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Feminismo radical: história, política, ação

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Feminismo radical: história, política, ação

Tradução livre do artigo Radical Feminism: History, Politics, Action de Robyn Rowland e Renate Klein, parte do livro Radically Speaking: Feminism Reclaimed, organização de Diane Bell e Renate Klein. Você pode visualizar e baixar o livro completo em inglês aqui.


Introdução

Por conta de sua própria natureza, o feminismo radical tem se concentrado em criar sua teoria na escrita sobre as vidas das mulheres e na análise política da opressão das mulheres. Pouco se devotou a definir e a redefinir nossa “teoria” por ela mesma. Enquanto feministas socialistas, liberais, e mais recentemente pós-modernas têm estruturas teóricas convenientes para manipular e remanipular, esticando-as como pele através o tambor das experiências de mulheres, o feminismo radical cria uma teoria social e política original da opressão feminina, além de estratégias para acabar com essa opressão que vêm das experiências vividas de mulheres.

Então, Janice Raymond escreve sua teoria das amizades femininas, suas paixões e os obstáculos envolvidos no desenvolvimento dessa amizade. Nisso, ela critica a heterorrealidade: o sistema de valores de que homens existem “para” homens, no qual se sustenta o patriarcado. Kathleen Barry, Catharine MacKinnon, Susan Griffin e Andrea Dworkin documentam o tráfico internacional de mulheres e de crianças, a pornografia e o estupro, criando uma análise de poder sobre violência contra mulheres e sobre o abuso dos corpos de mulheres como moeda internacional. Feministas radicais frequentemente combinam escrita criativa e teoria, como na poesia e prosa de Adrienne Rich, Audre Lorde, Robin Morgan, Susan Griffin, e Judy Grahn. Aqui a paixão do feminismo radical pode ser expressa em sua integridade, porque é uma teoria do emocional assim como é do intelecto racional.

Teoria e prática estão conectadas numa relação de interdependência. Anne Koedt, Judith Levine e Anita Rapone tocam nessa questão em sua introdução ao livro Radical Feminism em 1973 quando escrevem “(…) o propósito de selecionar e de organizar essa antologia é apresentar material de base não tanto sobre mas a partir do Movimento Feminista Radical” (grifos nossos). Radical significa o que vem da raiz; o feminismo radical olha para a raiz da opressão feminina. Como diz Robin Morgan:

Eu me intitulo feminista radical, e isso significa coisas específicas para mim. A etimologia da palavra ‘radical’ se refere a ‘quem vai à raiz’. Eu acredito que o sexismo é a raiz da opressão, aquela que, até que nós a extirpemos, continuará desenvolvendo os ramos de racismo, ódio de classe, etarismo, competição, desastre ecológico, e exploração econômica. Isso significa, para mim, que as chamadas revoluções até hoje têm sido na verdade golpes de estado entre homens, em uma tentativa vaga de aparar os galhos mas deixando as raízes cravadas no solo em prol da preservação de seus próprios privilégios masculinos.” (1978, p. 9)

A intenção revolucionária do feminismo radical é expressa em primeiro lugar e acima de tudo na centralização de mulheres: as experiências e os interesses de mulheres estão no centro de nossas teoria e prática. É a única teoria por e para mulheres. O feminismo radical nomeia todas as mulheres como parte de um grupo oprimido, reforçando que mulher nenhuma pode andar rua abaixo ou mesmo viver em sua própria casa em segurança sem medo de ser estuprada por homens. Mas a feminista francesa Christine Délphy pontua que como todas as pessoas oprimidas, muitas mulheres não gostam de aceitar que fazem parte de um grupo oprimido, interpretando uma análise de poder como uma “teoria conspiratória” e erradamente sentindo ameaças a seu senso de agência.

O próprio feminismo frequentemente marginaliza o feminismo radical, movendo-se em direção a um fácil e confortável liberalismo, reforçando o individualismo ao invés da responsabilidade coletiva; ou em direção ao socialismo com suas estruturas prontas para ataque, afastando a ebulição dos principais atores do patriarcado: os próprios homens.

Mais de dezesseis anos depois da publicação de Feminist Practice: Notes from the Tenth Year (1979) — um panfleto de publicação independente por um grupo de feministas radicais inglesas — muitos dos comentários sobre o lugar do feminismo radical ainda são verdadeiros.

Nós todas concordamos que nos chamaríamos feministas radicais e que faríamos algo a respeito do fato de que sentimos que nossas políticas foram perdidas, tornaram-se invisíveis, no atual estado do MLM (Movimento de Libertação de Mulheres). Sentimos que em parte isso é culpa do próprio feminismo radical, porque na Inglaterra nós não temos escrito muito por nós mesmas — concentrando em ação — então somos definidas (demonizadas?) por outros por definição.

Sentimos que o feminismo radical tem sido uma, se não a, maior força do MLM desde o começo, mas conforme facções começaram a emergir dificilmente são as mulheres que se denominam feministas radicais quem tem definido o feminismo radical. Por muito tempo foi usado como um termo pejorativo para encurralar aqueles aspectos da libertação feminina que assustavam aquelas preocupadas com a aceitação masculina, aqueles aspectos que mais ameaçavam sua imagem de respeitabilidade. Feministas radicais tornaram-se um objeto corporativo de escárnio do qual mulheres e homens poderiam se desassociar. (p.1)

O feminismo radical pós-anos 60 também teve sua história no ativismo de mulheres do passado. Por exemplo, Hedwig Dohm na Alemanha, Susan B. Anthony, Matilda Joslyn Gage e Charlotte Perkins Gilman nos Estados Unidos, Christabel Pankhurst (antes de sua fase socialista) e Virginia Woolf na Inglaterra, e Vida Goldstein na Austrália são apenas algumas de nossas predecessoras. Em Novembro de 1911, na Inglaterra, uma publicação feminista radical, The Free Woman, começou a publicar semanalmente como fórum de ideias revolucionárias sobre mulheres, casamento, política, prostituição, relações sexuais, e questões a respeito da opressão das mulheres e estratégias para exterminá-la. Foi banida pelas editoras, e muitas sufragistas rejeitavam a publicação por conta de seu posicionamento crítico na luta por voto enquanto solução definitiva para garantir igualdade de direitos para mulheres. “Feminismo é a pauta toda, emancipação política é uma ramificação”, elas escreveram (Tuttle, 1986, p. 117).

Posições teóricas do feminismo radical

Como o espaço é limitado, nós nos concentraremos nos princípios gerais compartilhados pelas várias correntes dentro do feminismo radical ao invés de nas diferenças entre elas. O primeiro e fundamental tema é que mulheres enquanto grupo social são oprimidas por homens enquanto grupo social, e que essa opressão é a opressão primária para mulheres. O patriarcado é a estrutura opressiva de dominação masculina. O feminismo radical torna o controle masculino visível uma vez que é exercitado em todas as esferas das vidas das mulheres, tanto públicas quanto privadas. Então reprodução, casamento, heterossexualidade compulsória e maternidade são focos primárias de enfrentamento e de possibilidade de mudanças.

Robin Morgan capta o entusiasmo do feminismo radical em sua definição no livro Going Too Far.

(…) não era (…) uma asa ou um braço ou um dedo da Esquerda — ou Direita — ou de qualquer outro grupo definido e controlado por homens. Era algo diferente, algo em si, uma política completamente nova, uma forma completamente diferente e surpreendentemente radical de interpretar a sociedade, matérias sencientes, a própria vida, o universo. Era uma filosofia. Era imensa. Também era definitivamente um Movimento real e autônomo, esse feminismo, com todos os pontos fortes implicados nisso. E também com todas as maldades — as disputas familiares autodestrutivas. (1978, p. 13)

Uma segunda característica elemental central do feminismo radical é que é criado por mulheres para mulheres. Christine Delphy pontua que pessoas da Esquerda, por exemplo, lutam em prol de outras pessoas, mas que

(…) as contradições de que resultam essa situação são alheias ao feminismo. Nós não estamos lutando por outras pessoas, mas por nós mesmas. Nós e mais ninguém somos as vítimas da opressão que denunciamos e contra a qual lutamos. E quando falamos, não é em nome de ou no lugar de outras pessoas, mas em nosso nome e do nosso lugar. (1984, p. 146)

O feminismo radical reforça que “emancipação” ou “igualdade” em termos masculinos não é suficiente. Uma revolução completa das estruturas sociais e a eliminação dos processos do patriarcado são essenciais. Em seu artigo publicado originalmente em 1979 chamado “I call myself a radical feminist” (“Eu me intitulo feminista radical”), a autora britânica Gail Chester delineou sua posição, definindo-se claramente como “ativa e crente na necessidade por um movimento forte, autônomo, revolucionário pela libertação das mulheres” (p. 12). Para ela, o feminismo radical é ambos — socialista em suas intenções e revolucionário.

Mary Daly define o feminismo radical em termos da individualidade das mulheres. Ao reivindicar e refazer a linguagem, ela estimula mulheres a tomarem de volta seu Eu verdadeiro, e a se tornarem proativas, amantes de si mesmas. Em Gyn/Ecology (1978), ela chama o feminismo radical de “uma jornada de apropriação feminina” (p. 1). Mary Daly tem um estilo único em que ela atualiza a linguagem para propósitos feministas radicais. Seu trabalho é apaixonado, poético, e lida com a dimensão espiritual. Ela vê a missão feminista radical como mudar a consciência, redescobrir o passado e criar o futuro a partir da “outrice” radical das mulheres. Em suas próprias palavras (p. 39): “Feminismo radical não é sobre reconciliação com o pai. Ao invés disso, é afirmar nosso nascimento original, nossa fonte, movimento, onda original. Esse descobrir de nossa integridade original é lembrar nossas identidades.”

Na introdução do primeiro volume da revista feminista francesa Quéstions Feministes (1977) — uma revista de teoria feminista radical — as editoras identificam sua perspectiva política como feminista radical, reconhecendo que a luta política em que estão envolvidas é aquela contra “a opressão das mulheres pelo sistema social patriarcal” (p. 5). Elas delineiam alguns dos princípios subjacentes do feminismo radical: a noção de que a existência social de homens e de mulheres foi criada ao invés de ser parte de sua “natureza”; o direito de mulheres serem não “diferentes” mas “autônomas”; e uma abordagem materialista à análise da opressão das mulheres baseada na premissa de que mulheres formam uma classe social baseada no sexo. Como Kate Millet (1971) escreveu: “o sexo é uma categoria de status com implicações políticas”.

