A feminilidade é a corrente que mantêm a todas nós presas ao ideal inalcançável da mulher perfeita.
Ser uma mulher gorda em uma sociedade que tanto enaltece a magreza é um desafio diário de auto-estima e sanidade mental.
Nossos corpos são observados e alvo de comentários não solicitados, qualquer quantidade de comida colocada no prato vira uma questão “está de dieta?” “você come muito!” “não gosta de salada?” “até que tem bastante verde no seu prato”… assim nossos apetites não nos pertencem, tomar um sorvete, comer uma coxinha, morder uma maçã e até mesmo um copo de água são razão para alguma exclamação vinda do outro que não consegue se controlar ao olhar uma mulher gorda.
Roupas também são motivo para comoção geral, primeiro porque praticamente nenhuma marca parece entender que existem mulheres com barriga volumosa, com bundas grandes, com coxas grossas, com seios fartos, braços roliços ou uma combinação dessas coisas com outras, por exemplo, ser uma gorda com seios pequenos. Segundo porque o mundo adoraria que não existíssemos, desta forma sermos consideradas é a última coisa que devemos desejar, afinal, qualquer manual nos coloca como o erro, o que deve ser evitado e o que deve ser escondido.
A questão a ser debatida é que sendo a feminilidade um ritual de padronização das mulheres, tanto o comportamento esperado “maternal, submissa, silenciosa, passiva, dependente…” quanto a aparência desejada “batom, rímel, cabelo liso, cintura fina, seios firmes, ossos saltados, unhas longas, esmalte colorido…” , ser uma mulher gorda nos torna uma falha e assim nos odiar, nos odiarmos, nos agredir, nos agredirmos, nos culpar, nos culparmos, nos atacar e nos atacarmos vira uma constante tratada com uma cruel naturalidade.
E essa crueldade aparece nos mais diversos discursos, como naquele em que as vítimas de violência sexual tendem a engordar na tentativa de se tornarem menos atraentes, o que é algo que primeiro mascara quem é o verdadeiro culpado e segundo fortalece a ideia de que violência sexual tem relação com a aparência e o comportamento da vítima, desta forma, se você quer se proteger de algo horrível seja ainda mais horrível, seja gorda.
Não é chocante pensar nisso de forma fria e direta? Pensar que seja para qual lado corrermos todas as violências que sofremos acabam por ser consideradas nossa culpa?
As críticas apontaram que a beleza é uma prática cultural do tipo que é prejudicial a mulheres
Sheila Jeffreys
Desta forma, quando se trata da aparência há várias maneiras de intervenção na identidade através de cirurgias cosméticas, dietas absurdas, jejum intermitente, não satisfação do apetite, medicamentos e laxantes são vistos como um sacrifício necessário, sendo melhor adoecer a não se parecer com as atrizes e modelos que estampam novelas, filmes, comerciais e capas de revista.
E é exatamente nesse momento que devemos nos questionar a quem serve essa obediência, essa constante insatisfação, essa insegurança que adoece corpos e maltrata quem não acata ordens tão severas que destroem as vidas de meninas e mulheres.
A quem a cultura da magreza beneficia?
Por mais que o manequim 36 não seja a regra é ele que encontra representatividade, é ele o que se pretende alcançar, nenhuma mulher ouve “parabéns, você engordou!”, mesmo se estiver doente, depressiva ou em dificuldades a magreza é alvo de admiração.
Quem não está familiarizada com a palavra “gordice” sendo utilizada como sinônimo de má alimentação, culpa, fraqueza e deslize?
A mulher gorda não será o objetivo, o exemplo a ser seguido, aquela que as demais “gostariam de ser igual”, porque a gordura nunca é entendida como normal ou natural, há um erro nas dobras e curvas, há algo que revela uma transgressão.
Não há trégua.
