(Foto: Ben Pruchnie/Getty Images)

Tradução do artigo JK Rowling writes about her reasons for speaking out on sex and gender issues, escrito pela própria e publicado em seu site em 10 de junho de 2020. Você pode ler o original em inglês aqui.


Contextualizando, tudo começou porque JK Rowling compartilhou um artigo sobre menstruação que, ao invés de usar a palavra “mulheres”, usava a expressão “pessoas que menstruam”. Em seu tweet, ela diz: “Pessoas que menstruam?” Tenho certeza que havia uma palavra pra essas pessoas. Alguém me ajude aqui. Mutolas? Mudalbas? Molvasbus?

Mais fácil, então, eu colocar os tweets e as traduções. Em seguida, o texto.


Aviso: esse artigo contém linguagem inapropriada para crianças.

Esse não é um artigo fácil de se escrever, por razões que logo ficarão claras, mas eu sei que está na hora de me explicar sobre uma questão rodeada por toxicidade. Eu escrevo isso sem desejo algum de acrescentar qualquer coisa àquela toxicidade.

Para quem não sabe: em Dezembro passado, eu twittei meu apoio a Maya Forstater, uma especialista tributária que perdera seu emprego por conta de o que form considerados tweets “transfóbicos”. Ela levou seu caso à justiça do trabalho, pedindo ao juiz que julgasse se a crença filosófica de que o sexo é determinado pela biologia é protegida, ou não, pela lei. O juiz Taylor decidiu que não.

Meu interesse nas questões trans precediam o caso de Maya em quase dois anos, durante os quais eu seguia de perto o debate em torno da questão da identidade de gênero. Eu já me encontrei com pessoas trans, e li livros, blogs e artigos sobre diversidade escritos por pessoas trans, especialistas de gênero, pessoas intersexo, psicólogos, especialistas em acolhimento, assistentes sociais e médicos, e acompanhei os discursos online e na mídia tradicional. Num nível, meu interesse nessa questão tem sido profissional, porque estou escrevendo uma série policial, que se passa no presente, e minha personagem mulher detetive está na idade de estar interessada em, e ser afetada por, essas questões ela mesma, mas, em outro nível, é intensamente pessoal, como estou prestes a explicar.

Durante todo este tempo em que estive pesquisando e aprendendo, acusações e ameaças de transativistas têm pipocado na minha timeline do Twitter. Isso inicialmente foi provocado por uma “curtida”. Quando eu comecei a me interessar por questões transgênero e de identidade de gênero, eu comecei a tirar prints de comentários que me interessavam, como forma de lembrar a mim mesma o que eu poderia querer pesquisar depois. Numa ocasião, eu, sem pensar, “curti” [um comentário] ao invés de tirar print. Aquela mera “curtida” foi considerada evidência de pensamento equivocado, e um um nível baixo persistente de assédio começou.

Meses depois, eu adicionei evidências à minha “curtida” acidental criminosa ao seguir Magdalen Berns no Twitter. Magdalen foi uma jovem feminista e lésbica imensamente corajosa que estava morrendo de um tumor cerebral agressivo. Eu a segui porque eu queria contatá-la diretamente, o que eu consegui fazer. Entretanto, como Magdalen acreditava fortemente na importância do sexo biológico, e não acreditava que lésbicas deveriam ser chamadas de intolerantes por não se relacionarem com mulheres trans com pênis, os pontos foram ligados nas cabeças de transativistas de twitter, e o nível de abuso nas mídias sociais aumentou.

Eu menciono tudo isso apenas para explicar que eu sabia perfeitamente bem o que aconteceria quando eu apoiei Maya. Eu devia estar no meu quarto ou quinto cancelamento à época. Eu esperava as ameaças de violência, me falarem que eu estava literalmente matando pessoas trans com meu ódio, ser chamada de vadia e puta e, é claro, pedirem que meus livros sejam queimados, apesar de um homem particularmente abusivo ter me dito que ele os havia transformado em adubo.

