o feminismo não quer controlar o que você faz ou deixa de fazer entre quatro paredes. o problema não reside na sua conduta sexual, mas em chamar o seu individualismo de emancipação coletiva. ah, isso sim é desonesto. afirmar uma coisa dessas é retroceder no que as feministas têm dito e acumulado em anos de luta. é nosso dever questionar comportamentos sexuais, sim. principalmente porque temos em vista que a única sexualidade possível é a heterossexualidade — entendida como uma ideologia masculinista nociva às mulheres¹. portanto, podemos e devemos questionar práticas sexuais consideradas nocivas à nossa classe. feministas devem, sim, se posicionar contra o abuso, o subjulgamento, e à tortura: devemos nos posicionar contra o que é ditado pela heterossexualidade. foi assim, por exemplo, que avançamos em debates importantíssimos sobre consentimento e estupro, por exemplo. isso pra dizer o mínimo².
prova de que podemos dizer que a heterossexualidade é a única sexualidade possível, é que todas partimos do pressuposto que as outras pessoas são heterossexuais — o que dificulta a saída do armário de inúmeras pessoas, que se sentem pressionadas a performar o que é “normativo”, o que é a regra. é essa normatividade que nos reduz, e reduz as agressões sofridas por nós, por exemplo. em uma palestra sobre “violência contra mulher”, Catharine Mackinnon³ fala sobre como reunir estupro, assédio sexual, pornografia e agressão na mesma expressão faz com que vejamos essas questões como “não sexuais”. não seriam sobre sexo, mas sobre “violência”. significa dizer que, quando defendemos que estupro não é sexo, que é sobre poder, estamos esquecendo que a sexualidade masculina (heterossexualidade) é o próprio “poder”, em si. todos esses são crimes relacionados ao sexo, e frequentemente associados ao erotismo.
ela diz: “Ouço que esses temas são, todos, “violência contra mulher”, e não sexo, e que nós estamos na sombra de Freud, com medo de sermos chamadas de puritanas reprimidas. Estamos dizendo que somos op-rimidas e eles dizem que somos re-primidas” — era sobre isso que eu dizia quando defendi que feministas precisam estar preparadas para serem chamadas de “conservadoras”, ou “puritanas”⁴, “mal-comidas”. se levantamos nossas vozes para denunciarmos a sexualidade predatória dos homens, seremos sempre acusadas de não gostarmos de sexo. por isso é nosso dever continuar. Mackinnon vai dizer que nomearmos todas as agressões como “violências” é uma tentativa de nos esquivarmos do escárnio das pessoas. e ela menciona mil frases de efeito que eu mesma já cansei de ouvir, provavelmente vocês também.
se nos posicionamos contra o assédio, dizem: ah, então um homem não pode abordar uma mulher?; se nos posicionamos contra a pornografia, dizem: ah, então você é contra o erótico? — eu já ouvi esses jargões de mulheres que se consideram feministas. olha, eu não sei vocês, mas estou cansada de me esquivar dos nomes. podemos falar em violência sim, mas vale destacar que ela é: masculina, heterossexual, sequestradora de prazeres e desejos, modeladora de subjetividades e submissão, e, principalmente, é: estupro; assédio sexual; pornografia e agressão. a palavra “violência” é neutra e rasa: nós, não. “Nós temos uma crítica mais profunda do que tem sido feito à sexualidade das mulheres e de quem controla acesso a ela. O que estamos dizendo é que a sexualidade exatamente nessas formas consideradas “normais” frequentemente é violenta para nós. Enquanto continuarmos dizendo que essas coisas são abusos de violência, e não sexo, nós falhamos em criticar no que transformaram o sexo, o que tem sido feito contra nós por meio do sexo, porque deixamos intacta a linha que separa estupro e relação sexual, assédio sexual e papéis sexuais, pornografia e erotismo”.
tendo deixado explícito a linha que estou seguindo, vou usar como exemplo uma história dolorosa que aconteceu comigo uns poucos anos atrás. um rapaz me viu uma vez, eu estava com meu ex-companheiro, e me adicionou nas plataformas virtuais. a partir daí, teve acesso aos meus textos e fotos. o cara vivia nos nossos círculos de amizade, eu realmente achei que daria pra sermos colegas. não curtia meus textos, mas dava like em todas as fotos e falava de mim para as parceiras sexuais dele, que, aos poucos, foram me adicionando também. eu não sabia, mas como via outros amigos em comum, aceitava. não demorou muito, ele me propôs que fosse sua “domme”. na linguagem BDSM, é assim que são reconhecidas as mulheres dominadoras, sexualmente falando. os homens são chamados de “dom”. as submissas, de “sub”, e por aí vai.