Que mulheres formam um grupo que pode ser assemelhado a uma classe social é uma parte inerente da teoria feminista radical. Ti-Grace Atkinson escreveu em 1974 que “a análise começa com a razão de ser feminista de que mulheres são uma classe, que essa classe é política por natureza, e que essa classe política é oprimida. A partir disso, o feminismo radical se separa do feminismo tradicional” (p. 41). Ela via o “sistema macho/fêmea” como “a primeira e mais fundamental instância de opressão feminina”, acrescentando que “todos os outros sistemas de classe são erguidos sobre ela”. Ela escreve:

“As mulheres não serão livres até que todas as classes oprimidas estejam livres. Eu não estou sugerindo que mulheres trabalhem para libertar outras classes. Entretanto, no caso de mulheres que oprimem outras mulheres, o exercício de privilégio de classe por identificação em efeito imobiliza a classe sexual em seu lugar. Quando os interesses de alguém se identificam com aqueles de qualquer classe com poder, a posição dessa classe é mantida. Enquanto qualquer sistema de classes existir, ele existirá apoiado nas costas das mulheres.” (1974, p. 73)

Na introdução ao artigo Feminist Practice: Notes from the Tenth Year (1979), os princípios da Libertação de Mulheres foram claramente delineados. A partir desse manifesto, podemos agrupar alguns fios condutores em comum: o feminismo radical insiste que mulheres enquanto classe social ou grupo social são oprimidas por homens enquanto grupo social assim como individualmente por homens que continuam a se beneficiar por essa opressão e não fazem nada para mudar isso; o sistema pelo qual homens fazem isso foi nomeado patriarcado; o feminismo radical é ginocentrado e reforça tanto que o pessoal é político quanto a necessidade por ação e responsabilidade coletivas; é o “poder” mais do que a “diferença” que determina a relação entre mulheres e homens. E, finalmente, que “o que quer que a gente faça, pretendemos curtir enquanto fizermos!”.

Teoria e Prática

Porque a teoria é baseada nas experiências das vidas de mulheres, é parte do sistema de valores do feminismo radical que “o pessoal é político”. Nas palavras de Gail Chester (1979, p. 13): “A teoria feminista radical é de que a teoria advém da prática e de que é impossível de ser desenvolvida na ausência de prática, porque nossa teoria é tal prática e nossa prática é nossa teoria”. Mal-entendidos têm ocorrido porque críticos alegam que o feminismo radical rejeita a teoria. Mas [o feminismo radical] sempre sustentou que nós precisamos de teoria para entender as experiências de mulheres, para avaliar as causas da opressão feminina, e para revisar estratégias de ação. Mas nós rejeitamos teorias que são esotéricas demais, apartadas demais da realidade das experiências de mulheres, e inacessíveis demais para a maioria das mulheres a quem o feminismo deve servir: teoria que nós intitulamos de “teoria de desengajamento”.

Chester argumenta que a teoria feminista radical não tem sido reconhecida como “teoria” porque nem sempre foi redigida (p. 14): “Se sua teoria é materializada em sua prática, então a forma como você age politicamente tem tanto direito de ser considerada como um posicionamento sério de sua posição teórica quanto se fosse escrita em um livro que ninguém vai ler de qualquer forma”.

Charlotte Bunch escreveu que a teoria não é “simplesmente intelectualmente interessante”, mas que é “crucial à sobrevivência do feminismo”. Não é um exercício acadêmico mas “um processo baseado na compreensão e no avanço do movimento ativista” (1983, p. 248). Para esse fim, teoria feminista radical não é um exercício objetivo, descolado das próprias mulheres. Uma teoria que começa com mulheres, que coloca mulheres e suas experiências no centro, e que nomeia a opressão das mulheres, envolve uma visão holística do mundo, uma análise que se aprofunda em todas as facetas da existência para mulheres. Não é, como Bunch indica, uma “lista de lavanderia de questões femininas”, mas “fornece uma base para entender todas as áreas de nossas vidas (…) política, cultural, econômica e espiritualmente” (1983, p. 250).

Bunch alerta feministas radicais para não se sentirem cansadas ou sentirem que a teoria feminista é muito lenta quando se trata de ocasionar mudança. Atualmente “feministas estão tentadas a submeterem nossas epifanias a uma das duas teorias progressistas dominantes do século: social-democracia ou socialismo Marxista” (p. 250). Bunch argumenta que apesar de o feminismo poder aprender com ambas essas correntes de pensamento, não pode se encravar nelas ou se tornar muito amarrada a elas porque nossa visão de mundo é uma visão alternativa que é autônoma e ginocentrada.

Para ela, a teoria “tanto cresce a partir de quanto guia o ativismo em um processo contínuo e espiralado” (p. 251). Pode ser dividida em quatro partes inter-relacionadas: uma descrição do que existe e nomeação da realidade; uma análise do porquê a realidade existe e a origem da opressão das mulheres; estratégias de como mudar tal realidade; e determinar uma visão para o futuro (páginas 251–253).

Um exemplo da união entre teoria e prática é o desenvolvimento de ações coletivas. Por meio do trabalho coletivo, feministas radicais tentaram eliminar o conceito de hierarquia que coloca poder nas mãos de poucos em detrimento dos muitos. Trabalhar em um estilo cooperativo rumo a um objetivo comum dá valor a cada mulher, dando-lhe voz, ao mesmo tempo em que torna todas as membras coletivamente responsável pela ação.

Um exemplo da fundamentação do ativismo na teoria surge na análise das questões dolorosas e insaturadas centradas nas muitas violências contra as mulheres: violência doméstica, estupro, incesto, violência reprodutiva e feminicídio. Movimentos de base que se organizam no nível da existência e da sobrevivência cotidianas de mulheres, por exemplo dentro do Rape Crises Centre Movement e do Domestic Violence Movement, reforçam a luta contínua contra o abuso patriarcal. Também reforçam a crença de que em todos os dias de nossas vidas mulheres podem contribuir à erosão da autoimagem negativa e do senso de impotência que nos é entregue pela sociedade androcontrolada. Então a revolução acontece todos os dias, não em um futuro imaginado. Nas palavras de Gail Chester:

“Porque as feministas radicais não reconhecem uma divisória entre nossas teoria e prática, somos capazes de dizer que a revolução pode começar agora, ao tomarmos ações positivas para mudar nossas vidas (…) é uma visão muito mais otimista e humana de mudança do que a noção androdefinida da construção rumo a uma revolução em algum momento num futuro distante, (que ocorrerá) uma vez que todos os preparativos estiverem feitos.” (1979, pp. 14–15).

Patriarcado

Feministas radicais enxergam o patriarcado como um sistema de valores universal, apesar de ele se manifestar de diferentes formas histórica e culturalmente. Ruth Bleier o define assim:

“Por patriarcado, quero dizer o sistema histórico de dominação masculina, um sistema comprometido com a manutenção e a asserção da hegemonia masculina em todos os aspectos da vida — privilégios e poderes pessoais e privados assim como privilégios e poder públicos. Suas instituições direcionam e protegem a distribuição de poder e de privilégio àqueles que são machos, em proporções, entretanto, de acordo com as classes social e econômica e com a raça. O patriarcado assume diferentes formas e desenvolve instituições de apoio e ideologias específicas durante períodos históricos e políticas econômicas diferentes.” (1984, p. 162)

O patriarcado é um sistema de estruturas e de instituições criado por homens de forma a sustentar e a recriar o poder masculino e a subordinação feminina. Tais estruturas incluem: instituições como a lei, a religião e a família; ideologias que perpetuam a posição inferior “natural” das mulheres; processos de socialização para garantir que mulheres e homens desenvolvam sistemas de comportamento e de crença apropriados ao grupo mais ou menos poderoso de que pertencem.

As estruturas do patriarcado que foram estabelecidas de forma a manter o poder masculino já foram exaustivamente analisadas pelas femininas radicais. As estruturas econômicas foram estudadas, por exemplo, por Lisa Leghorn e Katherine Parker (1981), Marilyn Waring (1988), Prue Hyman (1994). Hilda Scott (1984) demonstra claramente a crescente feminização da pobreza. Estruturas políticas, legais e religiosas são dominadas por homens que se certificam de manter sua posição. O direito feminino ao voto é um evento historicamente recente. Dentro da profissão jurídica, poucas mulheres se sentam nas cadeiras mais altas do sistema jurídico. No domínio privado da família, casamento e reprodução, os homens estruturaram um sistema em que a capacidade reprodutiva da mulher a torna vulnerável, domesticamente explorada, e frequentemente presa numa dependência econômica.

ideologia patriarcal mantém essas estruturas. A família é mantida por meio do conceito de amor romântico entre homens e mulheres, quando, na verdade, os contratos de casamento têm historicamente uma base econômica. O trabalho da mulher dentro da família, que não é remunerado nem reconhecido, e que inclui o cuidado emocional dos membros da família assim como o cuidado físico, continua a ser definido como um “trabalho de amor”. Os homens conseguiram criar uma ideologia que define homens como os possuidores “naturais” de intelecto, racionalidade, e poder de governar. Processos como a socialização de crianças encorajam essa situação a continuar. Então, por exemplo, em jogos infantis, os meninos logo aprendem que eles devem atuar enquanto meninas devem criar uma “audiência” para a performance masculina.

A construção da família e da dependência econômica de mulheres por homens também se relaciona com a ideologia da heterorrealidade e com as estruturas da heterossexualidade. Adrienne Rich (1980) analisou a natureza compulsória da heterossexualidade e suas funções como uma instituição política.Ela argumenta que homens temem que mulheres possam ser indiferentes a eles e que “a homens seja permitido acesso emocional — e, portanto, econômico — a mulheres apenas nos termos delas” (p. 643). A natureza compulsória da heterossexualidade define o acesso dos homens a mulheres como natural, como seu direito.

Em uma análise mais larga, Janice Raymond (1986) criou o termo heterorrealidade, que é a crença de que no nosso mundo o propósito da mulher é ser “para os homens”. A heterorrealidade determina que a mulher solteira é definida como “solta” no sentido promíscuo. Então o estado de liberdade e desatrelada no que concerne a homens é traduzido como o estado negativo de estar disponível a qualquer homem.