O que eu esperava na sequência do meu cancelamento foi a avalanche de e-mails e cartas que choveram sobre mim, cuja maioria maciça era positiva, grata e solidária. Elas vinham de uma seleção de pessoas inteligentes, empáticas e gentis, algumas delas profissionais que trabalham em áreas que lidam com disforia de gênero e pessoas trans, que são todas profundamente preocupadas com a forma como um conceito sociopolítico está influenciando a política, a prática médica e as práticas de acolhimento. São pessoas que estão preocupadas com os riscos a pessoas jovens, pessoas homossexuais e com a erosão dos direitos de mulheres e de meninas. Acima de tudo, estão preocupadas com o clima de medo que não serve a ninguém — menos ainda, à juventude trans.

Eu me afastei do Twitter por muitos meses ambos antes e depois de twittar em apoio de Maya, porque eu sabia que isso não estava fazendo bem nenhum para minha saúde mental. Eu só voltei porque eu queria compartilhar um livro infantil gratuito durante a pandemia. Imediatamente, ativistas que claramente acreditam serem pessoas boas, gentis e progressistas pulularam de volta à minha timeline, tomando para si o direito de policiar meu discurso, acusando-me de ódio, me chamando de nomes misóginos e, acima de tudo — como toda mulher envolvida nesse debate sabe — me chamando de TERF.

Se você já não sabe — e por que você deveria? — “TERF” é um acrônimo cunhado por transativistas, que significa “Trans-Exclusionary Radical Feminist” (Feminista Radical Trans-Excludente). Na prática, uma gama imensa e diversa de mulheres estão atualmente sendo chamada de TERFs e a maioria nunca nem foi feminista radical. Exemplos de supostas feministas radicais vão da mãe de uma criança homossexual que tem medo de sua criança querer transicionar para escapar de bullying homofóbico, até uma mulher mais velha que até hoje foi totalmente antifeminista e que jurou nunca mais voltar àquela loja da esquina porque ela permite que qualquer homem que diz se identificar como mulher entre no provador feminino. Ironicamente, feministas radicais sequer são trans-excludentes — elas includem homens trans em seu feminismo, porque eles nasceram mulheres.

Mas as acusações de TERFismo têm sido suficiente para intimidar muitas pessoas, instituições e organizações que eu já admirei, que estão se acovardando diante das táticas do jogo. “Vão nos chamar de transfóbicos!”, “Vão falar que eu odeio pessoas trans!”. E depois, vão dizer que você tem pulgas? Falando como uma mulher biológica, várias pessoas em posições de poder realmente precisam de crescer um par de bolas (o que é indubitavelmente literalmente possível, de acordo com o tipo de gente que argumenta que peixes-palhaço provam que seres humanos não são uma espécie dimórfica).

Então por que eu estou fazendo isso? Por que me manifestar? Por que não fazer silenciosamente minha pesquisa e manter minha cabeça pra baixo?

Bom, eu tenho cinco razões para me preocupar sobre o novo transativismo, e para decidir que eu preciso me posicionar.

Em primeiro lugar, eu tenho um fundo de caridade que foca em mitigar a pobreza na Escócia, com ênfase particular em mulheres e crianças. Dentre outras coisas, meu fundo apoia projetos para mulheres encarceradas e para sobreviventes de violência doméstica e sexual. Eu também financio pesquisas sobre esclerose múltipla, uma doença que se comporta de maneira bem diferente em homens e em mulheres. É evidente pra mim há um tempo que o novo transativismo tem tido (ou provavelmente vai ter, se todas as suas demandas forem atendidas) um impacto significativo em várias das causas que eu apóio, porque está empurrando para acabar com a definição legal de sexo e substituí-la por gênero.

A segunda razão é que eu sou uma ex-professora e a fundadora de uma caridade para crianças, o que me dá um interesse em ambas educação e serviços de proteção. Como muitas outras pessoas, eu tenho profunda preocupação com o efeito que o movimento de direitos de pessoas trans está tendo em ambos.

A terceira é que, como uma autora amplamente banida, eu tenho interesse na liberdade de expressão e tenho publicamente a defendido, mesmo a de Donald Trump.

A quarta razão é quando as coisas começam a ficar verdadeiramente pessoais. Eu me preocupo com a grande explosão de mulheres jovens desejando transicionar e também com o crescente número que parece estar destransicionando (retornando a seu sexo original), porque elas se arrependem de ter tomado as medidas que, muitas vezes, alteraram seus corpos irremediavelmente, e comprometeram sua fertilidade. Algumas dizem que decidiram transicionar depois de perceber que tinham atração pelo mesmo sexo, e que transicionar foi parcialmente motivado por homofobia, seja na sociedade ou em suas famílias.