quanto mais eu dizia que ‘não’, mais ele gostava e corria atrás. me mandava imagens — jamais solicitadas — dele fazendo esforços físicos para suas dominadoras, na tentativa de persuadir minha resposta. me fazia inúmeras propostas e, cada dia mais, eu me sentia envergonhada, coagida e com muito medo de contar para alguém. eu me sentia culpada. ele me elogiava muito e, quanto mais eu pedia que parasse, a sensação era de que ele ia ficando mais e mais animado com a ideia. se excitava. implorava. finalmente, venci a vergonha, consegui bloqueá-lo e tive que fazer isso com mais alguns perfis falsos que ele tentou me adicionar ou mandar mensagens, implorando perdão. eu não dividi isso com quase ninguém. às vezes tenho a impressão de que ainda me observa e tenho calafrio, enjôo.
ele era bizarro? escroto, nojento? sim. mas, acima de tudo, era homem. um homem comum, que participava de inúmeros grupos de BDSM tidos como “seguros”. percebam: sexo heterossexual não é seguro, todas sabemos disso. todas temos medo de estarmos entre quatro paredes com alguém do sexo oposto⁵ e, se não temos, deveríamos ter. é um espaço de vulnerabilidade e os principais agressores de mulheres são amigos, parentes, companheiros e ex-companheiros. são os números, é a experiência feminina que nos mostra isso. esse cara era um homem, um homem comum, desses que considera que nossos corpos estão à disposição deles. porque eles detêm poder. nós, não.
mas, se isso fosse a regra, por que um homem se colocaria como submisso? porque são fetichistas, vivem de fantasia, a fantasia vendida pela pornografia. a fantasia do que não somos. a fantasia de que estamos aqui para sermos servas deles. e, obviamente, porque a submissão DELES, na cama, é reversível. a única submissão a qual se submetem é esta: virtualizada e reversível. por que uma situação de um homem sendo submisso sexualmente é visto como “inversão de papéis”? porque as subjulgadas socialmente somos nós: isso não é fantasia, não é encenação, é sexualidade predatória.
uma vez, estava numa roda de amigos de amigos, e surgiu o assunto BDSM. tínhamos pessoas negras na roda. foi quando uma menina decidiu falar sobre sua experiência como dominadora e mencionou o “barulho da chibata” como excitante. era uma mulher branca. eu tive ânsia de vômito, pelas pessoas presentes. ela enaltecia uma história ficcional que, durante muito tempo foi exemplo de literatura sadomasoquista: The Story of O⁶. uma jovem que, depois de extenuada de tanto ser agredida, espancada, violada, sodomizada, e entregue a homens pelo seu dominador, pede permissão para seu dono para se matar. eu havia acabado de ler Dworkin falando sobre o assunto, e tinha lido também um texto falando sobre as origens racistas do BDSM⁷. toda aquela situação não poderia ser mais representativa pra mim.
uma mulher esses dias escreveu sobre sua experiência como “dominatrix” e o quanto é atingida por misoginia⁸, nesta função. para mim, não foi surpresa a afirmação. é esperado que, sendo mulher, ela sofra misoginia. é estrutural. mas fui ler o texto. ela apontava, entre outras coisas, que toda representação de “dommes” nas mídias, filmes e séries, é feita de forma agressiva, como mulheres que não respeitam os desejos e prazeres masculinos. ela fala de estupro, nessas representações: dominadoras que desrespeitam desejos dos submissos estão, na verdade, os estuprando. e isso, segundo ela, não condiz com a realidade. quanto a mim, sempre vi representações cômicas desses momentos, como em Sherlock Holmes, O lobo de Wall Street e Desperate Housewives, para citar poucos exemplos. é piada, para o senso comum. mulher no controle é piada, motivo de riso, mas principalmente, é uma concessão masculina.
por fim, controle virtual e temporário não significa poder. você pode querer disputar controle na cama, mas não disputa poder. nossa opressão não é reversível. brincar de mandar, amarrar, açoitar, pode parecer divertido para você, entre quatro paredes, mas não é, nem nunca será parte da luta pela emancipação e libertação de mulheres.
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¹sobre isso, e sobre todo o resto, leiam Adrienne Rich (‘Heterossexualidade compulsória e existência Lésbica’: aqui http://bit.ly/2j1feEE; e Mackinnon (‘Desejo e Poder’) aqui http://bit.ly/2myIO9p.
²leiam Yatahaze, sobre BDSM (FAC): http://bit.ly/2j0OaoT
³o texto tem nome de ‘Sexo e violência’, quem quiser traduzido fala comigo. original não tenho.
⁴sobre sermos conservadoras http://bit.ly/2j0s3io
⁵nenhuma mulher está segura entre quatro paredes com um homemhttp://bit.ly/2AM3WeE
⁶aqui tem uma análise de Andrea Dworkin sobre ‘A história de O’: http://bit.ly/2yP0VJV
⁷sobre as origens racistas do BDSM http://bit.ly/2tB0OCB
⁸Lauren Parker — Experiencing Misogyny as a Dominatrix — http://bit.ly/2iZrtBi