O sistema patriarcal é localizado dentro de uma linguagem e de um sistema de conhecimento que constrói a masculinidade e a feminilidade no suporte da distribuição de poder definida. Dale Spender trata dessas questões em sua análise da linguagem, demonstrando como homens construíram e controlaram a linguagem com o objetivo de reassegurar a posição de subordinação feminina (Spender, 1980). Ela também faz um resgate das “mulheres de ideias” historicamente e o conhecimento que elas criaram. Em Women of Ideas and what Men have done to them ela escreve:

“Eu aceitei que uma sociedade patriarcal depende em larga medida de a experiência e os valores de homens serem percebidos como a única moldura válida de referência para a sociedade, e que é portanto do interesse patriarcal impedir que mulheres compartilhem, estabeleçam e definam sua igualmente válida, real e diferente moldura de referência, que é resultado de experiências diferentes.” (1982, p. 5)

Spender reforça que homens têm controlado o conhecimento e portanto invisibilizado as mulheres no mundo das ideias. As estruturas dentro do patriarcado são estabelecidas de forma a manter a visão de que não há problema nenhum com o fato de que homens são mais poderosos do que mulheres. Como ela diz (1982, p. 7): “O patriarcado requer que qualquer conceitualização de mundo em que homens e seu poder sejam um problema central se torne invisível e irreal. Como poderia o patriarcado aceitar que os homens são um problema sério?”.

O patriarcado também tem base material em dois sentidos. Primeiro, os sistemas econômicos são estruturados de forma que mulheres têm dificuldade de conseguirem trabalho remunerado em uma sociedade que só valoriza o trabalho remunerado e em que o dinheiro determina poder. É extremamente difícil para mulheres sem independência econômica sustentar a si mesmas sem um ganha-pão. É difícil abandonar um marido violento, negar serviços sexuais, emocionais e físicos a homens, ter voz igual em decisões que afetam suas vidas, como por exemplo onde elas vão morar. O feminismo radical portanto reforça a necessidade de que mulheres exercitem poder econômico em prol de si mesmas.

O serviço doméstico não-remunerado na casa é fundamental em sustentar o sistema patriarcal. Christine Délphy, cujo feminismo radical flui de uma base marxista, argumenta que “o patriarcado é o sistema de subordinação de mulheres a homens nas sociedades industriais contemporâneas, que esse sistema tem uma base econômica, e que essa base é o modo de produção doméstico” (1984, p. 18). Também é um modo de consumo e de circulação de bens e difere do modo de produção capitalista porque “as pessoas exploradas pelo modo de produção doméstico não são remuneradas mas sustentadas. Nesse modo, portanto, o consumo não é separado da produção, e a divisão desigual de bens não é mediada por dinheiro” (1984, p. 18). Délphy argumenta que a análise da opressão feminina utilizando uma análise tradicional de classes não é adequada porque não consegue levar em consideração a exploração específica de mulheres sem renda. Os homens são a classe que oprime e que explora mulheres e que se beneficia de sua exploração.

A segunda base material que o feminismo radical intitula como crucial à Libertação das Mulheres é aquela do próprio corpo da mulher. Internacionalmente, é o corpo da mulher que é a moeda do patriarcado. Kathleen Barry demonstrou em Female Sexual Slavery (1979) e em The Prostitution of Sexuality (1995) que o tráfico internacional de mulheres opera extensivamente para controlar socialmente as mulheres. Mulheres casadas são vistas como “propriedade” de seus maridos e não conseguem sustentar juridicamente a alegação de estupro em muitos países. Os corpos das mulheres são usados de forma semelhante em propagandas e na pornografia, objetificadas e definidas como o “outro” e disponíveis para o uso masculino. Como Délphy pontua, “o feminismo, ao imbricar a palavra opressão no domínio da sexualidade, anexou-a ao materialismo” (1984, p. 217). Os homens controlam as leis da reprodução, por exemplo parlamentos dominados por homens e indústrias farmacêuticas dominadas por homens determinam as formas de contracepção disponíveis e o quanto elas podem ser usadas. Governos controlados por homens determinam o acesso de mulheres a abortos seguros. Leis desenvolvidas por homens determinam o poder civil ou a falta de poder de mulheres que levantam acusações de estupro ou de incesto contra homens.

Homens, enquanto grupo, aproveitam os privilégios do poder. É do maior interesse de homens manter o sistema patriarcal existente, e o mundo foi estruturado para manter esse desequilíbrio de poder; por exemplo, em sua estrutura de remuneração desigual, e na segregação sexual do mundo de trabalho. Eles precisam manter o trabalho não-remunerado de mulheres; o serviço emocional e físico das mulheres; o senso de estar em controle que eles sentem individual e coletivamente. Os homens vivenciam ambos medo e inveja do poder reprodutivo de mulheres (O’Brien, 1981; Rowland, 1987b). É uma área da vida que é controlada pelo grupo menos poderoso, as mulheres. Para conquistar o controle de volta, os homens desenvolveram leis que regulam e controlam o aborto e a contracepção. Historicamente, eles disputaram com doulas/parteiras pelo poder sobre o parto, e por meio do desenvolvimento de notas tecnologias reprodutivas, visam controlar a própria concepção (Rowland, 1992/1993).

O poder masculino é mantido e definido por meio de uma variedade de métodos: por meio de instituições sociais, por meio da ideologia, por meio da coerção e da força, por meio do controle de recursos e prêmios, por meio de políticas de intimidade, e por meio de poder pessoal. Essa etiquetação simplística de uma análise do patriarcado como uma “teoria conspiratória” convenientemente permite que críticos do feminismo radical ignorem essa análise da opressão feminina (ver também Chesler, 1994 sobre o patriarcado a partir de uma perspectiva de “vítima expert”).

Universalidade: questões de raça e de classe

O feminismo radical é acusado de um “falso universalismo”; uma presunção injustificada de semelhança entre mulheres (Eisenstein, 1984). De fato, o feminismo enxerga a opressão feminina como universal, atravessando barreiras de raça e de cultura, assim como de classe e de outras estruturas delineadoras como sexualidade, idade e capacidade física. Feministas radicais não se desculpam por isso. A escravidão sexual dentro do casamento foi uma acusação feita por Christabel Pankhurts no século XIX na Inglaterra Anglo-Saxônica, e a escravidão sexual enquanto comércio foi documentada e delineada por Kathleen Barry (1979, 1995) em diversos países no século XX. Somos acusadas de ignorar a diferença — de sermos indiferentes à diferença. Ainda assim, o feminismo radical sempre acolheu e reconheceu a diversidade das mulheres, ao mesmo tempo em que reforça nossas semelhanças.

O conceito de irmandade entre mulheres é importante para o feminismo radical, frisando a crença de que para minar o poder masculino as mulheres precisam formar um grupo revolucionário coeso. A irmandade entre mulheres é um conceito de mulheres unidas comovente e potencialmente radicalizante. Sonia Johnson conduziu uma campanha histórica pela presidência dos EUA em 1984 sobre uma plataforma feminista radical. Ela escreve (1986, p. 14): “Um dos pilares básicos do feminismo radical é que qualquer mulher no mundo tem mais em comum com qualquer outra mulher, independentemente de classe, raça, idade, grupo étnico, nacionalidade, do que qualquer mulher tem com qualquer homem”.

Em Sisterhood is Global (1984), Robin Morgan une contribuições de feministas de setenta países, a maioria dos quais são países de terceiro mundo. Ela começa com uma citação sobre a posição global das mulheres no Informe à Comissão da ONU sobre o Status de Mulheres, que melhorou pouco desde que foi escrito e ainda é bastante citado: “Apesar de mulheres representarem metade da população global e um terço da força de trabalho, elas recebem um décimo da renda mundial e são donas de menos de um porcento das propriedades do mundo. Elas também são responsáveis por dois terços de todas as horas de trabalho.” Morgan então segue para unir as semelhanças de mulheres através das várias representações feministas no livro. Essas incluem, dentre várias, os seguintes aspectos que nós resumiremos brevemente.

Dois terços das pessoas analfabetas do mundo são mulheres, e apesar de a taxa de alfabetização geral estar aumentando, a taxa de analfabetismo entre mulheres está crescendo. Apenas um terço das mulheres do mundo tem acesso a informações ou tecnologias contraceptivas. Nos países em desenvolvimento, mulheres são responsáveis por mais de cinquenta porcento de toda a produção de comida. Em países industrializados, mulheres ainda recebem apenas de metade a três quartos da remuneração masculina. A maior parte da população que passa fome no mundo é composta por mulheres e crianças. Vinte milhões de pessoas morrem todos os anos de causas relacionadas à inanição e um bilhão enfrenta desnutrição crônica e pobreza. A maioria dessas pessoas são mulheres e crianças. Mulheres e crianças constituem mais de 90% de todas as populações refugiadas. Mulheres de todos os países suportam o fardo duplo de trabalho doméstico não-remunerado e qualquer outro trabalho remunerado que elas façam.

Muitos países têm histórias de invisibilidade da história das mulheres. Religiões patriarcais organizadas operam internacionalmente para manter mulheres em posições subservientes. O direito a um aborto seguro está sob constante ataque na maioria dos países. A autonomia reprodutiva ainda é apenas uma teoria ao invés de uma prática na maioria dos países. Leis a respeito de casamento seguem militando contra a independência e a liberdade das mulheres. O tráfico de mulheres e de crianças está aumentando e isso é particularmente verdadeiro na Ásia e no Pacífico. A violência contra as mulheres por meio de estupro, pornografia, e violência doméstica é uma questão global persistente.