A maioria das pessoas não tem noção — eu certamente não tinha, até começar a pesquisar a fundo essa questão — de que há dez anos, a maioria das pessoas querendo transicionar para o sexo oposto era homem. A proporção agora mudou. O Reino Unido vivenciou um aumento de 4400% de meninas sendo encaminhadas a tratamentos de transição. Meninas autistas são absurdamente super-representadas em seus números.

O mesmo fenômeno já foi visto nos Estados Unidos. Em 2018, a médica e pesquisadora estadunidense Lisa Littman decidiu explorar isso. Em uma entrevista, ela disse:

“Pais e mães na internet estavam descrevendo um padrão bastante incomum de identificação transgênero em que diversos amigos e até grupos inteiros de amigos se tornavam transgêneros ao mesmo tempo. Eu teria sido negligente se eu não tivesse considerado contágio social e influência do grupo como fatores potenciais”

Littman mencionou Tumblr, Reddit, Instagram e Youtube como fatores que contribuem para a Rapid Onset Gender Dysphoria [ROGD, Disforia de Gênero de Aparecimento Repentino, em tradução livre], em que ela acredita que no reino da identificação transgênero “a juventude criou câmaras de eco particularmente insulares”.

Seu artigo causou furor. Ela foi acusada de viés e de espalhar desinformação sobre pessoas transgênero; foi sujeita a um tsunami de abuso e de uma campanha orquestrada para descreditar tanto ela mesma quanto seu trabalho. A revista retirou seu artigo offline e o re-revisou antes de republicá-lo. Entretanto, sua carreira sofreu um baque semelhante ao sofrido por Maya Forstater. Lisa Littman ousou desafiar um dos pilares centrais do transativismo, que é que a identidade de gênero de uma pessoa é inata, como a orientação sexual. Ninguém, os ativistas insistiam, pode nunca ser persuadido a ser trans.

O argumento de muitos transativistas atuais é de que se você não permite que um adolescente disfórico transicione, eles vão se matar. Em um artigo explicando por que ele pediu demissão do Tavistock (uma clínica de gênero do sistema nacional de saúde na Inglaterra), o psiquiatra Marcus Evans pontuou que alegações de que crianças vão se matar se não puderem transicionar não “correspondem substancialmente com nenhuma informação ou estudo robusto nessa área. Também não correspondem a nenhum dos casos que eu encontrei ao longo de décadas como psicoterapeuta”.

Os escritos de homens trans jovens revelam um grupo de pessoas notavelmente sensíveis e astutas. Quanto mais eu lia de suas considerações sobre disforia de gênero, com suas descrições perspicazes de ansiedade, dissociação, transtornos alimentares, auto-mutilação e auto-ódio, tanto mais eu me questionava se eu também teria tentado transicionar se eu tivesse nascido 30 anos mais tarde. O fascínio de escapar da mulheridade teria sido imenso. Eu sofri com Transtorno Obsessivo-Compulsivo severo quando adolescente. Se eu tivesse encontrado uma comunidade e a simpatia online que eu não conseguia encontrar no meu ambiente imediato, eu acredito que eu poderia ter sido persuadida a me tornar o filho que meu pai abertamente havia dito que teria preferido.

Quando eu li sobre a teoria da identidade de gênero, eu me lembrei quão mentalmente sem-sexo eu me sentia na juventude. Eu me lembro da descrição de si mesma da Colette como “hermafrodita mental” e das palavras de Simone de Beauvoir: “é perfeitamente normal que a futura mulher se sinta indignada frente às limitações impostas a ela por seu sexo. A real questão não é se ela deveria rejeitá-las: o problema é, ao invés disso, entender por que ela as aceita”.

Como eu não tinha uma possibilidade realista de me tornar um homem lá nos anos 80, tinha que ser os livros e a música que me fizeram passar por ambos minhas questões de saúde mental e pelos escrutínios e julgamentos sexualizados que coloca tantas garotas em guerra contra seus corpos em sua adolescência. Felizmente, para mim, eu encontrei meu próprio senso de alteridade, e minha ambivalência sobre ser uma mulher, refletida no trabalho de autoras e músicas que me asseguravam que, apesar de tudo que um mundo sexista tenta jogar nos corpos femininos, tudo bem não se sentir rosa, com babados e complacente dentro da sua própria cabeça; tudo bem se sentir confusa, sombria, sexual e não-sexual ao mesmo tempo, incerta do que ou de quem você é.

