Rachel Moran foi prostituta na Irlanda e publicou o livro autobiográfico "Paid For", onde conta sua vivência. Hoje é abolicionista na luta pelo Modelo Nórdico.

“Eu acho que prostituição é como o aborto: proibir ou fingir que não acontece não vai fazer com que deixe de acontecer, apenas tornará mais inseguro. Se as mulheres podem escolher o que abortar, por que não podem escolher se prostituir?”.

Este argumento é lugar-comum entre pessoas que se consideram minimamente progressistas e assenta basicamente nos seguintes pressupostos. Assume que:

  1. Recusar a regulamentação da prostituição como “trabalho sexual” é equivalente a proibi-lo ou não fazer nada a respeito;
  2. Prostituição é sobre o direito à escolha e soberania sobre o próprio corpo;
  3. Prostituição é insegura e perigosa porque não é considerada “trabalho”;

Vamos dissecar essas premissas para entender porque prostituição e aborto não são simétricos nem para falar de escolha, nem para falar de soberania e muito menos sobre políticas públicas.

Legalizar o proxeneta ou criminalizar a pessoa prostituída?

Não, obrigada.

Essa é a tática argumentativa mais comum do lobby regulacionista: enquadrar a discussão como se reconhecer a prostituição como “trabalho sexual” nas leis fosse a única opção possível. A única capaz de ajudar as pessoas na prostituição e tornar tudo “mais seguro”.

A discussão é, desde o início, conduzida dentro de um enquadramento pré-estabelecido que leva os ouvintes/leitores a depreenderem que toda pessoa que se opõe à regulamentação da prostituição é, automaticamente, a favor da criminalização ou contra a aplicação de qualquer política pública a respeito, devendo “deixar como está”.

O ouvinte/leitor rapidamente entenderá que a ideia subjacente transmitida por este enquadramento é que toda pessoa se opondo à regulamentação não pode estar a favor das pessoas prostituídas. Afinal, criminalizá-las é injusto e deixar como está não é imaginável. Sabemos que algo precisa ser feito, e que a pessoa que se prostitui não está cometendo nenhum crime e, portanto, não deveria ser presa.

Dizer às mulheres prostituídas que sua única saída é vestir a camisola da prostituição ou “deixar como está” é, no mínimo, cruel. Isto não são alternativas.

É evidente que a ideia de delimitar o debate exclusivamente em torno da mulher prostituída (digo mulher, mas incluo aqui todas as pessoas em situação de prostituição) funciona dentro da ótica de culpabilização da vítima. Estamos sempre procurando o problema, o erro, a culpa na mulher: ela escolheu? Ela deve ser criminalizada? Ela é vítima ou agente? Por que ela está na prostituição? Por que ela entrou para a prostituição, em primeiro lugar?

Assim funciona a culpabilização machista. Quando uma mulher sofre uma violação, a imprensa, a “justiça”, todos correm para revirar o seu passado e encontrar a sua culpa: ela saía com muitos gajos? Ela pediu? O que usava naquele dia? Ela tentou resistir? Mas por que ela estava naquele lugar? Por que estava sozinha? Será que ela consentiu e mudou de ideia? Ela está a mentir?

Nós nunca olhamos para aqueles que foram beneficiados e causaram o problema. Por que não olhamos para os homens e perguntamos por que eles pagam para obter acesso sexual ao corpo de mulher? O que o faz pensar que ele pode fazer isso? Como ele vê a mulher? Por que ele faz isso a essas mulheres especificamente e não a outras? Ele deve ser criminalizado?

Deve haver quem se oponha à regulamentação, como o PSC, porque queira impor um ideal de mulher conservador: a dona de casa beata, comportada, submissa. Privatizada. Assim como deve haver quem reivindique a regulamentação não pelo direito das mulheres, mas por interesse em lucrar, acumular capital e explorar uma ferida aberta social que já funciona.

