Rae Story trabalhou na prostituição por uma década, principalmente no Reino Unido, mas também em outros países como Austrália e Nova Zelândia. Ela saiu da prostituição no ano passado e posteriormente escreveu criticamente sobre o impulso liberal contemporâneo para a descriminalização total e o projeto concomitante de sanitização e legitimação da indústria do sexo. Encontre mais de seu trabalho no blog “In Permanent Opposition”. Tweeter @raycstory.
Nesta entrevista, Rae fala com Francine Sporenda, jornalista independente na França. Originalmente publicada no Feminist Current.
Francine Sporenda: Com base em sua própria experiência, você consideraria sua entrada na prostituição uma “escolha”?
Rae Story: Bem, foi uma escolha, mas é escolha tanto quanto é entrar em um relacionamento abusivo: antes de você entender os parâmetros desse relacionamento, é uma escolha. Ou, da mesma forma, começar a tomar heroína e, subsequentemente, se tornar um viciado em drogas, é uma “escolha”. Na verdade, essas coisas compartilham pontos em comum com a prostituição: pessoas abusivas geralmente bombardeiam de amor uma nova vítima para ganhar sua confiança e seguem esse “bombardeio de amor” com um perpétuo afastamento (combinado com abuso, negligência e crueldade) e retornam ao “bombardeio de amor” para não alienar completamente sua vítima. O mesmo processo ocorre com o vício e, poderíamos argumentar, com a prostituição.
Para muitas, eu inclusive, quando você entra pela primeira vez na prostituição, o dinheiro que você consegue rapidamente (mas não facilmente) é alto. Os sadismos e humilhações envolvidos na prostituição são insidiosamente introduzidos a você ao longo dos anos e são intercalados com aquela alta de ganhar dinheiro rápido, então você perdoa essa situação, e retorna a ela, como se fosse um relacionamento abusivo.
A grande maioria das mulheres que conheci (provavelmente todas elas, para ser honesta) eram de origens socioeconômicas mais baixas, então a atração desse dinheiro rápido é muito maior do que seria para mulheres que estão confortáveis financeiramente ou que são de origens mais ricas.
Faz sentido que ser exposta a relacionamentos frios, abusivos ou disfuncionais em sua juventude a prepare para a prostituição de maneira mais adequada, da mesma forma que muitas vezes prepara as pessoas para o vício em drogas. Pelo que pude perceber, todas as mulheres que conheci em prostituição eram de baixa classe socioeconômica e tinham algum tipo de abuso, negligência ou disfunção em suas histórias.
Soma-se a isso que, à primeira vista, a prostituição oferece altos rendimentos com baixas especificações de trabalho (sem qualificações necessárias) e flexibilidade. E, no entanto, no Reino Unido, talvez apenas 100.000 mulheres façam isso (de cerca de 32 milhões), e muitas delas são traficadas de outros lugares. Por que, relativamente falando, tão poucas?
FS: Feministas que desafiam o sistema de prostituição são muitas vezes respondidas com uma afirmação de que apenas “trabalhadoras do sexo” devem ser ouvidas no que diz respeito à legislação sobre prostituição. Você, por outro lado, escreveu: “tenha cuidado com as vozes das profissionais do sexo”. Por quê?
RS: A ideia de que aqueles envolvidos na prostituição devem ser apoiados em ter suas opiniões ouvidas é boa. No entanto, esta ideia básica transformou-se em algo mais problemático. Ter sua opinião ouvida não é o mesmo que dizer: “Você deve concordar comigo e seguir o que eu digo sem escrutínio ou pergunta”. Essa não é uma maneira acadêmica de fazer as coisas. Ter algum envolvimento na indústria do sexo é frequentemente brandido como uma arma para silenciar a oposição e substituir o discurso rigoroso. Na mídia social, os envolvidos na indústria do sexo dirão coisas para feministas abolicionistas como: “Parem de falar sobre mim. Eu sou uma profissional do sexo”, apesar do fato da opinião dela ter sido ouvida e respondida. De fato, é seguro dizer que as prostitutas recebem muito mais tempo na mídia do que aquelas que trabalham na maioria das outras profissões para discutir seus pensamentos e sentimentos sobre si mesmas. Limpadoras, trabalhadoras domésticas, trabalhadoras de fábricas e outras não são consideradas nem mesmo remotamente interessantes, politicamente. A ideia de que as prostitutas são silenciadas é risível, francamente.