Quero ser muito clara aqui: eu sei que a transição vai ser a solução para algumas pessoas disfóricas de gênero, apesar de eu também saber por meio de extensas pesquisas que os estudos têm consistentemente mostrado que em torno de 60–90% dos adolescentes disfóricos de gênero vão crescer para se livrar de sua disforia. De novo e de novo me dizem para “só conhecer algumas pessoas trans”. Eu já conheci: em adição a algumas pessoas mais jovens, que foram todas adoráveis, eu por acaso conheço uma autointitulada mulher transsexual que é mais velha que eu e maravilhosa. Apesar de ela ser sincera sobre seu passado como homem gay, eu sempre achei difícil de pensar nela como qualquer outra coisa além de mulher, e eu acredito (e certamente espero) que ela é completamente feliz de ter transicionado. Sendo mais velha, porém, faz com que ela tenha passado por um longo e rigoroso processo de avaliação, psicoterapia e transformação. A atual explosão de transativismo está incitando a remoção de quase todos os robustos sistemas pelos quais candidatos de cirurgias de redesignação sexual uma vez já precisaram passar. Um homem que não pretende fazer cirurgia e não pretende tomar hormônios pode agora garantir para si mesmo um Certificado de Reconhecimento de Gênero e ser uma mulher aos olhos da lei. Muitas pessoas não têm conhecimento disso.

Nós estamos vivendo o período mais misógino que eu já vivenciei.

Nos anos 80, eu imaginava que minhas futuras filhas, se eu as tivesse, teriam muito mais e melhor que eu, mas entre as reações conservadoras contra o feminismo e uma cultura online saturada de pornografia, eu acredito que as coisas se tornaram significantemente pior para garotas. Nunca eu vi mulheres difamadas e desumanizadas nas proporções que são agora. Da longa lista de acusações de violência sexual contra o líder do mundo novo e sua orgulhosa ostentação de que ele as “pega pela xoxota”, ao movimento incel (‘involuntarily celibate’, involutariamente celibatário) que se enfurece contra mulheres que não lhes dá sexo, aos transativistas que declaram que TERFs precisam ser espancadas e re-educadas, os homens ao longo do espectro político parecem concordar: mulheres estão pedindo problemas. Em todo lugar, estão mandando mulheres calarem a boca e sentar, ou então…

Eu já li todos os argumentos sobre a mulheridade* não residir no corpo sexuado, e as asserções de que mulheres biológicas não têm experiências comuns, e eu penso que elas, também, são profundamente misóginas e conservadoras. Também é evidente que um dos objetivos de negar a importância do sexo é erodir o que algumas pessoas parecem ver como a ideia cruelmente segregacionista de mulheres terem suas próprias realidades biológicas ou — tão ameaçador quanto — realidades unificadoras que as tornam uma classe política coesa. As centenas de e-mails que eu tenho recebido nos últimos dias provam que essa erosão preocupa igualmente muitas outras pessoas. Não é suficiente que outras mulheres sejam transaliadas. Mulheres devem aceitar e admitir que não há diferença material entre mulheres trans e elas mesmas.

Mas, como muitas mulheres já disseram antes de mim, “mulher” não é uma fantasia. “Mulher” não é uma ideia na cabeça de um homem. “Mulher” não é um cérebro rosa, um gosto por sapatos de grife ou qualquer uma das outras ideias sexista agora apresentadas, de alguma forma, como progressistas. Além disso, a “linguagem” inclusiva que chama fêmeas de “menstruadores” e “pessoas com vulvas” atinge muitas mulheres como desumanizante e humilhante. Eu entendo por que transativistas consideram essa linguagem apropriada e gentil, mas para aquelas de nós que já tiveram xingamentos degradantes cuspidos em nós por homens violentos, não é neutro, é hostil e alienante.

O que me traz à quinta razão de eu estar profundamente preocupada com as consequências do atual transativismo.