E as conexões continuam. Robin Morgan comenta que as contribuições no livro Sisterhood is Global atravessam cultura, idade, ocupação, raça, preferência sexual e barreiras ideológicas, e assim o faz o Movimento de Libertação de Mulheres. Ela fala da resistência ao patriarcado demonstrada em todos os países, e o senso de solidariedade e de unidade expresso por mulheres:

”Contribuidora atrás de contribuidora nesse livro contesta a análise de classe, julgando-a na melhor das hipóteses incompleta e na pior das hipóteses deliberadamente divisiva de mulheres. Artigo após artigo tenta valentemente não minimizar as diferenças mas identificar as semelhanças entre e dentre mulheres (…)

O estupro, afinal, é um terror onipresente a todas as mulheres de qualquer classe, raça, ou casta. Violência doméstica é um pesadelo de dor física e emocional não importa quem seja a vítima (…) Uma vida humana em amarras — tal sofrimento não pode ser computado, julgado ou levado a uma competição vergonhosa.” (1984, p. 19)

Feministas radicais portanto sustentam que mulheres são oprimidas originalmente e em primeira instância enquanto mulheres. Mas por conta de diferenças em nossas vidas criadas, por exemplo, por cultura e classe, mulheres vivenciam essa opressão de formas diferentes, e tal opressão se expressa de forma diferente. O feminismo radical visa desde o começo lidar com tais diferenças. Como relembra Susan Griffin:

“E, é claro, nós carregamos os conflitos e as diferenças da sociedade para nosso mundo. Dentre nós havia mulheres da classe trabalhadora, da classe média, mulheres brancas, mulheres racializadas, mulheres judias, mulheres católicas, mulheres lésbicas e heterossexuais, mulheres com e sem crianças. Tivemos de aprender a conversar entre nós não só sobre nossa opressão compartilhada mas também sobre as diferentes condições de nossas vidas, e, como em qualquer movimento, às vezes vacilamos frente a essas diferenças, e brigamos a respeito da definição de quem nós somos.” (1982, p. 11)

Já em 1969 houve um “Congresso para Unir Mulheres” em que muitas dessas questões foram levantadas. Em oficinas de trabalho, mulheres trabalhavam a questão “como mulheres são divididas: diferenças de classe, raciais, sexuais e religiosas”. As conclusões incluíram o seguinte:

“Nós trabalharemos com todas as mulheres reconhecendo que a singularidade de nossa revolução transcende diferenças econômicas, raciais, geracionais e políticas, e que essas diferenças devem ser transcendidas em ação, pelo interesse em comum de nossas libertação, autodeterminação e do desenvolvimento de nosso movimento político.

Todas as mulheres são oprimidas enquanto mulheres e podem se unir com base nisso; entretanto, reconhecemos que existem diferenças entre mulheres, criadas por homens — [diferenças de] privilégios econômicos e sociais, raça, educação, etc — e que essas diferenças são reais, não estão somente em nossas cabeças. Tais divisões devem ser eliminadas. Elas só podem ser eliminadas por meio de trabalho e de ações concretas, não pela retórica.” (Koedt et al, 1973, p. 309)

Ao final da primavera de 1971 houve uma conferência feminista radical em Detroit, EUA. As diversas questões discutidas são delineadas por Robin Morgan (1978). Dentre elas, estavam as dificuldades de relacionamentos com homens, as dificuldades a respeito de decisões sobre crianças, e lesbianismo. “E quanto nosso etarismo e mulheres mais velhas? Como feministas brancas podem concretamente apoiar o feminismo crescente dentre as mulheres de minorias?” (p. 156).

Em 1978, os problemas das diferenças raciais foram discutidos por Adrienne Rich em sua prosa “Disloyal to civilisation: feminism, racism, gynophobia”, em que ema escreve sobre a separação de mulheres brancas e mulheres negras umas das outras e pontua a dificuldade e a dor e a raiva envolvida nesses contornos. Rich reconhece “a instrumentalidade passiva ou ativa das mulheres brancas na prática de desumanidades contra pessoas negras” (1979a, p. 284). Mas ela argumenta contra o que ela chama de um jogo ridículo e infrutífero de “hierarquias de opressão” incluindo o reflexo liberal de culpa no papel das mulheres sempre que o racismo é mencionado. Existe um perigo, ela argumenta, de que sentimentos de culpa provocados em mulheres brancas possam se tornar uma forma de controle social, paralisando ao invés de impulsionando mulheres a se relacionarem com a própria natureza do racismo. Ela adverte mulheres brancas contra as possibilidades de união a homens brancos em detrimento de mulheres negras.

Mas como bell hooks (1984) pontua, também há diferenças culturais. Ela enfatiza a importância de aprender códigos culturais. Ela cita uma estudante ásio-americana de origem japonesa que relutava em participar de organizações feministas porque ela sentia que feministas falavam muito rapidamente e sem pausas. Ela foi criada para parar e pensar antes de falar, e, portanto, se sentia deslocada em grupos feministas.

Esse exemplo levanta a variedade de categorizações que delineiam diferentes grupos de mulheres. Robin Morgan (1984) pontua em sua análise global do Movimento de Liberação de Mulheres as diversas formas de divisão que podem operar, incluindo a divisão em clãs, em tribos, o sistema de castas, o ódio religioso, e a vida urbana versus a rural. Olhar para as diversas categorias possíveis nos lembra que o racismo em si é uma ideologia. Como Rosario Morales, de origem porto-riquenha, comenta:

“(…) todo mundo pode ser racista independente de sua cor e de sua condição. Apenas algumas de nós estão sujeitas a ataques racistas (…) a culpa é um fato para todas nós, brancas e racializadas: e a identificação com o opressor e com a ideologia opressiva. Vamos, ao invés disso, identificar, entender, e sentir com os grupos oprimidos enquanto forma de sair do pântano do racismo e da culpa.” (1981, p. 91)

A crítica de que o feminismo radical não lida com classe tem o objetivo de sugerir que nós não consideramos que a economia seja de importância, e que nós não entendemos a luta contra o capitalismo. Isso é evidentemente falso considerando os trabalhos, por exemplo, de Lisa Leghorn e Katherine Parker, e da teórica francesa Christine Délphy. Mas, como a própria comenta:

“(…) mas nós feministas materialistas, que afirmamos a existência de diversas — no mínimo, duas — sistemas de classe, e portanto a possibilidade de um indivíduo ser membro de diversas classes (o que, por sua vez, pode ser contraditório); nós de fato consideramos que homens da classe trabalhadora não podem, enquanto vítimas do capitalismo, dessa forma serem absolvidos do pecado de serem os beneficiários do patriarcado.” (1984, p. 147)

A definição de mulheres enquanto uma classe em si sugere que homens se beneficiam de formas concretas e materiais de sua opressão e de sua exploração de mulheres. Qualquer que seja o regime político, são as mulheres que executam o trabalho doméstico não-remunerado, e são os homens que se beneficiam disso. São as mulheres que servem emocional e sexualmente.

O feminismo radical reconhece que mulheres vivenciam sua opressão de forma diferente dependendo da classe. No início dos anos 70, duas membras da coletiva estadunidense The Furies publicaram uma antologia sobre Feminismo e Classe (Bunch e Myron, 1974) na qual autoras feministas radicais abordavam os problemas engendrados por diferenças de classe entre feministas. Consistentemente, desde aquela época Charlotte Bunch frisou uma análise de classe dentro do feminismo radical. Em suas palavras:

“A opressão feminina tem suas raízes em ambos as estruturas de nossa sociedade, que são patriarcais, e os filhos do patriarcado: o capitalismo e a supremacia branca. O patriarcado inclui não só a dominação masculina mas também o imperialismo heterossexual e o sexismo; o patriarcado levou ao desenvolvimento da supremacia branca e do capitalismo. Para mim, o termo patriarcado se refere a todas essas formas de opressão e de dominação, todas devendo ser abolidas antes que todas as mulheres possam ser livres.” (1981a, p. 194)

Em sua discussão da sexualidade ela pontua que pode haver uma ruptura de barreiras de classe entre lésbicas em que “intimidade extra-classes” ocorre. Isso é particularmente verdadeiro para mulheres de classe média porque

(…) lesbianidade significa descobrir que temos de sustentar nós mesmas pelo resto de nossas vidas, algo que mulheres de classes mais baixas e trabalhadoras sempre souberam. Essa descoberta nos faz começar a entender o que mulheres de tais classes têm tentado nos dizer o tempo todo: “o que você sabe sobre sobrevivência?”.” (1981a, p. 71)

De novo, o pessoal é político. Feministas radicais não vão investir a energia das mulheres à revolução tradicional socialista, apesar de compartilharmos alguns valores, como a questão da natureza opressiva do capitalismo. Não temos esperança de que tais revoluções elaboradas por homens vão garantir a autonomia das mulheres. Bonnie Mann analisou o socialismo em ação na Nicarágua, apontando os valores positivos inerentes ao trabalho do governo sandinista, mas também notando que não havia lésbicas conhecidas na Nicarágua e não havia aborto seguro. Ela escreve:

“Mas existe uma ligação aqui que a história ensina suas estudantes feministas radicais que há tempos rejeitam a redução ideológica do patriarcado ao capitalismo por parte da esquerda, para aquelas de nós que sabem que uma revolução socialista ou comunista não é a resposta ao status de escravidão global das mulheres. A lição é esta: qualquer coisa que golpeie uma raiz tão grande de sofrimento, de maldade nesse mundo, reverbera pelas próprias bases do poder patriarcal. E essas reverberações ressoam com a possibilidade de mudanças radicais e duradouras.” (1986, p. 54)

Corpos femininos

O feminismo radical tem reforçado o papel da integridade e da autonomia corporais das mulheres como essencial para a libertação. Essa questão tem sido trabalhada de três principais formas: pelo Movimento de Saúde Feminina, pela análise do corpo enquanto local primário da opressão feminina, e pelas discussões sobre sexualidade.

O Movimento de Saúde Feminina

Como parte da análise das estruturas do patriarcado, o feminismo radical sustenta que a medicina é controlada por homens, operada para controlar socialmente mulheres em detrimento de nossa saúde. No fim dos anos 60, o Movimento de Saúde Feminina ganhou força, desenvolvendo-se desde então a nível internacional com diversas abordagens à saúde das mulheres. A forma como a saúde das mulheres tem sido tratada foi revisada, com foco em autocuidado e em prevenção ao invés da dependência em tecnologias e em drogas de alta tecnologia, caras, e perigosas.

 A antologia britânica No turning back documenta isso.

As feministas radicais reivindicam aborto e métodos contraceptivos seguros e gratuitos. “O direito à escolha”, quanto ao aborto, foi um slogan que resumia o direito de uma mulher decidir se quer ou não seguir com uma gravidez e gerar uma criança. Mulheres racializadas nos alertaram das limitações do conceito de escolha contido nesse slogan ao frisar que enquanto mulheres brancas eram controladas por conta da ausência de acesso ao aborto, mulheres negras eram controladas pela constante esterilização sem consentimento.