Em qualquer caso, ter uma opinião e ter a opinião não é a mesma coisa e, neste caso, é extremamente problemático porque, em última análise, as leis de prostituição são uma forma de política econômica e social, não apenas política pessoal. No Reino Unido, o modo como nossas leis em torno da prostituição foram organizadas é mantê-la como uma transação privada, descriminalizando o comprador e o vendedor — mas não o procurador — e não permitindo que ele ocorra em um lugar público (solicitação). Agora, as prostitutas porta-vozes da indústria usam a linguagem [da política] “pessoal” da mesma maneira que se pode argumentar sobre os direitos do casamento para os gays. Eles se referem a si mesmos como se ser uma “trabalhadora do sexo” fosse uma identidade parecida com a sexualidade e como se a descriminalização da prostituição permitisse que elas exercessem suas próprias sexualidades pessoais. Quando, de fato, a descriminalização ou a legalização se trata de industrializar a prostituição, permitindo que os cafetões mais ricos aproveitem seu capital para criar grandes negócios e cadeias de bordel.
De certa forma, isso me lembra da situação legal das empresas nos EUA. Lá, as corporações são legalmente denominadas “pessoas” e suas atividades financeiras são denominadas “liberdade de expressão”. Dinheiro e negócios recebem o vernáculo do “pessoal”, que é fundamental para o projeto neoliberal. Eu vejo este comércio político em torno da identidade de “trabalhadora do sexo” como parte da mesma cultura.
Só porque algumas prostitutas apoiam este projeto liberal não significa que o resto da sociedade tenha que se enfiar nesse buraco com elas. Lembre-se também que mulheres conservadoras como Phyllis Schlafly fizeram campanha contra a Emenda dos Direitos Iguais (ERA) e usaram a ideia de que isso poderia tornar as mulheres elegíveis para o projeto militar — e o subsequente medo pela segurança das mulheres nessa oposição — em seus esforços, quando na verdade mulheres como Schlafly queriam manter os papéis de gênero e o poder masculino. As prostitutas pró-descriminalização não serão o primeiro grupo de mulheres a adotar ideais patriarcais sob o nome duvidoso de “segurança das mulheres”. E, é claro, a ideia de que os megabordéis, cujos donos geralmente são homens, sejam o lugar mais seguro para as mulheres é, no máximo, suspeita.
FS: Você discutiu a maneira pela qual o lobby pró-prostituição se apresentou estrategicamente como progressista e marginalizado, enquanto defendia valores regressivos e trabalhava para silenciar as sobreviventes. Você pode nos contar mais sobre esse comportamento e essas estratégias?
RS: Bem, como descrevi anteriormente, há um tom neste debate que reenquadra aqueles que se envolvem na prostituição como tendo uma “identidade”, como uma etnia ou sexualidade, então lutar pela descriminalização se torna uma causa humana — uma questão de direitos civis — ao invés de ser sobre os direitos do comércio. É eficaz porque aqueles que discordam deles podem ser rotulados como “fanáticos” ou “SWERFS” (feministas radicais excludentes de profissionais do sexo). Do que exatamente as autoidentificadas “profissionais do sexo” imaginam que estão sendo excluídas eu não sei… De fato, a prostituição é uma realidade material que se relaciona com as circunstâncias e com a desigualdade econômica e de gênero, e não com a política pessoal. O desejo de total descriminalização é sobre o direito das empresas de se expandirem sem intervenção estatal ou consideração pelo coletivo.
