela se conscientizou da importância de ele estar lá. O mote não tá nas blusas porque a empresa é feminista. A celulite não tá no clipe porque é importante mostrar a mulher real e a produção sabe disso.
Desculpa ser crua e fria assim, mas é a verdade.
Existe um interesse por trás de tudo isso. E é esse interesse que ter que ser estudado, avaliado, criticado — porque o interesse está na base, está diretamente ligado à estrutura desse sistema que nos mantém subordinadas. “Conquista” que não mude a estrutura não é conquista, é concessão. Isso não significa que seja uma concessão necessariamente ruim, mas não ser ruim também não a torna impassível de críticas.
E o nosso trabalho aqui é criticar e querer mais, sempre, e lutar por mais — porque esse “mais” nunca nos vai ser dado de mão beijada.