Obviamente, o fato de que mulheres negras são esterilizadas contra sua vontade enquanto mulheres brancas têm cada vez mais dificuldade de conseguir um aborto é relacionado à tentativa de limitar a população negra, por um lado, e, por outro, de forçar mulheres brancas para fora do trabalho remunerado. Uma campanha em torno do “direito de escolha da mulher” deve se relacionar às diferentes necessidades e demandas de todas as mulheres, e, ao fazer isso, deve reconhecer que os problemas das mulheres negras não espelham aqueles de mulheres brancas. (Feminist Anthology Collective, 1982, p. 145)

O reconhecimento de que o conceito de “escolha” deve ser redefinido também levou à análise da forma como mulheres no Terceiro Mundo têm perigosas drogas contraceptivas controladas despejadas nelas, assim como do aumento do uso de Depo-Provera [n/t: contraceptivo injetável] e Norplant [n/t: contraceptivo implantado sob a pele, com duração de 5 anos] e a análise da forma como a ajuda internacional é amarrada a outras coisas como por exemplo programas de esterilização de mulheres (ver Akhter: 1987, 1995). Um dos principais marcos do Movimento de Saúde Feminina foi a ação revolucionária inicial do autocuidado ginecológico. Em abril de 1971, em Los Angeles, Carol Downer mostrou para mulheres pela primeira vez como usar um espéculo para examinar suas próprias vaginas, cérvix, e o corpo de outras mulheres. Essas ações desmistificaram os corpos femininos e tornaram o ritual ginecológico mais óbvio quanto à sua humilhação de mulheres. Ellen Frankfort relembra:

“Eu odeio usar a palavra “revolucionário”, mas nenhuma outra palavra parece precisa o suficiente para descrever os efeitos da primeira parte daquela tarde. Era como se pessoas cegas estivessem enxergando pela primeira vez — porque, afinal, qual mulher não é cega para seu próprio interior? A simplicidade com que Carol examinou a si mesma trouxe à tona de supetão todo o ritual ginecológico: as revistas, a sala de espera, e então o próprio exame — ser mandada se despir, deitando de costas com seus pés pra cima em apoios… sem ninguém pensar que ‘encontrar’ o médico pela primeira vez nessa posição é minimamente estranho.” (1973, p. ix)

O desenvolvimento de centros de saúde feminina foi uma parte essencial dessa forma de ativismo. A intenção era desenvolver medidas de saúde alternativas para lidar com algumas das principais enfermidades de que mulheres sofrem, como candidíase e cistite, com foco em desenvolver procedimentos preventivos. E eles deveriam ser ginocentrados: serviços administrados para mulheres, por mulheres.

Em 1969, quando ainda pouca informação estava disponível sobre saúde feminina, a Coletiva de Saúde Feminina de Boston publicou a primeira edição de Our Bodies, Ourselves (Nossos corpos, nós mesmas), que se tornou um material básico de referência para mulheres do mundo inteiro. Edições posteriores continuaram essa tradição com uma visão expandida da saúde feminina e do sistema médico que visa controlá-la. Reforçando medidas preventivas e a necessidade de mulheres entendermos como nossos corpos funcionam, esse livro é um ato de resistência contra o cuidado de saúde misógino ao redor do mundo.

Os corpos das mulheres como local primário de opressão feminina

Mais do que qualquer outra teoria da opressão feminina, o feminismo radical tem sido destemido em olhar as violências cometidas contra as mulheres por homens. Ele tem demonstrado que essa violência aos corpos e às subjetividades das mulheres é tão intrínseca à cultura patriarcal que parece “normal” e, portanto, justificável. Diversos mitos sobre sua especificidade se desenvolveram como mecanismo de controle do comportamento feminino. Por exemplo, o mito de que estupro, pornografia e escravidão sexual supostamente afetam somente um grupo específico de mulheres “ruins” (ver Barry, 1979), e não as outras mulheres, “boas”. A mensagem passada é de que se mulheres “se comportarem”, elas serão poupadas. Esse processo garante a intimidação de mulheres em seu comportamento diário, e separa as mulheres uma das outras, classificando um grupo delas enquanto “merecidamente violentadas”.

Uma grande quantidade de trabalho empírico já foi feita por feministas radicais sobre violência contra as mulheres, particularmente sobre violência sexual (Susanne Kappeler, 1995), documentando as evidências sobre estupro (por exemplo, Susan Brownmiller, 1975; Bart e O’Brien, 1985), incesto (por exemplo Elizabeth Ward, 1984; Armstrong, 1994), pornografia (por exemplo, Andrea Dworkin, 1981; Susan Griffin, 1981; Diana Russell, 1993), escravidão sexual (Kathleen Barry, 1979/1995), e assassinato de mulheres (Radford e Russell, 1992). Não há espaço aqui para lidar com tão extensa produção, mas o trabalho de Kathleen Barry sobre escravidão sexual feminina é um exemplo do desenvolvimento das teoria e prática feministas radicais. Barry documentou a escravidão sexual a nível internacional (1979). Ela começa traçando o trabalho inicial desenvolvido por Josephine Butler na primeira onda de protestos femininos contra a escravidão sexual no século XIX. Ela então detalha práticas atuais de escravidão sexual. Por exemplo, desde 1979, agências que promovem turismo sexual e casamento arranjado operam nos EUA e em diversos países europeus. Isso se soma à compra de mulheres originárias de países da América Latina e da Ásia: “(…) essa prática, construída sobre os estereótipos mais racistas e misóginos de mulheres da Ásia e da América Latina, é parte crescente do tráfico de mulheres, que é uma violação de convenções e de tratados da ONU” (p. xiii).

A expressão ‘escravidão sexual feminina’ é usada para fazer referência ao tráfico internacional de mulheres e à prostituição de rua forçada, que, como Barry amplamente demonstra, é conduzida com os mesmos métodos de sadismo, tortura, espancamento e afins utilizados para escravizar mulheres internacionalmente dentro da prostituição. Ela aponta que apesar de haver um tráfico de escravas brancas em países orientais, há tráfico de escravas asiáticas em sociedades ocidentais. Barry refuta o argumento de que a prostituição é uma exploração puramente econômica de mulheres. Quando o poder econômico se torna a causa da opressão feminina, “as dimensões sexuais do poder geralmente se mantêm desconhecidas e incontestadas” (p. 9). Tratando mais uma vez da resistência até de feministas em lidar com a opressão sexual das mulheres em sua dimensão mais crua, ela escreve:

“A análise feminista do poder sexual é frequentemente modificada para adequá-la a uma análise econômica que define a exploração econômica como o instrumento primário da opressão feminina. Sob essa linha de pensamento, a escravidão sexual institucionalizada, tal como é encontrada na prostituição, é compreendida em termos de exploração econômica que resulta na falta de oportunidades econômicas para mulheres, o resultado de uma ordem econômica injusta. Sem dúvidas a exploração econômica é um fator importante na opressão das mulheres, mas aqui precisamos nos preocupar se a análise econômica revela ou não a dominação sexual mais fundamental das mulheres.” (1979, p. 10)

Ela segue e aponta que as pessoas ficam horrorizadas, com razão, com a escravização de crianças, mas isso se separou da escravização de mulheres. Esse processo distorce a realidade da situação, sugerindo que é tolerável escravizar mulheres, mas não crianças. Ela escreve (p. 9): “ (…) conforme eu estudava as atitudes que aceitam a escravização de mulheres, eu percebi que uma ideologia poderosa se origina desse fenômeno e permeia a ordem social. Eu nomeei essa ideologia de sadismo cultural”.

Barry explora as razões econômicas para o acobertamento do comércio internacional de mulheres e a base do poder masculino nele envolvido. Ela exemplifica, por exemplo, a análise da INTERPOL sobre escravidão sexual que é convenientemente escondida do escrutínio público. A INTERPOL preparou relatórios compreensivos baseados em suas próprias pesquisas internacionais, “que eles apagaram” (p. 58). Em seu relatório de 1974, contido no apêndice do livro de Barry, uma das conclusões é de que “o tráfico disfarçado de mulheres ainda existe no mundo inteiro” (p. 296).

Inicialmente, a própria Barry quis desistir da tarefa de desmascarar o tráfico de mulheres. Ela descreve as dificuldades de ficar cara a cara com essa brutalidade crua contra mulheres, que inclui a sedução de mulheres para a escravidão por meio de promessas de amor e de afeição, ou ainda o sequestro brutal e a entrada forçada de mulheres na prostituição e na escravidão sexual. Mas por mais que o feminismo radical lide com os horrores da pornografia, do estupro e do incesto, Barry acredita ser importante para mulheres saber a verdade sobre a violência sexual contra mulheres. Nós fomos forçadas a negar que isso existe. Nós fomos forçadas a sermos coniventes com o sigilo em torno da violência sexual contra mulheres. Nós somos incapazes de aguentar o sentimento de vulnerabilidade que isso causa em todas as mulheres:

“Esconder [tudo isso] tem ajudado a manter a escravidão sexual feminina a salvo da exposição. Mas, pior do que isso, tem impedido que a gente entenda o alcance completo da vitimização feminina, consequentemente nos negando a oportunidade de encontrar uma saída por meio de confrontos políticos assim como por meio de visão e de esperança (…) saber o pior nos liberta para esperar e buscar o melhor.” (Barry, 1979, p. 13)

Como no feminismo radical, teoria e prática estão entrelaçadas, Barry se envolve desde 1980 com a concretização da Rede Feminista Internacional Contra a Escravidão Sexual Feminina, que realizou sua primeira reunião em Rotterdam, em 1983. Mulheres de 24 países diferentes expuseram o tráfico de mulheres, a prostituição forçada, o turismo sexual, os bordéis militares, a tortura de detentas, e a mutilação sexual de mulheres. Em cada país a rede opera coletivamente para lidar com suas áreas problemáticas de acordo com especificidades culturais. Por exemplo, o trabalho mais efetivo contra o turismo sexual e contra a indústria de casamentos arranjados por correio (que opera de forma bem eficaz entre a Austrália e a Tailândia, dentre outros países) tem sido feito por feministas asiáticas, particularmente a Associação de Mulheres no Japão e o Movimento do Terceiro Mundo Contra a Exploração de Mulheres nas Filipinas. De novo, isso demonstra a perspectiva global do feminismo radical. Essa rede agora se tornou a Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres (ver Barry, pp. 448–455, neste livro) [n/t: na América Latina, temos a CATWLAC — Coalition Against the Trafficking of Women in Latin-American and the Caribbean, ou, em espanhol, Coalición Regional Contra el Tráfico de Mujeres y Niñas en América Latina y el Caribe. Você pode conhecer o trabalho delas aqui.]