O termo “trabalhadora do sexo” é um termo político, não um mero descritor. É usado para legitimar a indústria do sexo como um negócio moralmente neutro e é semelhante a se referir àqueles explorados em situações análogas ao trabalho escravo pela indústria de roupas como “trabalhadores têxteis”. Somado a isso, ela colapsa as diferenças entre os diferentes tipos de “comércio sexual”, aqueles que administram bordéis podem se chamar de “profissionais do sexo” e se colocar no mesmo lugar que aqueles que realmente têm que lidar com paus de velhos malcheirosos para ganhar a vida. Mesmo os pornógrafos e fotógrafos de glamour podem reivindicar o título.
O uso superficial da linguagem dos direitos civis e o uso do conceito de “trabalhador do sexo” é uma forma de engenharia política. Ativistas pró-descriminalização, mesmo com um vago relacionamento com a indústria, podem ser chamados de “profissionais do sexo” e garantir que sua opinião seja considerada de maior valor nessa base. Alguém que tenha relacionamento com a indústria do sexo que discorda deles deve ser prejudicado de alguma forma para desacreditar sua oposição. É aqui que acho que fica sinistro. Sempre que tenho sido confrontada por um defensor da indústria, a veracidade do meu testemunho tem sido questionada de forma nebulosa, ou eu tenho sido chamada de mentirosa. Outra tática é implantar o método “Sinto muito que você tenha tido uma má experiência” para sugerir que qualquer sentimento negativo que eu tenha são anomalias isoladas. A mais insidiosa foi a acusação de que qualquer problema de saúde mental de que sofro é resultado de falhas ou fraquezas pessoais e não algo endêmico da indústria.
Esta é uma forma de manipulação política que patologiza os dissidentes. O exemplo mais grave disso foi o método usado para patologizar os escravos que tentaram escapar — sua escravidão era considerada inerente à sua personalidade e tentar escapar dessa condição de pessoa era considerada uma doença.
As pessoas que empregam essas táticas não são progressistas na teoria, nem são, geralmente, na prática.
FS: Em seu artigo, “A classe-medização da prostituição: a ascensão social do comércio sexual”, você discute a forma como o discurso pró-prostituição começou a apresentar a prostituta como uma empresária empoderada e racional vendendo seus produtos como qualquer profissional. Você diz que tentou jogar esse jogo, anunciando a si mesmo como estudada, sofisticada, apreciadora de bons vinhos e cavalheiros, vinda de uma boa família, apresentando-se como tendo apenas entrado na prostituição para “satisfazer seus apetites sexuais vorazes”. O que você acha que está por trás dessa “classe-medização” da prostituição?
RS: Eu acho que é algo que aconteceu organicamente como resultado dos avanços tecnológicos e da prática pós-moderna de se concentrar em experiências individuais (e não no coletivo ou em tendências mais amplas) e em como as coisas parecem ser, e não no que elas realmente são.
No início dos anos 2000, pessoas como Tracey Quan escreviam livros sobre supostas prostitutas urbanas de alta classe, que muitas vezes se concentravam menos no sexo com o qual tinham de se relacionar, e mais na cultura em torno da prostituição: os hotéis, as bolsas de grife, cortes de cabelo caros… Seus livros, em particular, tendiam a retratar as mulheres na prostituição como amantes de restaurantes caros e da cultura da “alta costura”. Demonstrou que as mulheres conseguiram incorporar a urbanização de alto nível. Se você olhar filmes e programas de TV que precederam isso, como Sex and the City e Uma Linda Mulher, o sucesso é marcado pela capacidade de adquirir as armadilhas do materialismo. A prostituição foi fortemente afetada por essas mudanças culturais, e o fato de que tanto o materialismo quanto a prostituição são formas pesadamente generificadas de comodificação não são mera coincidência.
As chamadas “prostitutas de classe média” usam essa tendência para se apresentar como bem-sucedidas a potenciais clientes e a outros, de maneira mais geral, mas a prostituição é um negócio incrivelmente precário. As mulheres que eu conheci gastavam grandes quantias de seus ganhos em feriados, roupas, jantares, etc., como se tivessem acesso a uma fonte infinita.