Eu tenho estado sob os olhos do público por mais de vinte anos e nunca falei publicamente sobre ser uma sobrevivente de violência doméstica e de abuso sexual. Isso não é porque tenho vergonha de essas coisas terem acontecido comigo, mas porque elas são traumáticas de serem revisitadas e lembradas. Também me sinto protetiva quanto à minha filha com relação ao meu primeiro casamento. Não queria reivindicar propriedade única de uma história que também pertence a ela. Entretanto, pouco tempo atrás, eu perguntei a ela como ela se sentiria se eu fosse publicamente honesta sobre aquela parte de minha vida, e ela me encorajou a ir adiante.

Estou mencionando essas coisas agora não em uma tentativa de agregar simpatia, mas em solidariedade com o imenso número de mulheres que têm histórias como as minhas, que têm sido taxadas de intolerantes por terem preocupações em torno de espaços exclusivos ao sexo feminino.

Eu dei um jeito de escapar do meu primeiro e violento casamento com alguma dificuldade, mas agora estou casada com um homem verdadeiramente bom e de princípios, segura e sã de formas que eu nunca em um milhão de anos esperava estar. Entretanto, as cicatrizes deixadas pela violência e pelo abuso sexual não desaparecem, não importam quão amada você seja, e não importa quanto dinheiro você consiga. Meus pulos permanentes são uma piada de família — e até eu sei que é engraçado — mas eu rezo para que minhas filhas nunca tenham as mesmas razões que eu tenha para odiar barulhos altos repentinos, ou para odiar encontrar pessoas atrás de mim quando eu não as ouvi se aproximando.

Se você pudesse entrar na minha cabeça e entender o que eu sinto quando eu leio sobre uma mulher trans morrendo nas mãos de um homem violento, você encontraria solidariedade e afinidade. Eu tenho um senso visceral do terror no qual aquelas mulheres trans terão passado seus últimos segundos na terra, porque eu também conheci momentos de terror cego quando eu percebi que a única coisa me mantendo vida era a auto-contenção titubeante do meu agressor.

Eu acredito que a maioria das pessoas trans-identificadas não só apresentam zero ameaça a outras pessoas, mas são vulneráveis por todas as razões que eu delineei. Pessoas trans precisam e merecem proteção. Como as mulheres, elas têm mais chances de serem mortas por parceiros sexuais. Mulheres trans que trabalham na indústria do sexo, particularmente mulheres trans racializadas**, estão em particular risco. Como qualquer outra sobrevivente de violência doméstica e de abuso sexual que eu conheço, eu não sinto nada além de empatia e de solidariedade com mulheres trans que já foram abusadas por homens.

Então eu quero que mulheres trans estejam seguras. Ao mesmo tempo, eu não quero deixar meninas e mulheres de nascimento menos seguras. Quando você abre as portas de banheiros e vestiários para qualquer homem que acredita ou sente que ele é uma mulher — e, como eu disse, os certificados de confirmação de gênero agora podem ser concedidos sem qualquer necessidade de cirurgia ou hormônios — então você abre a porta para qualquer e todos os homens que deseja entrar. Essa é a simples verdade.

No sábado de manhã, eu li que o governo Escocês está dando prosseguimento a seus controversos planos de reconhecimento de gênero, que significarão, de fato, que tudo de que um homem precisa para “se tornar uma mulher” é dizer que ele é uma. Para usar uma palavra muito contemporânea, me deu “gatilho”. De castigo pelos ataques implacáveis de transativistas nas redes sociais, quando eu estava lá só para dar a crianças feedback sobre desenhos que elas fizeram para meu livro enquanto em quarentena, eu passei muito do meu sábado em um lugar muito sombrio em minha cabeça, conforme memórias de um assédio sexual sério que eu sofri com vinte e poucos anos ficavam tocando em loop na minha memória. Aquele assédio ocorreu em um momento e em um espaço em que eu estava vulnerável, e um homem se beneficiou de uma oportunidade. Eu não consegui afastar essas memórias e eu estava tendo dificuldades de conter minha raiva e minha decepção sobre a forma irresponsável e negligente como eu acredito que meu governo está tratando a segurança das meninas e das mulheres.

Tarde na noite de sábado, passando por desenhos de crianças antes de ir para a cama, eu esqueci a primeira regra do Twitter — nunca, nunca mesmo espere uma conversa com sutilezas — e reagi ao que eu senti que era uma linguagem degradante sobre mulheres. Eu me posicionei sobre a importância de sexo e tenho pagado o preço desde então. Eu fui transfóbica, eu fui uma escrota, uma vadia, uma TERF, eu mereci cancelamento, espancamento, e morte. Você é o Voldemort, disse uma pessoa, claramente pensando que essa era a única linguagem que eu entenderia.