A partir do trabalho empírico de mulheres na área da violência sexual, desenvolveram-se teorias sobre o que Barry chama de “terrorismo sexual”. Esse terrorismo, ela explica, “é uma forma de vida para mulheres mesmo que não sejamos suas vítimas diretas. Ele resultou em diversas mulheres vivendo com ele ao mesmo tempo em que tentam não o enxergar ou não o reconhecer. Essa negação da realidade cria uma forma de encobertamento” (p. 12). O feminismo radical não colabora com essa cegueira, e pelo contrário: nomeia e trata da violência básica e primária feita contra mulheres enquanto grupo social e contra mulheres individualmente em suas vidas cotidianas.

Trabalho semelhante ocorre na área das novas tecnologias reprodutivas. Aqui, feministas radicais analisam as formas pelas quais a medicina patriarcal brutaliza os corpos femininos em nome de “curar” a infertilidade. Nenhuma medida preventiva é oferecida. Poucas tentativas são feitas para entender as causas da infertilidade. Nenhuma análise se faz das estruturas que criam o desejo desesperado de ter crianças.

O feminismo radical nomeia a aliança entre interesses comerciais e tecnológico-reprodutivos ou “tecnopatriarcas” dentro da estrutura que atualmente surrupia o poder das mulheres na área de procriação. Nós negamos a análise política ingênua que propõe que é possível que mulheres conquistem algum poder sobre essas tecnologias, e que então será aceitável usá-las. Nossa análise demonstra que a tecnologia não é sem valor, mas é parte de um padrão de nascimentos, partos, e agora concepções controlados por homens (ver, por exemplo, Arditti et al, 1984; Corea, 1985; Corea et al, 1985; Spallone e Steinberg, 1987; Klein, 1989; Rowland, 1993; Raymond, 1994). Novamente, a partir desses trabalhos teóricos e empíricos, desenvolveu-se uma rede internacional, a Rede Internacional Feminista de Resistência à Engenharia Genética e de Reprodução (Feminist International Network of Resistance to Reproductive and Genetic Engineering — FINRRAGE). Com base em grupos regionais e nacionais trabalhando de forma coletiva, feministas radicais estão educando mulheres a nível de base assim como trabalhando em estratégias políticas para paralisar o controle e o abuso dos corpos femininos.

Sexualidade

Por conta da análise feminista radical da opressão das mulheres por meio da sexualidade e do poder androdefinidos, e por conta da demanda de retomar nossos corpos, o feminismo radical identificou a sexualidade como política. A inter-relação entre heterossexualidade e poder é nomeada.

Em 1982, Catharine MacKinnon argumentou que a heterossexualidade é a “esfera social primária de poder masculino” (p. 259) e que esse poder é a base da desigualdade de gênero. É, para o feminismo, o que o trabalho é para o marxismo — “aquilo que mais pertence ao indivíduo, mas que mais é lhe tirado” (p. 515). A heterossexualidade enquanto instituição é a estrutura que impõe essa apropriação da subjetividade das mulheres, “gênero e família são sua forma sólida; papéis sexuais, suas qualidades generalizadas às personas sociais; reprodução, uma consequência; e controle, sua matéria” (p. 516).

Foi dentro do feminismo radical que mulheres lésbicas começaram a reivindicar seu direito a escolher uma existência lésbica. Em um artigo de resumo publicado originalmente na Revolutionary and Radical Feminist Newsletter (1982), o London Lesbian Offensive Group expressou sua raiva perante atitudes antilésbicas dentro do movimento e com feministas heterossexuais porque elas:

“(…) não se responsabilizam por serem membras de um grupo opressivo de poder, não parecem reconhecer o desafiar os privilégios que isso acarreta, nem se incomodam em examinar como tudo isso mina não só nossa política lésbica, mas nossa própria existência.” (1984, p. 255)

Quando feministas heterossexuais não reconhecem sua posição privilegiada, mulheres lésbicas se sentem silenciadas e invisibilizadas. O artigo delineia claramente os privilégios que feministas heterossexuais vivenciam em detrimento de feministas lésbicas apesar do fato real da opressão de mulheres heterossexuais. Por exemplo, muitas têm acesso a dinheiro masculino, têm o privilégio do pressuposto de serem consideradas “normais” ao invés de “desviantes”. Resumidamente, têm benefícios automáticos pelo fato de ou estarem ligadas a um homem ou terem lugar dentro da cultura normativa heterossexual.

Feministas lésbicas sofrem sob a lei de várias formas. Frequentemente não são livres para clamar seu estilo de vida lésbico por medo de retaliação no trabalho, em termos de direito de moradia, em termos de serem ostracizadas. Em questões de custódia de crianças, as disputas envolvendo mulheres lésbicas são mais sangrentas e com mais chances de darem errado (ver, por exemplo, Chesler, 1986).

Em retaliação à opressão de mulheres lésbicas por parte de feministas heterossexuais, em 1979 o Leeds Revolutionary Feminist Group publicou um ataque contundente. Elas acusaram mulheres em casais heterossexuais de apoiarem a supremacia masculina (p. 65): “Os homens são o inimigo. Mulheres heterossexuais colaboram com o inimigo (…) toda mulher que vive com ou fode um homem ajuda a manter a opressão de suas irmãs e dificulta nossa luta”. Parte do argumento básico contra o heterofeminismo é o argumento de que mulheres heterossexuais servem ao poder e ao privilégio masculino. Direcionando suas energias para um homem específico dentro do grupo social de homens, a energia das mulheres é, mais uma vez, tirada de outras mulheres e dadas para homens.

Apesar de haver dificuldades e perigos substanciais de se ser lésbica em um mundo heterossexual, os prazeres de levar uma existência lésbica também foram claramente delineados no artigo do Leeds:

“Os prazeres de saber que você não está diretamente a serviço de homens, vivendo contra as amarras da contradição evidente em sua vida pessoal, unindo o pessoal ao político, amando e colocando suas energias nas mulheres ao lado das quais você luta ao lado ao invés de homens contra os quais você luta.” (1979, p. 66)

Em um posfácio adicionado antes da republicação de 1981, o grupo Leeds comentou que esse artigo foi escrito para um grupo de trabalho em uma conferência feminista radical em 1979. Alguns de seus comentários elas depois julgaram de teor ofensivo e inconsistente. Por exemplo, “agora achamos que ‘colaboradoras’ é a palavra errada para escrever mulheres que dormem com homens, uma vez que isso sugere um ato consciente de traição” (p. 69).

Para algumas mulheres dentro do Movimento de Libertação das Mulheres, as questões da lesbianidade [n/t: as autoras usam o termo ‘lesbianism’, mas como ‘lesbianismo’ tem conotação negativa e pejorativa em português, escolhi traduzir como ‘lesbianidade’] e da heterossexualidade causaram uma divisão irreparável. Para outras, o debate aumentou sua conscientização, assim como discussões a respeito de classe de cultura, a respeito de suas próprias posições de privilégio ou de opressão dentro do grupo social mulher, e dentro do próprio feminismo. Algumas feministas lésbicas seguiram para desenvolver uma análise da posição do feminismo lésbico dentro do Movimento de Mulheres. Mais recentemente, feministas radicais começaram a teorizar uma heterossexualidade feminista radical (por exemplo, Rowland, 1993; Wilkinson e Kitzinger, 1993; Maynard e Purvis, 1995; ver também Rowland, pp. 77–86, neste livro).

Charlotte Bunch chamou de feminismo lésbico a perspectiva política sobre “a dominação ideológica e institucional da heterossexualidade” (1976, p. 553). Como ela explica, feminismo lésbico significa colocar mulheres em primeiro lugar, num ato de resistência em um mundo em que a vida é estruturada ao redor do macho. Discutindo o primeiro artigo publicado por lésbicas radicais, “A mulher identificada mulher” (The woman-identified woman), ela pega a definição expandida de lesbianidade como a ideia de identificação com mulheres e um amor por todas as mulheres. Por trás disso está a crença no desenvolvimento de autoestima e uma autoidentidade em relação a mulheres, ao invés de em relação a homens.

Em 1975 Bunch já havia dito que “a heterossexualidade significa homens em primeiro lugar. É sobre isso. Presume que toda mulher é heterossexual; que toda mulher é identificada por e é a propriedade de homens” (1981a, p. 69). Bunch então afirmou o que Adrienne Rich mais tarde teorizou em seu influente artigo sobre a heterossexualidade compulsória (1980) e que Janice Raymond desenvolveu em seu trabalho sobre amizade feminina (1986). Bunch argumentou que o heterossexismo sustenta a supremacia masculina no ambiente de trabalho e é sustentado pela estrutura opressiva da família nuclear. Está sendo alimentado pelos reais ou mais frequentemente presumidos benefícios às mulheres que continuam a vida dentro das normas aceitas da heterossexualidade: os privilégios de legitimidade, de segurança econômica, de aceitação social, de proteções legal e física — a maioria dos quais não se mostram verdadeiros, de qualquer forma, para a maioria das mulheres em relacionamentos heterossexuais.

Adrienne Rich (1980) analisou a forma como a heterossexualidade tem sido forçada sobre as mulheres enquanto instituição, e a forma como mulheres foram seduzidas por ela (da mesma forma como ela analisara a maternidade enquanto instituição; ver Rich, 1976 e Hawthorne, 1976/1990). A existência lésbica representa um ataque direto ao direito masculino de acesso a mulheres. 

Mas mais importante foi termo que ela cunhou: o “continuum lésbico”. Ele teria grandes efeitos ao reunir feministas lésbicas e heterossexuais em suas tentativas de ambos validar as diferenças entre suas vidas e caminhar para desenvolver uma política plataforma comum. O seu ‘continuum lésbico’ inclui:

“(…) uma variedade — ao longo da vida de cada mulher e ao longo da história — de experiências ginoidentificadas; não simplesmente o fato de que uma mulher já teve ou conscientemente desejou experiência genital sexual com outra mulher. Se expandirmos [o conceito] para abarcar tantas outras formas de identidade primária entre mulheres, incluindo o compartilhamento de uma via interior rica, a união contra a tirania masculina, o dar e o receber de apoios práticos e políticos, (…) nós começaremos a pinçar pedaços de história e de psicologia femininas que têm estado fora de alcance como consequência de definições limitadas, majoritariamente clínicas, de ‘lesbianidade’.” (1980, p. 649)

Expandindo essa análise da heterossexualidade e da forma como ela tem controlado a energia, a sexualidade e a cultura das mulheres, Janice Raymond criou o termo ‘heterorrealidade’. Ela escreve:

“Apesar de eu concordar que estamos vivendo em uma sociedade heterossexista, eu penso que o problema maior é que vivemos em uma sociedade heterorrelacional, em que a maioria das relações pessoais, sociais, políticas, profissionais e econômicas são definidas pela ideologia de que a mulher é para o homem.” (1986, p. 11)

Destruindo o mito de que mulheres não se unem e de que a heterorrealidade sempre foi a norma, Raymond traça a história da amizade entre mulheres, de mulheres enquanto amigas, amantes, apoiadoras econômicas e emocionais, e companheiras. Ela ataca o desmembramento das amizades femininas, alegando que isso representa um “desmembramento do Eu feminino-identificado” (p. 4). Ela enfatiza a intimidade em relacionamentos de mulheres, reforçando que amizades apaixonadas não precisam ser de natureza genital-sexual.