Modelos plus size em sua maioria desfilam lingerie, isso porque também é mais fácil tornar algo considerado abominável em fetiche, uma vez que na calça jeans a gorda é o evitado, mas na calcinha de renda é o desejo proibido, na camiseta ela é o excesso, já no sutiã de bojo é a volúpia.
Assim cria-se um outro nicho dentro da cultura da magreza, o das gordas que para tentar se adequar elevam ao máximo a exposição de seus corpos em biquínis mínimos, decotes profundos, saias justas, poses ousadas, falas totalmente centradas em rituais cosméticos como maquiagem, gastos exagerados com roupas e concursos de beleza, que não debatem a razão do ódio que sofrem em uma sociedade superficial, ao contrário, tentam fazer parte dela se quebrando inteiras na busca por se encaixarem.
Novamente a obsessão pela beleza, pelo desejo do outro, pela aprovação masculina, pela admiração por aparentar ser algo, mesmo que esse algo exija de você sofrimento e dor, ele é melhor que o julgamento que passam as que não o são.
Mulheres gordas são o “não seja como ela”, o fracasso, são o oposto do que se pretende ser, tanto que nós somos elogiadas pela coragem de vestir, de dançar, admitir vontades e nos gostarmos como somos, há muita admiração pela gorda que não é triste e isolada, que comete a ousadia de existir, como se ao vivermos nesse corpo nos tornássemos sobreviventes de um desastre.
O controle dos corpos femininos é uma prática patriarcal, da criminalização do aborto ao salto agulha, a feminilidade é um fruto do machismo, assim sendo, o que devemos fazer para que esse entendimento de que a norma é nos escravizar, nos padronizar e nos deixar inseguras por não sermos o que ditam ser perfeito não seja constantemente mascarada com a “preocupação com a saúde” e “com o bem estar” daquela mulher que não obedece aos padrões?
Gorda é ainda é o xingamento predileto quando o desejo é ofender uma mulher.
Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que uma pessoa tem com o seu próprio corpo. Eles determinam sua mobilidade, espontaneidade, postura, jeito de andar, como ela deve colocar o corpo. Eles definem precisamente as dimensões de sua liberdade física.
Andrea Dworkin
Assim, me nego a finalizar esse texto dizendo coisas óbvias, como que queremos nos vestir das mais diversas formas e que gordura não é obrigatoriamente sinal de doença, que podemos nos amar e sermos felizes com os corpos que temos, que podemos ter auto estima e não desejar sermos magras.
Não farei isso por respeito a todas nós que não temos de ficar nos justificando para sermos consideradas, prefiro finalizar furiosa com tanta condescendência a que somos submetidas, do gordinha, do bonitinha, do corajosa, escolho afirmar que estamos exaustas de não nos vermos representadas, exaustas de sermos o fetiche, exaustas das cadeiras nos ônibus não serem projetadas para nós, da catraca no coletivo ser sempre um temor, de nas entrevistas de emprego termos pânico que o nosso peso nos retire a vaga.
Estamos exaustas de vigiarem nossos pratos, de comentarem o tanto que comemos, estamos exaustas de magreza ser símbolo de sucesso, exaustas das lojas não se preocuparem em vender para mulheres como nós.
Estamos exaustas de sermos subjugadas, sermos escondidas, sermos a clandestinidade, estamos exaustas das carteiras nas faculdades não caberem, dos comentários entre os dentes e de sermos vistas como coitadas, como menores e como as que precisam ser corrigidas.
Nenhuma mulher, nem a que veste 36 será de fato livre se não houver respeito com a que veste 52, porque são todas vítimas das mesmas amarras e medo, todas têm seus corpos controlados por padrões impossíveis e por regras desumanas.
A feminilidade é a corrente que mantêm a todas nós presas ao ideal inalcançável da mulher perfeita.
Não há como ser perfeita.
Por isso devemos lutar para que sejamos todas livres.
Obrigada por esse texto, Marcelle. Vamos juntas. ❤️
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