Abolicionistas fazem oposição à regulamentação da prostituição não por um ideal conservador de mulher, como o PSC, nem por uma ideia neoliberal de liberdade, como do PSOL, ou por interesses económicos, como os empresários da indústria bilionária do sexo. Nós recusamos o paradigma “Criminalizar a Mulher vs. Legalizar a Compra”.

Propomos diferente: invés de regulamentar a prostituição como um trabalho e, assim, dar permissão estatal para que homens usem seu poder económico para adquirir acesso sexual às mulheres mais vulneráveis (via de regra), nós propomos um modelo que tira o julgamento dos ombros da pessoa prostituída, dá a ela o poder de decidir quando houve/há abuso e coloca a responsabilidade sobre os ombros de quem usa a desigualdade económica como agente de coerção para obter sexo de outras pessoas.

Isto na prática significa: descriminalizar a prostituição; criminalizar quem compra e quem explora; criar dispositivos para auxiliar aquelas que querem sair da prostituição; e criar um programa ativo de educação sexual para a sociedade em geral e para infratores, de maneira a mudar a mentalidade patriarcal que naturaliza a comodificação do corpo feminino, especialmente para sexo.

Portanto, o paradigma não é se criminalizamos a prostituta ou legalizamos o comprador, mas sim se legalizamos ou criminalizamos aqueles que criam a demanda e que lucram com a comodificação dos corpos. O foco sai da mulher, que não criou a situação da prostituição, e passa para o homem comprador, que é o verdadeiro agente nesta troca.

Se ela pode escolher abortar, por que não pode escolher se prostituir?

Esta pergunta só é possível dentro do enquadramento explicado no ponto anterior: de que se opor à profissionalização da prostituição implica ser contra a escolha e, consequentemente, a favor da criminalização da pessoa prostituída. Aborto e prostituição é uma falsa simetria.

Aborto é sobre uma mulher fazer algo em seu próprio corpo. Prostituição é sobre alguém fazer algo ao corpo de uma mulher.

Fundamentalmente, está em discussão não o direito da mulher decidir sobre o próprio corpo – isto não deveria sequer ser tópico de discussão; aliás, ninguém debate o que um homem pode fazer ou não com o próprio corpo –, mas se qualquer outra pessoa (geralmente um homem) pode pagar para fazer algo ao corpo de alguém.

Pagar por sexo é um direito? Quem tem esse direito? Quem usufrui desse direito? Se é um direito, alguém tem o dever de fornecer. Ele pode pagar e exigir isso a qualquer pessoa? Senão, quem decide quais corpos podem ser comprados e quais não podem? Efetivamente, hoje, quais corpos são comprados e quais corpos compram? E o que isto diz sobre o status dessas pessoas na sociedade?

É quase impossível comparar, sem falácias e prejuízos de contexto, a prostituição com qualquer outra situação no mundo. No paradigma da sexualidade, o mais próximo disso, talvez, fosse o debate sobre mutilação genital feminina.

É impossível dissociar a mutilação genital feminina do processo de construção social e cultural, porém é possível dizer, efetivamente, que muitas meninas e mulheres “consentem” e “escolhem” a mutilação genital. Sim, isso parece um absurdo, mas porque a prática foi ritualizada e, muito além de compulsória, transformada numa questão de status na comunidade, recusar a mutilação é não ser aceita. É ser diferente, não ser integrada e “optar” por ser julgada por toda a comunidade à sua volta, ser tratada como uma estranha no seu contexto.

A mutilação, tal como a prostituição, é algo que marca a menina para o resto de sua vida, inclusive em toda a vida adulta e até a sua morte, trazendo riscos de saúde física e emocional, mas ninguém em sã consciência falaria sobre manter a prática de mutilação porque “tem quem escolha” ou “tem quem consente”. Ninguém diria que a mutilação pode ser “empoderadora” e “libertadora” se uma menina “optar” por fazer uma. Nem falamos sobre “proteger o direito de escolha de quem quer ser mutilada”. Sabemos que é compulsória para a maioria. Sabemos em que condições isso acontece. Sabemos do que construiu essa prática, quem se beneficia dela e que sua existência e causalidade é política. Sabemos, enfim, que o debate não é sobre escolha. Ponto. Isto não está em questão, e colocar sob esse prisma seria culpabilizar a vítima.