Raymond cunha o termo gino/afeição para ser inclusiva com todas as mulheres que colocam umas às outras em primeiro lugar, lésbicas ou não. Na base de suas discussões sobre a sexualidade está a crença feminista radical na necessidade política de um feminismo ginoidentificado. Isso significa que os relacionamentos primários de uma mulher são com outras mulheres. É para mulheres que devemos dar nossos apoios social, político, emocional e econômico. Nas palavras de Rita Mae Brown:

“Uma mulher ginoidentificada é aquela que se define em relação a outras mulheres, e, mais do que isso, enquanto sujeita separada e distinta de outras sujeitas, não com sua função como o centro da subjetividade, mas sendo (…) uma mulher pode melhor descobrir quem ela é com outras mulheres, não só com uma outra mulher mas com outras mulheres, que também estão lutando para se libertar de uma cultura alienígena e destrutiva. É esse novo conceito, o de uma mulher ginoidentificada, que soa como o gongo da morte para a cultura masculina e clama por uma nova cultura em que a cooperação, a vida e o amor são as forças que guiam a organização ao invés da competição, do poder e do derramamento de sangue. Esse conceito vai mudar a forma como vivemos e com quem vivemos.” (1975, p. 66)

Implícita em muitas dessas declarações está uma presunção de separatismo, que tem sido visto como uma estratégia política, um espaço onde criar identificação entre mulheres e regenerar as energias e as subjetividades das mulheres. Charlotte Bunch escreve sobre a época em que ela viveu em uma comunidade totalmente separatista de mulheres como uma em que o crescimento pessoal e a análise política podiam ser desenvolvidas mais prontamente. Apesar do fato de ela eventualmente ter rejeitado o separatismo total por conta do isolamento que isso envolvia, enquanto estratégia política ainda tem seus usos. Nas palavras de Bunch (1976b, p. 556): “O separatismo é uma estratégia dinâmica a ser movida sempre que uma minoria sente que seus interesses estão sendo ignorados pela maioria, ou quando suas ideias precisam de mais espaço para serem desenvolvidas”.

Em seu artigo “Em defesa do separatismo” (1976/1990), a australiana Susan Hawthorne delineou os graus de separatismo que operam dentro do feminismo radical. Ela pontua que é impossível ser feminista e não acreditar no separatismo em algum de seus níveis. Ela inclui dentre os atos de separatismo: valorizar o diálogo com outras mulheres e participar de grupos exclusivos de mulheres; participar de ações políticas e sociais com outras mulheres; frequentar eventos exclusivos de mulheres, incluindo eventos em que mulheres podem se divertir; trabalhar em um ambiente que é administrado por e para mulheres; dar apoio emocional a mulheres; ter relações sexuais com mulheres; participar de grupos que se preocupam com a criatividade de mulheres e com a criação da cultura de mulheres; viver em um ambiente de mulheres sem contato com homens.

É esse último nível de separatismo que é predominantemente entendido como sua definição. Isso é entendido como a forma mais ameaçadora de separatismo porque sugere que mulheres possam viver de forma bem sucedida em um mundo independente de homens. De fato, esse conceito de separatismo dentro da estrutura política feminista radical é empoderador. Como Marilyn Frye escreveu:

“Quando nossos atos ou práticas feministas têm um aspecto de separatismo, nós estamos assumindo o poder por controlarmos o acesso e simultaneamente por nos encarregarmos de sua definição. A escrava que exclui seu mestre de sua cabana se declara portanto não uma escrava. E definição é outra face do poder.” (1983, p. 105)

Maternidade e a família

A instituição da família nuclear é uma instituição primária do patriarcado. Acorrentada à teoria e à prática da heterorrealidade e da heterossexualidade compulsória, a família patriarcal tradicional, com sua maternidade dependente para mulheres, tem escravizado mulheres aos serviços sexuais e emocionais. Para muitas mulheres, isso ainda inclui trabalho doméstico não-remunerado. Sob o bastião da família, a opressão privada das mulheres é vivenciada diariamente. Pode se expressar por meio de suas manifestações físicas nas agressões, de suas manifestações econômicas no controle masculino da renda e da tomada de decisões, de seu controle ideológico por meio da socialização de mulheres e de crianças, e/ou de seu controle da energia de mulheres nos serviços emocionais e físicos a homens e crianças. Adicionalmente, Andrea Dworkin diz (1974, p. 190): “A família nuclear é a escola de valores em uma sociedade sexista e sexualmente reprimida. Aprende-se nela o que se deve conhecer: as regras, os rituais e os comportamentos apropriados à polaridade macho/fêmea, e os mecanismos internalizados de opressão sexual”.

O casamento em si tem sido visto como prostituição, em que uma mulher troca serviços sexuais por abrigo e comida. O sexo é compulsório para mulheres no casamento, garantindo a heterossexualidade dentro da barganha econômica. Como escreveu Sheila Cronan:

“Ficou cada vez mais claro para nós que a instituição do casamento “protege” mulheres da mesma forma como se dizia que a instituição da escravidão “protegia” pessoas negras — isso é, que a palavra “proteção” nesse caso é simplesmente um eufemismo para opressão.” (Cronan, 1973, p. 214)

A ideologia patriarcal da maternidade também foi minuciosamente investigada. Durante os anos 60 e 70, muitas mulheres rejeitaram a maternidade [considerando-a] como um papel escravizante dentro da cultura patriarcal. Desde então, as feministas têm tentado reescrever as definições de maternidade, levando-nos a uma visão mais positiva de como a experiência poderia ser se as mulheres determinassem as condições (Rowland e Thomas, 1996). Adrienne Rich escreveu:

“Essa instituição — que afeta a experiência pessoal de todas as mulheres — é visível na administração masculina de métodos contraceptivos e do aborto; na guarda masculina de crianças nas cortes e no sistema educacional; na subserviência, durante a maior parte da história, de mulheres e de crianças ao patriarca; na dominação econômica do pai sobre a família; na usurpação do processo de nascimento pelas mãos de instituições médicas masculinas.” (1979b, p. 196)

Apesar de a maternidade ser supostamente reverenciada, sua realidade diária no patriarcado é equivalente a uma posição degradada. A pressão sobre mulheres para assumirem o papel de mães é intensa, e, ainda assim, só é admirável quando a mulher está ligada a um pai juridicamente legal.

No livro Of woman born [“Nascida de mulher”, em tradução livre], Adrienne Rich delineia dois significados de maternidade: o relacionamento potencial de uma mulher com seus poderes de reprodução e com crianças; e a instituição patriarcal da maternidade, que se preocupa com o controle masculino de mulheres e de crianças. Uma das contradições mais desconcertantes da institucionalização da maternidade é que ela “alienou mulheres de seus corpos aprisionando-nos neles” (p. 13).

Assim como a heterossexualidade é compulsória, também é a maternidade. Mulheres que escolhem não serem mães estão fora do círculo de “cuidado e criação” e atraem forte desaprovação social. Mulheres inférteis, por outro lado, são alvo de pena e até de escárnio. A institucionalização da maternidade pelo patriarcado garantiu que mulheres sejam divididas entre “parideiras” e “não-parideiras”. Então a maternidade é usada para definir a mulher e sua utilidade.

Cultura feminina

A partir do conceito de separatismo enquanto base de empoderamento e da crença no estabelecimento e na transmissão de tradições, de histórias e de ideologias ginocentradas, o feminismo radical busca gerar uma cultura feminina por meio da qual mulheres possam recriar artisticamente tanto suas subjetividades quanto suas formas de ser no mundo, fora da definição patriarcal. Então, por exemplo, Judy Chicago cria “The Dinner Party” [n/t: mostrado no documentário She’s beautiful when she’s angry, da Netflix :)] com duzentos lugares guardados para mulheres históricas que fizeram importantes contribuições à cultura feminina e também à sociedade como um todo. Então artistas, pintoras e escritoras feministas radicais resistem às definições tipicamente masculinas de arte e de cultura, redefinindo tanto estilística quanto conteudisticamente o que cultura e arte são e o que podem ser para mulheres. Muitas feministas radicais se envolvem com a escrita (de prosa e de poesia), com a criação de filmes, com artes plásticas, com teatro, com dança e assim por diante em suas práticas diárias de feminismo radical. Para poetas e novelistas feministas radicais, a linguagem se torna um código essencial na redefinição e na reestruturação do mundo com mulheres no centro. Como Bonnie Zimmerman pontua, “linguagem é ação” (1984, p. 672).

Com relação à criação de uma cultura feminina, as artes não são as únicas áreas de trabalho. Cientistas feministas, por exemplo, estão tentando gerar visões de novas ciência e tecnologia que não explorem o povo e o meio ambiente. Tendo criticado a ciência masculina, as feministas radicais estão desenvolvendo novas maneiras de conceituar a ciência (Bleier, 1986; Rosser, 1990).

Mary Daly tenta reconceituar o mundo da forma como ele poderia ser a partir de uma perspectiva em que as diferentes necessidades e interesses de mulheres formam o centro das práticas culturais e suas bases teóricas (1978; 1984; 1993). Em sua singular análise da opressão das mulheres, incluindo sua ênfase nas violências físicas e mentais diárias praticadas contra mulheres, ela recria linguagem, um senso do espiritual, e um senso do ser físico. Ela enfatiza a importância de nomear, no sentido de que nomear é criar o mundo. Ela também enfatiza a necessidade de recriar e de reencontrar nossos Eus originais, antes de as mulheres terem sido mutiladas pelo patriarcado e subjugada a definições patriarcais do sujeito feminino. Ela se recusa a aceitar o ódio a mulheres inscrito na linguagem, redefinindo por exemplo “solteirona” e “velha coroca” de forma positiva.

