Na quarta-feira, dia 08/11/17, foi aprovada em uma segunda instância uma emenda à Constituição para que o aborto não seja realizado em qualquer situação — mesmo se a gestação represente risco à saúde da mãe ou se a gravidez seja fruto de uma violência sexual.
A votação está sendo considerada fraudulenta, pois a comissão especial da Câmara dos Deputados havia se reunido para analisar a ampliação da licença maternidade em caso de bebê prematuro. Em duas propostas apresentadas, o relator acabou optando por um novo texto que trazia a mudança da lei quanto a permissão do aborto, alegando que o “princípio da vida começa na concepção”.
Se a emenda for aprovada novamente nas próximas duas instâncias, o texto novo vai aumentar a licença maternidade para mães de prematuros de 120 dias para até 240 dias, mas vai proibir todas as formas de aborto no País. Dezoito deputados, todos homens, votaram a favor da mudança na legislação. Apenas a deputada Érika Kokay (PT-DF), votou contra. De acordo com ela, “eles estão se aproveitando de um consenso que é a extensão da licença-maternidade para instalar um retrocesso”.
Dias antes da votação, passou a circular na internet o artigo sobre o experimento social do escritor de ficção científica Patrick S. Tomlinson. Ele compartilhou no Twitter uma proposta de reflexão para quem se diz “pró-vida”, ou seja, contra o aborto:
Se a vida começa na concepção, então os embriões valem mais que a criança nascida?
A proibição do aborto em todas as formas trará consequências desastrosas para a sociedade. Temos de levar em conta que essa proibição afeta todas as mulheres. Além disso, a maioria não possui dinheiro para fazer um procedimento minimamente seguro.
A proibição do aborto vai praticamente criar uma situação de calamidade pública. As mulheres que não têm condições financeiras de pagar por um aborto vão ou se arriscar com agulhas de tricô, com chás, com métodos ineficazes e/ou prejudiciais a si próprias, ou em clínicas clandestinas, arriscando a própria vida… ou serão obrigadas a gestar uma criança resultante de um estupro. Muitas dessas crianças talvez sejam abandonadas ou dadas para adoção. Crianças em orfanatos não necessariamente terão a chance de viver uma boa vida, porque há descaso público, além de uma certa preferência dos casais que adotam no Brasil por bebês brancos, o que deixa parte dessas crianças sem perspectiva de adoção. As crianças que essas mulheres decidem criar, mesmo após todo esse processo doloroso, podem ser uma lembrança constante de um ato violento como o estupro, o que pode levar a criança a sofrer violências também. A proibição do aborto é uma violência, que vai gerar ainda mais violência através de indivíduos que crescerão de forma violenta.
É preciso levar ainda em conta que o sistema atual já é extremamente desrespeitoso com as mulheres. Apesar do aborto após um estupro ser permitido legalmente no Brasil, ele não é de forma alguma um direito respeitado como deveria ser. A maioria das pessoas pensa que as mulheres conquistaram esse direito de forma plena, e isso não poderia estar mais longe da verdade. É incrivelmente difícil conseguir fazer um aborto seguro pelo sistema nacional de saúde, mesmo sendo permitido.
As mulheres que estão nessa situação passam por pelo menos três grandes dificuldades para fazer um aborto. Vamos a elas:
Dificuldade 1: ter o seu direito ao aborto reconhecido. Quando a mulher sofre violência sexual e resolve fazer ocorrência, a polícia pode dificultar o processo de diversas maneiras, desestimulando a vítima a fazer a ocorrência ou tratando a vítima como se ela fosse a culpada pelo seu abuso. A própria família pode fazer pressão sobre essa mulher para que não leve o incidente adiante pela sua exposição e a do próprio abusador. Por isso há subnotificação de casos.
Dificuldade 2: Se a vítima conseguir fazer a ocorrência, ela tem de levar toda essa documentação ao departamento pertinente para conseguir autorização para fazer o procedimento. Esse departamento, que devia prestar apoio, pode fazer o mesmo que o departamento de polícia e desestimular a mulher a ter um aborto, porque o sistema brasileiro ainda está muito despreparado para lidar com as mulheres que sofreram estupro e engravidaram.
Dificuldade 3: se a mulher consegue a autorização para fazer um aborto porque foi vítima de abuso sexual, ainda assim ela será tratada como uma criminosa que estaria ceifando a vida de uma criança, muitas vezes pela própria equipe médica encarregada do procedimento e pela família. Até mesmo mulheres que desejavam ter um filho e estão passando por um aborto espontâneo ou perda gestacional, além de passar pela dor emocional e todo o impacto físico que isso causa em seu corpo, muitas vezes são também tratadas como se estivessem cometendo um crime contra a vida. Imagine, então, uma mulher que tomou a decisão de interromper uma gestação ocorrida apos um estupro? Não, as mulheres não são tratadas no Brasil com a dignidade e respeito que necessitam nessa hora.
A realidade, a dura realidade, é que essa emenda não está nos rebaixando à categoria de incubadoras. Isso nós já somos consideradas há milhares anos. Ainda não conseguimos ser elevadas a categoria de pessoas. Quem deve decidir levar uma gestação adiante são as mulheres. Só elas sabem como uma gestação indesejada afeta a vida delas.