Ultimamente, venho dando palestras sobre o que vejo como um conflito de interesses entre os direitos das mulheres e os direitos trans, e a primeira coisa que venho fazendo em todas elas é enfatizar a heterogeneidade na classe de mulheres trans.
Eu me concentro nas mulheres trans (homens que “se identificam como mulheres”) em vez de homens trans (mulheres que “se identificam como homens”) porque, embora seja o ativismo trans que crie o conflito de interesses, o conflito que surge é uma questão de exigir que as mulheres trans sejam tratadas como mulheres em todos os aspectos sociais e legais, o que cria um conflito com direitos baseados especificamente no sexo das mulheres. (Não há conflito de interesses semelhante com o homens trans sendo tratado social ou legalmente como homens). Enfatizo a heterogeneidade dentro da classe das mulheres trans porque faz diferença nos argumentos e ajuda a evitar que falemos uns em cima dos outros em discussões.
Falamos uns em cima dos outros quando usamos as mesmas palavras, mas temos definições muito diferentes em mente. “Transwoman” (mulheres trans) é um ótimo exemplo dessa palavra. Considere a variedade existente na classe de pessoas que dizem ser mulheres trans:
1. Tipo de Transição
Transição cirúrgica. Algumas mulheres trans se submetem a uma cirurgia de redesignação sexual, o que significa que seu pênis e testículos foram removidos e substituídos por uma vagina e vulva construídas. (As mulheres trans que fizeram a transição cirúrgica quase sempre também passaram por terapia de reposição hormonal, apresentação e declaração de sexo ou identidade de gênero.)
Terapia de reposição hormonal. Algumas mulheres trans estão em terapia de reposição hormonal, geralmente estrogênio e progesterona, o que altera a aparência de algumas de suas características sexuais secundárias — por isso pode significar, por exemplo, que elas têm menos pêlos no corpo e crescem seios. (Há mulheres trans que só fazem a transição com terapia de reposição hormonal, apresentação e declaração de sexo ou identidade de gênero.)
Apresentação. Algumas mulheres trans se apresentam de forma feminilizada, o que pode significar ter cabelos longos / com penteados “femininos”, usar vestidos ou saias, maquiagem ou saltos altos e jóias. (Existem algumas mulheres trans que transitam apenas com apresentação e declaração de sexo ou identidade de gênero.)
(Declaração de) sexo ou identidade de gênero. Algumas mulheres trans identificam-se como mulheres. Algumas mulheres trans identificam-se como mulheres — embora não todas, algumas se identificam como “mulheres trans (transwomen)” especificamente. (Existem algumas mulheres trans que só fazem a transição dessa maneira.)
Um artigo da Vox de 2018 relata uma Pesquisa Nacional sobre Discriminação de Transgêneros, que constatou que 33% dos entrevistados fizeram uma transição cirúrgica (o que significa cirurgia de redesignação sexual) e 61% das pessoas trans fizeram a transição médica (o que significa tomar hormônios). 14% das mulheres trans comparadas para 72% dos homens trans disseram que desejarem fazer a transição cirúrgica. Se esses números são representativos entre países (o que talvez não o sejam — um estudo de coorte do BMJ de 2017 descobriu que apenas 4–5% dos indivíduos trans foram submetidos a cirurgias de reconstrução genital) e entre os sexos, podemos esperar que dois terços de todas as mulheres trans tenham pênis e mais de um terço de todas as mulheres trans não tenham realizado nenhuma transição física (nem cirurgia nem hormônios). Do restante de grupo, algumas não se apresentam de “maneira feminina”: não há literalmente nada para distingui-las de um homem em ambientes públicos, além da própria afirmação de que são “mulheres trans” ou mulheres (veja, por exemplo, a ativista dos direitos civis Danielle Muscato ou o consultor da Stonewall, Alex Drummond).
2. Idade de transição
Algumas mulheres trans fazem a transição no início da vida: alguns na infância; alguns quando adolescentes; alguns quando jovens adultos; alguns após a aposentadoria. De particular interesse pode ser a transição antes ou após a puberdade (isso faz diferença no desempenho esportivo e na capacidade de “passar como mulher” e, portanto, estar sujeito ao tratamento que as mulheres estão sujeitas ao patriarcado).
3. Motivo da transição
Dismorfia corporal. Algumas mulheres trans sentem que seus corpos estão errados, por exemplo, odeiam seus pênis e ficam angustiadas com o pensamento de passar por uma puberdade masculina que exacerbará as características masculinas de seus corpos.
Disforia de gênero. Algumas mulheres trans estão bem com seus corpos, mas acham que seu tratamento social como homens está errado; por exemplo, elas acham que deveriam ser tratadas como mulheres.
Orientação sexual. Algumas mulheres trans são homens afeminados atraídos pelo mesmo sexo, que foram socialmente canalizados para viver como mulheres (particularmente em culturas onde essa é uma resposta padrão ao comportamento efeminado nos homens). (Observe que se as mulheres não se sentem particularmente ameaçadas por terem homens gays em seus espaços, esse é um motivo para não se sentirem particularmente ameaçadas por ter mulheres trans desse tipo em seus espaços também).
Autogynephilia. Embora tenha se tornado completamente tabu mencionar isso, algumas mulheres trans são homens autoginefilos, o que significa que, se sentem sexualmente atraídos pelo pensamento de si mesmos como mulheres. Há extensa documentação desse fenômeno no livro de Anne Lawrence, “Homens presos nos corpos dos homens” (com base em relatos pessoais de autoginefilos), e um relato do ponto de vista da esposa de um autoginófilo no episódio do podcast feminista Canadense Feminist Current, ‘O que acontece quando seu marido decide ele é uma mulher?’ (12 de janeiro de 2018).