Como o feminismo radical luta para redescobrir nossa história cultural e para recriar a cultura em torno de mulheres, ele é constantemente mal-interpretado, rotulado “feminismo cultural”, e definido como “apolítico”. Essa é uma representação falsa, uma vez que redefinir a cultura é um processo inter-relacionado com o desenvolvimento de uma ideologia libertadora associada com a liberdade de ser das pessoas. Ele ataca o controle masculino sobre o conceito de cultura, e ataca o uso patriarcal da cultura para os propósitos de doutrinação rumo à ideologia patriarcal tanto de mulheres quanto de homens. É essencialmente político.

Essencialismo biológico

Uma crítica frequente do feminismo radical é de que ele sustentaria uma divisão “essencial” do mundo entre machos e fêmeas baseada na biologia. Essa acusação é particularmente feita contra feministas radicais que trabalham na área de violência contra mulheres e que nomeiam os ‘homens’ enquanto um grupo social, da mesma forma como homens individualmente são relevantes, enquanto opressores de mulheres.

O fato é que homens oprimem mulheres brutalmente, como as feministas radicais já demonstraram empiricamente. Mas por que homens fazem isso? Isso pode ser mudado? Kathleen Barry tratou dessas questões em sua análise da escravidão social, que nós já expusemos. Ela pontua que homens fazem essas coisas a mulheres porque “não há nada que os impeça” (1979, p. 254). Suas análises dos valores do patriarcado e suas teorias que supostamente explicam a violência masculina são muito detalhadas para discutirmos aqui. O que importa é enfatizar que o feminismo radical não pode ser reduzido a um argumento determinista biológico simplista. Que seus críticos frequentemente façam isso é uma manobra para limitar a efetividade de sua análise. Mulheres têm bons motivos para terem medo de nomear os homens como o inimigo, particularmente quando vivem em relacionamentos heterossexuais: punições são frequentemente aplicadas por expor o patriarcado e seus mecanismos (ver Cline e Spender, 1987).

Christine Délphy argumenta que o conceito de gênero — ou seja, as posições sociais respectivas de mulheres e de homens — é uma construção da ideologia patriarcal e que “o sexo se tornou um fato pertinente, portanto uma categoria reconhecida, por conta da existência do gênero” (1984, p. 144). Portanto, ela argumenta, a opressão cria o gênero, e, no final das contas, o gênero cria o sexo anatômico (p. 144), “(…) no sentido de que a divisão hierárquica da humanidade em dois transforma uma diferença anatômica (que em si mesma é ausente de implicações sociais) em uma distinção relevante para práticas sociais”.

Feministas radicais estão conscientes dos perigos de se basear a análise na biologia. Se homens e mulheres são representados como possuidores de características “agressivas” e “de cuidado” por conta de sua biologia, a situação vai permanecer imutável e a perpetuidade da violência masculina contra mulheres pode ser justificada. Mas isso não significa dizer que não haja diferenças entre os sexos. Isso é evidente. Essas diferenças, no entanto não precisam ter raízes biológicas nem precisam ser igualadas a determinismos. Como as editoras do Quéstions Feministes colocam (1980, p. 14): “(…) nós reconhecemos uma diferença biológica entre homens e mulheres, mas isso não implica por si só um relacionamento de opressão entre os sexos. A luta entre os sexos não é o resultado de biologia”.

Os homens são o grupo dominante. Mas os homens precisam de mulheres, para trabalho sexual e emocional, para trabalho doméstico, para admiração, para amor, e para justificar o desequilíbrio de poder existente (ver Cline e Spender, 1987). Para manter sua posição de mais poder e então se alimentar em sua necessidade de mulheres sem serem consumidos por isso, os homens, enquanto grupo dominante, institucionalizam sua posição de poder. Isso envolve a necessidade de estruturar instituições que mantenham esse poder, o desenvolvimento de uma ideologia para justificá-la, e o uso da força e da violência para a impor quando a resistência emerge (vide Rowland, 1988).

É possível que as diferenças entre homens e mulheres surjam de uma base biológica, mas de forma diferente como a que é proposta por um determinismo redutivista. O fato de que mulheres pertençam ao grupo social que tem a capacidade de procriar e de maternar, e o fato de que homens pertençam ao grupo social que tem a capacidade para, e executa, atos de estupro e de violência contra mulheres, devem penetrar na mentalidade de se ser homem e mulher. Mas essa análise permite mudança no sentido de que os próprios homens podem mudar essa mentalidade e portanto suas ações. Também permite que mulheres reconheçam que nós podemos e devemos desenvolver nossas próprias teorias e práticas e não precisamos aceitar a dominação masculina como imutável.

As diferenças existentes entre mulheres e homens podem ter surgido a partir dos diferentes mundos em que habitamos enquanto grupos sociais, incluindo nossas experiências de impotência e de ter poder. De novo, isso não é o mesmo que dizer que essas diferenças sejam imutáveis. A história da resistência das mulheres é evidência da resistência ao pensamento determinista, assim como a história da traição do patriarcado por parte de alguns homens que apoiam o feminismo.

Resistência feminina, poder feminino

Em nossa relação com homens enquanto o grupo mais poderoso, mulheres temos de fato algumas áreas cruciais de barganha: retirar serviços reprodutivos, trabalho físico e emocional, trabalho doméstico, trabalho sexual, e recusar consentir com ser definida como as impotentes, desta forma garantindo o direito masculino ao poder. A retirada de serviços aos homens é um ato de resistência; nas palavras de Dale Spender (1983, p. 373): “(…) fazer homens se sentirem bem é um trabalho, que as mulheres são obrigadas a realizar em uma sociedade patriarcal; recusar-se a participar desse trabalho é uma forma de resistência”.

Em Powers of the Weak (1980), Elizabeth Janeway lista o poder de descrer como uma forma de resistência. Os poderosos precisam que os dominados acreditem neles e acreditem na justiça de sua posição. Mas, como Janeway aponta, se mulheres se recusarem a legitimar a dominação masculina, isso significa a ausência de sanção da autoridade do dominador por parte do dominado, e desestabiliza seu senso de segurança.

Importante destacar que mulheres também podem exercitar o poder da descrença com relação ao sujeito feminino enquanto aquele que foi definido pelos homens. Janeway assim explora a ideia:

“O uso ordenado do poder de desacreditar, o primeiro poder dos fracos, começa aqui, com a recusa em aceitar a sua definição de sujeito como é apresentada pelos poderosos. É verdade que talvez não se tenha uma autodefinição coerente para contrastar com o status atribuído pela mitologia social institucionalizada, mas isso não é necessário para um dissenso. Por meio da descrença, chega-se ao questionamento de códigos prescritos de comportamento, e conforme se começa a agir de formas de desviam da norma em qualquer grau, fica claro que na verdade não há somente uma forma de se lidar ou de se interpretar eventos.” (1980, p. 167)

Outro “poder dos fracos” reside na compreensão coletiva de situação partilhada. Por meio de ações políticas coletivas e de técnicas de conscientização, mulheres desenvolveram um senso de identidade feminina e de solidariedade. A ação política e a criação de rede feitas pela Coalização Contra o Tráfico de Mulheres e pela Rede Internacional Feminista de Resistência a Engenharia Genética e Reprodutiva são exemplos de mulheres que educam para o ativismo contra a violência contra as mulheres. Os centros de saúde femininos e o desenvolvimento de abrigos e de centros de acolhimento para vítimas de abusos sexuais são outros exemplos de ações coletivas de resistência.

Feministas Radicais também estão desenvolvendo abordagens ginocentradas para mudar a lei. Catharine MacKinnon e Andrea Dworkin tentaram introduzir uma lei nos EUA para garantir que as vítimas de pornografia tivessem o direito de processar seus abusadores (MacKinnon, 1987 e 1993b).

A criação do conhecimento feminista radical, como o contido nos trabalhos citados, representa por si própria um ato de resistência feminina. O feminismo radical frequentemente é descrito como um estado de raiva. As pessoas — homens e mulheres — que têm vidas confortáveis e aparentemente seguras temem essa raiva. [porque] ela os envolve na opressão de mulheres, seja como membros do grupo opressor, seja como membras do grupo oprimido. O feminismo radical lembra mulheres de seus próprios momentos de exploração e de abuso, e essas memórias não são bem-vindas. Tal conhecimento tão material leva à possibilidade de ausência de controle. Como Susan Griffin lembra:

“Conforme eu me tornei mais consciente de minha opressão enquanto mulher, eu me percebi entrando num estado de raiva. Para todo lugar que eu olhasse eu encontrava mais evidências da dominação masculina, do ódio social e do desprezo a mulheres, de crescentes limitações insuportáveis impostas sobre minha vida. A cegueira social é vivida em cada vida particular. Assim como várias mulheres, eu estava acostumada a mentir para mim mesma. Dizer para mim mesma que eu queria o que eu não queria, ou que eu sentia o que eu não sentia, era um hábito tão profundamente imbricado em mim, que eu sequer tinha consciência de que mentira. Eu havia moldado minha vida para caber na ideia tradicional de mulher, e, assim, por meio de incontáveis grandes e pequenas decisões, eu me sacrificara. Cada sacrifício me enfurecia. Mas eu não me permitia sentir essa raiva. Porque essa raiva teria me dito que eu estava mentindo. Agora, que eu parei de mentir, a raiva que eu acumulei por anos me foi revelada.” (1982, pp. 6–7)

Feministas radicais estão bravas porque o patriarcado oprime mulheres, mas nós também estamos preenchidas por um senso de bem-estar empoderador por meio da formação de laços com outras mulheres e da alegria da libertação de aceitar o patriarcado e a heterorrealidade como ingredientes imutáveis da existência humana. Os escritos feministas radicais às vezes são rejeitados por conta de sua raiva abertamente externalizada e de seu chamado apaixonado à destruição da opressão feminina. Mas o feminismo radical é apaixonado. Nós somos apaixonadamente comprometidas com a Libertação das Mulheres e por meio de nosso trabalho nós esperamos fazer outras pessoas se apaixonarem. Nada menos do que isso vai servir se queremos desenvolver teorias e práticas para um futuro em que mulheres possam viver vidas autônomas assim como socialmente responsáveis.