Por que nós só temos dúvidas sobre escolha e consentimento quando se trata da sexualidade das mulheres? Por que, nestes casos, parecemos incapazes de questionar os agressores?

Justamente porque a prostituição é mais sobre alguém ter o direito de fazer algo ao corpo da mulher invés de uma mulher ter direito de submeter o seu corpo ao que ou quem quiser, a questão da soberania ao próprio corpo cai por terra.

A pergunta que essencialmente precisa ser respondida é, então: o comprador de prostituição não infringe o direito humano universal que a pessoa prostituída tem sobre o próprio corpo? A soberania sobre o próprio corpo não é automaticamente violada quando alguém paga pelo “consentimento”?

Por que, para as mulheres, soberania e escolha é sobre direito a se submeter aos homens?

Não é a lei que torna a prostituição insegura

É sempre um começo que alguém expresse sua preocupação sobre a necessidade de direitos das pessoas prostituídas. Contudo, esta questão mostra claramente que se fala da regulamentação da prostituição de um ponto abstrato, puramente imaginativo, sem explicitar bem que direitos são esses que precisam ser assegurados e, principalmente, como isto faria as mulheres mais seguras quando seus corpos e sua sexualidade estão expostas para qualquer um que puder pagar.

Não é a falta de direitos trabalhistas que coloca mulheres prostituídas em precariedade e perigo, mas a falta de direitos civis.

A legalidade do aborto é uma questão de direito civil – embora me pergunte se isso será tratado como um direito trabalhista dentro da ideia de conceber a prostituição como trabalho. Gravidez é um acidente de trabalho? Cabe indenização? Aborto é um direito trabalhista então?

A ilegalidade do aborto torna o aborto inseguro porque faz com que ele aconteça em situações precárias de higiene e segurança. Mas a gestação em si não é um perigo, precária ou insegura. A prostituição é insegura porque a vulnerabilidade da pessoa prostituída à violência dos clientes é total – não pela falta de um recinto especial, de uma nomenclatura diferente na lei ou porque não permite descontar impostos.

Vamos tentar colocar isso de maneira concreta: quando seu “trabalho” é fazer um broche, receber uma dupla penetração ou fazer sexo grupal, de que forma descontar impostos torna isso mais seguro?

Se mulheres que sofrem violações, e estão fora da prostituição, têm dificuldade em comprovar que foi uma violação e que não consentiram, de que forma uma mulher cujo trabalho é fazer sexo poderá comprovar uma violação? Ou nunca podemos dizer que uma mulher prostituída é violada? Como comprovar que foi uma agressão e não parte do trabalho? Não apenas um serviço comprado pelo “cliente”?

Sobretudo, por que aquilo que é considerado assédio sexual, abuso e violação em qualquer outro ambiente de trabalho é, para a mulher prostituída, considerado serviço? E de que forma reconhecer isso legalmente como prestação de serviços fará dela mais segura? Especialmente se, para as autoridades, ela aceitou e ainda recebeu por isso – e o cliente está no seu direito.

As causas de morte mais comuns entre mulheres prostituídas são assassinatos pelas mãos de clientes e cafetões; e overdose por uso de drogas (a que muitas recorrem para “aguentar” o trabalho e se dissociar do “serviço”). Impostos, recibos e uma carta profissional que diz “trabalhadora do sexo” não diminuem os riscos de assassinato e agressão. De que forma elas estariam mais seguras?

