Em 29 de maio de 1851, Sojourner Truth, uma abolicionista e ex-escravizada, fez um dos discursos mais memoráveis da história sobre a intersecção entre o sufrágio feminino e os direitos dos negros. Falando à Convenção das Mulheres de Ohio, Truth usou sua identidade para apontar as maneiras pelas quais ambos os movimentos estavam falhando as mulheres negras. Repetidas vezes, de acordo com transcrições históricas, ela perguntou: “Eu não sou uma mulher?”
Essa questão continua a ressoar com as mulheres negras hoje — 167 anos depois.
Nascida em escravidão como Isabella Baumfree[1] em 1797, Truth foi vendida quatro vezes antes de finalmente fugir do seu captor no estado de Nova York e encontrar refúgio em uma família abolicionista próxima, que pagou pela sua liberdade. Depois que se mudou para Nova York em 1828, Truth tornou-se uma pregadora poderosa e fez campanha sobre as questões do sufrágio feminino e dos direitos dos negros. Ela renomeou-se Sojourner Truth em 1843, declarando que Deus a havia chamado para pregar a verdade.
Foi uma escolha de nome apropriada[2] como ilustra seu discurso, no qual ela imediatamente refuta o mito predominante de que as mulheres são mais fracas que os homens enquanto desafia as definições sociais de feminilidade — que se baseia em idéias sobre a feminilidade e a pureza das mulheres brancas. Truth diz:
“Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas em carruagens, erguidas sobre valas e ter o melhor lugar em todo lugar. Ninguém me ajuda em carruagens, ou em poças de lama, ou me dá o melhor lugar! E eu não sou mulher? Olhe para mim! Olhe meu braço! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente.”
Truth critica suas contemporâneas feministas por se concentrarem nas experiências vividas das mulheres brancas. Então, ela aponta para o movimento abolicionista, concentrando-se exclusivamente nos direitos dos homens negros:
“Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era uma mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso.”
O discurso foi particularmente tocante porque foi feito numa época que, como diz o historiador Nell Painter, “a maioria dos americanos considerava escravos como homens e mulheres como brancas”. Truth “materializou um fato que ainda vale a pena repetir: entre negros há mulheres; entre mulheres, há negras”.
Desde então, o discurso de Truth tomou vida própria, inspirando acadêmicas contemporâneas que variam da feminista negra bell hooks, que intitulou seu livro de 1981 “Eu não sou mulher”? a acadêmica jurídica Kimberlé Crenshaw, que cunhou o termo “interseccionalidade”. Em um ensaio de 2016, Crenshaw traça paralelos entre o sufrágio feminino e o movimento feminista moderno, observando: “Quando a teoria feminista e a política, que alegam refletir as experiências das mulheres e as aspirações das mulheres, não incluir ou falar com mulheres negras, mulheres negras devem perguntar: “Não somos mulheres?”
É possível que Truth nunca tenha realmente feito a pergunta retórica que a eternizou. Existem transcrições diferentes do discurso. Frances Gage, presidente da convenção de mulheres, escreveu a transcrição mais famosa. Embora Gage estivesse presente durante o discurso, ela o registrou 12 anos depois. Gage escreveu o discurso com um dialeto do sul, mesmo que Sojourner nunca tenha vivido no sul. Um repórter que também estava presente no discurso registrou de maneira diferente — sem a pergunta retórica “Não sou uma mulher?” — embora a essência da mensagem de Truth permanecesse a mesma.
Independentemente de qual é a transcrição exata, não há como negar que a pergunta retórica de Truth permanece tão relevante hoje quanto em 1851. No ano passado, mais de 1.500 pessoas participaram da marcha “Não sou uma mulher”, em Sacramento. A marcha pelos direitos das mulheres negras foi organizada em resposta à “branquidade esmagadora” da Marcha das Mulheres em Washington, na sequência da eleição do presidente dos EUA, Donald Trump, e para destacar a infinidade de questões que as mulheres negras enfrentam. O poder evidente em tais reuniões chama a atenção para as palavras finais do discurso de Truth:
“Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que querem.”
[1] Algumas fontes usam o nome Isabella Van Wagenen, sobrenome adotado da família que a acolheu quando fugiu do seu último escravizador.
[2]Sojourner significa peregrina, truth significa verdade.
*Anotação não-mental*
Acredito piamente que Sojourner Truth disse sim as palavras “E eu não sou uma mulher?”. Ela, como outros oradores, costumava adaptar seus discursos de acordo com a resposta do público, e não é difícil imaginar um homem na audiência gritando “mulheres são fracas”, a “escada” perfeita para uma das perguntas retóricas mais famosas da historia. Também não é exatamente uma surpresa, e é certamente motivo de desconfiança, que nos dois registros citados, de uma mulher e de um homem presentes no momento do discurso, tenha sido o homem que não escutou o que uma mulher dizia. Não foi o primeiro e nem o último.
Tradução do texto original de Aamna Mohdin