As mulheres na prostituição às vezes dizem: “Desde que eu tenha meu corpo, eu tenho uma renda”. Mas a realidade muitas vezes não é assim: as mulheres adoeciam com problemas mentais, eram ultrapassadas pela dependência de drogas, depressão ou transtorno do estresse pós-traumático. As mulheres que, a princípio, tinham enorme entusiasmo em dar aos compradores o que eles queriam (porque dava uma sensação inconstante e frágil de serem “boas” em alguma coisa) tornavam-se cínicas depois de más experiências, não conseguiam mais ser receptivas às demandas do comprador (e, portanto, perdiam dinheiro), ou simplesmente não podiam cobrar tanto conforme iam ficando mais velhas.
A “classe-medização” da prostituição é mais sobre imagem e consumo conspícuo. A estrutura real da “classe média” depende da segurança financeira, da capacidade de comprar uma casa, progredir no seu trabalho e ganhar mais dinheiro e estabilidade com a idade e possivelmente ter herança para deixar as crianças. A maioria das mulheres na prostituição não consegue fazer isso.
FS: O que você acha dos fóruns de compradores? Como eles afetam mulheres prostituídas?
RS: A cultura dos fóruns de compradores é muito masculinista e não é mitigada por qualquer receio de represália ou julgamento. Se esses homens tiverem atitudes machistas ou misóginas virulentas que não podem expressar nas suas esposas ou colegas de trabalho, e se tiverem atitudes sociopatas em relação às mulheres (e prostitutas em particular), esses fóruns fornecem um espaço onde os homens têm liberdade para expressar esses pensamentos e sentimentos. É uma espécie de “conversa no vestiário”, intensificada apenas pelo fato de que, em outros espaços masculinos, os homens muitas vezes só teorizam sobre o chauvinismo sociopata, enquanto nos fóruns de compradores os homens o promulgam. Eles interagem uns com os outros, encorajando-se mutuamente e perpetuando e intensificando a presunçosa sensação de que têm um direito natural.
Pela primeira vez em suas vidas, eles têm outros homens dizendo-lhes que não é inaceitável que eles queiram pagar uma garota de 18 anos que foi transportada de um país para outro para fins de prostituição, para conduzir todo tipo de atos físicos intempestivos com ela, apesar da falta de prazer ou conforto dela. Considerando que a sociedade, como um todo, pode julgá-los por querer fazer sexo com alguém que não retribui seu desejo (eles podem até ser ligados por esse mesmo fato), eles são encorajados e amparados por seus mais novos companheiros.
Do ponto de vista deles, os fóruns de compradores os libertam dos primórdios da prostituição, quando não conseguiam ver a mulher (e, portanto, examiná-la) antes de reservá-la e tinham que aceitar sua indiferença e atitude superficial em relação a ela. Eles foram galvanizados por uma cultura que implora às mulheres na prostituição que trabalhem com mais afinco pelos compradores, e pela acessibilidade de outros vendedores on-line com quem podem conversar e que reforçarão suas atitudes autorizadas e misóginas. Eles usam frases como “poder para o cliente” e “o cliente vem em primeiro lugar” e escrevem coisas incessantes e degradantes sobre as mulheres que eles acham que não atendem às suas expectativas.
A maioria das mulheres que conheci nos meus últimos anos de prostituição foram vítimas dessas avaliações e julgamentos em estilo de caça às bruxas. Os compradores escreviam que éramos gordas, feias, parecíamos mais velhas do que éramos e outras coisas horríveis demais para serem tipificadas. Muitas tentaram enfrentar isso corajosamente, mas tenho certeza de que as deixava deprimidas e inseguras e consideravam baixar os seus preços e assim por diante. Esses compradores sabiam que seus fóruns eram lidos por prostitutas e imagino, em reflexo, que é por isso que eles escreviam de maneira tão cruel e tão sádica. Como com qualquer abusador, castigo, humilhação e violação verbal são chaves para o seu controle emocional.