Recentemente, Siam Lee, uma jovem de 20 anos que atendia numa casa de massagens na África do Sul, foi sequestrada, mantida em cativeiro, espancada, morta e incinerada por um ex-cliente. Seu corpo foi encontrado dias depois em um canavial. Tudo isso porque ela disse que não. Siam Lee disse que não queria mais atender um determinado homem e foi assassinada. À porta do tribunal, quando o homem era julgado, um grupo de mulheres sobreviventes da prostituição, do movimento Kwanele, protestavam e pediam que a prostituição não fosse regulamentada; que, invés disso, criminalizassem os clientes. Nada do que aconteceu a Siam Lee poderia ser evitado dando-lhe o título legal de trabalhadora do sexo e descontando impostos.

Não é a lei que mata pessoas prostituídas. Clientes matam prostitutas. Cafetões matam prostitutas. E as próprias consequências físicas e psicológicas da condição de ser uma “trabalhadora do sexo” matam prostitutas. Dar outro nome a isso e uma folha de recibos não muda a mentalidade e a forma como cafetões e clientes olham para as mulheres na prostituição, portanto não pode torná-las mais seguras.

Há países que regulamentaram a prostituição há mais de 20 anos. Por que não estamos olhando para os seus dados ao invés de considerar usar outra geração de mulheres como cobaias?

Nestes países, a prostituição de rua e clandestina continua a existir. Bordeis de luxo proliferam como cadeias de fast food, mas mulheres continuam sendo agredidas e mortas. Sabrinna Valisce, que foi ativista pela descriminalização e regulamentação da prostituição na Nova Zelândia, por exemplo, conta que após a descriminalização as coisas se tornaram mais inseguras que antes. Ponto reforçado por Mickey Meji, que foi prostituta por 9 anos na África do Sul, foi ativista pela regulamentação, e hoje é abolicionista e líder de um movimento de sobreviventes; e também por Chelsea Geddes, igualmente sobrevivente e ativista abolicionista.

Criminalizar a demanda, por outro lado, coloca o poder de ação na mão das mulheres. Ela não está cometendo crime algum em se prostituir, mas o homem está cometendo um crime de antemão se decidir pagar para adquirir sexo. O que isso significa é que qualquer deslize da parte dele é suficiente para que a pessoa prostituída o denuncie. Ela tem o poder de agir, já que a denúncia é uma decisão sua. Ele é o culpado.

Como o projeto abolicionista, conhecido como Modelo Nórdico ou Lei do Comprador de Sexo, compreende a prostituição como uma forma de discriminação e de violação de direitos humanos, torna-se muito mais fácil e, aliás, mandatório criar dispositivos que ajudem as pessoas prostituídas a deixarem a situação, se assim desejarem, oferecendo alternativas para substituir a sua fonte de renda e sobrevivência. Algo que, quando se naturaliza a prostituição como um “trabalho como outro qualquer, torna-se completamente obsoleto.

A ilegalidade do aborto torna crime que uma mulher decida sobre seu corpo. A legalidade da compra de prostituição torna possível que um homem decida sobre o corpo dela. A ilegalidade do aborto torna inseguro porque faz com que seja feito de maneira insegura. A legalização da compra torna inseguro porque faz com que o que quer que seja feito à mulher seja reconhecido como trabalho ou serviço.

Quando o único horizonte imaginável para uma mulher, nesta sociedade capitalista, é de submeter o uso e a venda do seu corpo ou partes dele ao mercado, seja sob a máscara de um “serviço” (como a prostituição) ou na forma de uma mercadoria (como a pornografia e o aluguel de úteros), a proposta da Esquerda não pode ser oferecer metade da classe da trabalhadora ao neoliberalismo. A resposta revolucionária e feminista não pode ser para que se abrace a bota capitalista que pisa a nuca das mulheres.

Ou somos pela abolição de todas as formas de exploração e pela não-mercantilização da vida, ou somos tão revolucionários quanto Trump e seu “Grab’em by the Pussy” ou Bolsonaro com sua oferta “quem quiser vir aqui ao Brasil ter sexo com uma mulher, pode”.


Texto originalmente publicado no Guilhotina.info