Seria tão mais fácil twittar as hashtags aprovadas — porque é claro que direitos trans são direitos humanos e é claro que as vidas trans importam — , recolher os cookies dos militantes e me aquecer no resplendor crepuscular representativo de minha virtude. Há alegria, alívio e segurança na conformidade. Como Simone de Beauvoir também escreveu, “…sem dúvida alguma é mais confortável suportar a a servidão cega do que trabalhar pela própria libertação; os mortos, também, estão mais confortáveis na terra do que os vivos”.

Imensos números de mulheres estão justificadamente aterrorizadas pelos transativistas; eu sei disso porque tantas entraram em contato comigo para contar suas histórias. Elas têm medo de terem seus dados expostos; de perderem seus empregos ou sua qualidade de vida; e de violência.

Mas por incessantemente desagradável que esse constante ato de me colocar sob mira tenha sido, eu me recuso a me curvar a um movimento que eu acredito estar causando prejuízo demonstrável ao procurar destruir “mulher” enquanto classe política e biológica e ao oferecer proteção a predadores como poucos movimentos antes já fizeram. Eu me posiciono ao lado das corajosas mulheres e homens, homossexuais, heterossexuais e trans, que estão se posicionando pela liberdade de expressão e de pensamento, e pelos direitos e pela segurança de alguns dos mais vulneráveis de nossa sociedade: jovens crianças homossexuais, adolescentes frágeis, e mulheres que dependem de e desejam manter seus espaços exclusivos ao sexo feminino. Pesquisas mostram que essas mulheres são a maioria, e excluem apenas aquelas privilegiadas ou sortudas o suficiente para nunca terem se deparado contra a violência masculina ou com abuso sexual, e nunca se deram ao trabalho de se educar sobre quão difuso ele é.

O que me dá esperança é que as mulheres que conseguem protestar e se organizar estão fazendo isso, e elas possuem alguns homens e pessoas trans realmente decentes ao lado delas. Partidos políticos buscando apaziguar as vozes mais barulhentas nesse debate estão ignorando as preocupações das mulheres em seu próprio risco. No Reino Unido, mulheres estão chegando umas às outras por meio de partidos, preocupadas com a erosão de seus direitos duramente conquistados e com a intimidação generalizada. Nenhuma das mulheres críticas de gênero com que eu conversei odeia pessoas trans; pelo contrário. Muitas delas se tornaram interessadas por essa questão em primeiro lugar por preocupação com a juventude trans, e elas são imensamente simpáticas com adultos trans que simplesmente querem viver suas vidas, mas que estão enfrentando uma reação contrária por parte de um tipo de ativismo que eles não endossam. A suprema ironia é que a tentativa de silenciar mulheres com a palavra “TERF” talvez tenha empurrado mais mulheres jovens em direção ao feminismo radical do que o movimento viu em décadas.

A última coisa que eu quero dizer é isto. Eu não escrevi esse artigo na esperança de que alguém vai pegar um violino pra mim, nem um pequenininho. Eu sou extraordinariamente sortuda; eu sou uma sobrevivente, certamente não uma vítima. Eu só mencionei meu passado porque, como todo outro ser humano nesse planeta, eu tenho uma história complexa, que molda meus medos meus interesses e minhas opiniões. Eu nunca esqueço essa complexidade interior quando estou criando um personagem ficcional e eu certamente nunca a esqueço quando se trata de pessoas trans.

Tudo que estou pedindo — tudo que eu quero — é que semelhante empatia, que semelhante compreensão seja estendida às milhões de mulheres cujo único crime é querer que suas preocupações sejam ouvidas sem que elas recebam ameaças e abusos.


*No original, “femaleness”. Traduzi para “mulheridade” para não gerar confusão com “feminilidade”. Ninguém bolou ainda uma tradução decente pra “femaless”, então vou continuar usando “mulheridade” porque, na minha opinião, é o que mais se aproxima da ideia que se quer transmitir.

**No original, “trans women of colour”. Sempre traduzo “of colour” como “racializada”, porque apesar de em inglês a expressão “of colour” não ter sentido negativo, a expressão “de cor”, em português, tem. Também não gosto da ideia de que “branco” não é uma cor.