Teoria Queer. A teoria queer tem sido influente em todas as partes da academia e “se espalhou” pela corrente principal em idéias sobre o que é e deve ser o gênero. Em particular, as idéias de que não há distinção de sexo / gênero e de que tudo (incluindo sexo) é socialmente construído. Teoria Queer tem sido usada para sugerir que nosso sexo / gênero deve ser de acordo com o que achamos. Isso significa que alguns homens podem se declarar mulheres trans simplesmente porque não se identificam com alguns ou todos os aspectos da masculinidade. (Algumas dessas pessoas podem simplesmente se identificar como não binárias; outras podem se identificar como mulheres.)
Contágio social. Alguns homens podem ser inspirados a se declararem mulheres trans como resultado de contágio social, porque identidades queer de vários tipos se tornaram a versão de experimentação social da geração mais jovem (e em alguns casos, como a cirurgia de peito para homens trans, talvez também a versão da nova geração de auto-mutilação). O estudo de Lisa Littman no ano passado encontrou adolescentes e jovens adultos se declarando trans em grupos e após ampla exposição ao conteúdo trans on-line. (82,8% dos adolescentes e adultos jovens eram do sexo feminino, com idade média de 15,2 quando anunciaram que eram trans.) Ela observa que nenhuma dessas pessoas teria atendido aos critérios de diagnóstico para disforia de gênero na infância (Littman 2018, página 12).
4. Consciência Política
Consciência feminista. Algumas mulheres trans fizeram o trabalho de entender os privilégios masculinos e as maneiras pelas quais a socialização do sexo masculino sob patriarcado fornece um certo conjunto de características que não são substituídas por ficar em desvantagem em outra dimensão (nesse caso, ser trans). Isso é especialmente relevante para todas as mulheres trans que não fazem transição na infância. Alguns não fizeram esse trabalho. (A opinião de Emi Koyama sobre isso no ‘Manifesto Transfeminista’, pp. 3–4, é boa).
Por que essas diferenças são importantes no debate
Quando feministas radicais, como eu, falam sobre o que vemos como um conflito de interesses entre os direitos das mulheres e os direitos trans, tendemos a ter um tipo particular de mulher trans em mente; e quando os ativistas trans rejeitam a ideia de que existe algum conflito de interesses (e de fato, que somos nazistas por sugerir que poderia haver), eles tendem a ter um tipo muito diferente de trans em mente. Essa diferença de “pessoa imaginada” surgiu várias vezes nas conversas que tive com amigos e colegas sobre esse tópico.
Considere uma pessoa para quem, quando ouve ‘mulher trans’, imagina um homem bastante afeminado ou andrógino, que faz terapia hormonal e apresenta de maneira feminina, que fez uma transição bastante jovem, que tende a ter consciência de questões feministas e que sofreu muito com a experiência de lidar com a disforia de gênero desde tenra idade. Agora imagine essa pessoa discutindo se as mulheres trans devem ter acesso a espaços somente para mulheres, com alguém que, ao ouvir ‘mulher trans’, imagina um homem alto, musculoso e com sessenta anos, cuja apresentação feminina aparece como uma paródia da feminilidade, que mostra zero entendimento das questões feministas e que parece exibir muitos direitos masculinos em sua agressão às mulheres que ousam sugerir que ele pode não ser bem-vinda em todos os espaços somente para mulheres. Com pessoas tão diferentes em mente, é de se surpreender que os dois lados deste debate discordem tanto sobre se as mulheres trans são mulheres e se as mulheres trans devem ter acesso a todas as proteções que as mulheres têm sob a lei?
Observe o quanto essas diferenças afetam os argumentos também. Um homem identificado como trans e sem dismorfia corporal, não apresenta disforia de gênero (ou ‘incongruência’ de gênero, como no DSM-5 e CID-11) e é motivado pela teoria queer, contágio social ou autogynephilia, tem — eu acho — zero motivos para exigir seu acesso a espaços somente para mulheres. Ou seja, seus interesses na inclusão e o quanto ela é “prejudicada” pela exclusão não contam praticamente com nada comparado ao interesse das mulheres em ter alguns espaços livres de homens.
O mesmo não se aplica a um homem que tem dismorfia corporal ou disforia de gênero e que fez uma transição significativa como resultado disso. Nesse caso, precisamos pelo menos ter uma conversa mais cuidadosa sobre como equilibrar os interesses concorrentes dos dois grupos. Embora eu me incline a pensar que os terceiros espaços são uma solução melhor do que a inclusão de mulheres trans em espaços exclusivos para mulheres, eu ficaria muito mais feliz se estivéssemos apenas conversando sobre homens com dismorfia corporal ou disforia de gênero (e talvez até mesmo aqueles cuja motivação é a orientação sexual, ou seja, em algum mundo próximo possível, eles seriam homens gays).
A auto-identificação se sexo é uma opção de política ruim precisamente porque não é receptiva a nenhuma das distinções que acabei de fazer e propõe tratar como mulher qualquer pessoa que apenas afirme ser uma. Isso não é bom para as mulheres.
Tradução do artigo da filósofa feminista Dra. Holly Lawford-Smith: Talking past each other about trans/gender
Muito interessante o artigo, coisas assim é que valem a pena
a leitura!
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