A primeira informação importante a se colocar quando se fala de lesbianismo político é que sua legitimidade não é unânime entre feministas radicais. E, embora a discordância política que fomenta o debate seja sempre bem-vinda, há limites para o que se pode reivindicar enquanto se mantém como feminista radical.
Para definir lesbianismo político, é importante que se defina a análise que dá a base para sua estruturação, que é a análise feminista radical da sexualidade: (1) a heterossexualidade é um regime político compulsório e (2) o pessoal é político. O termo heterossexualidade compulsória, cunhado e popularizado por Adrienne Rich em “Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica”, em 1980, é utilizado até hoje para referir-se ao regime político da heterossexualidade — em seu artigo, Rich o destrincha em todos os seus aspectos e faz um manifesto político em favor do lesbianismo dentro do movimento feminista. Outras autoras lésbicas influenciaram esse contexto, desde o início da década de 70, como Ti-Grace Atkinson, Jill Johnston e as Radicalesbians.
Já os dizeres “o pessoal é político”, cunhados por Carol Hanisch em texto de mesmo nome, nublam a fronteira entre público e privado das análises políticas, defendendo a necessidade de politizarmos nossas relações pessoais. Essa prática será reafirmada por Carole Pateman, em 1988, em seu livro “O Contrato Sexual”, que analisa justamente a criação da divisão público-privado e como ela é diretamente ligada à consolidação do patriarcado moderno.
Esses escritos, juntamente com muitos outros, definem o contexto dentro do qual o lesbianismo político fundamentou-se enquanto teoria feminista. Divergências à parte, é inegável que o lesbianismo político surgiu diretamente de uma análise feminista radical da sociedade — e as discordâncias analisadas aqui serão apenas aquelas que não partem de outras concepções sociais do patriarcado, pois essas são discordâncias do feminismo radical como um todo, e não do lesbianismo político em si. A maior divergência que se vê nas discussões entre feministas hoje em dia é justamente sobre um ponto que é indissociável do feminismo radical: a construção social da nossa sexualidade.
Em “A Heresia Lésbica”, Sheila Jeffreys tece críticas acertadas a essa concepção, expondo suas incompatibilidades com a teoria feminista —a defesa do inatismo biológico da sexualidade é indissociável da defesa do inatismo biológico da feminilidade, refutado pelo feminismo radical. Não há como lutar contra o essencialismo de um e defender o outro. Tanto por isso, a teoria do inatismo da sexualidade foi principalmente desenvolvida por homens gays, baseada em suas vivências e necessidades políticas — ela os coloca enquanto “condenados” pela natureza, isolando a construção da sexualidade de qualquer influência social e portanto inocentando o grupo de homens gays de seu comportamento e de quaisquer possíveis influências que exerceriam sobre a sociedade. Homens gays abraçam a cultura do essencialismo biológico que mulheres feministas — lésbicas ou não — tentam a todo custo destruir, justamente porque não são diretamente prejudicados por ela.
Apesar de criada e destrinchada principalmente por homens gays, essa concepção essencialista também afeta lésbicas, que não podem ser vistas como um grupo automaticamente politizado unicamente por conta de sua sexualidade. A reprodução de comportamentos patriarcais também está na população lésbica, que obviamente não é isenta de influência social — a concepção comum de que a homossexualidade é inata ainda considera a heterossexualidade como norma, colocando mulheres lésbicas como resultado de uma espécie de androginismo fetal: seu amor por mulheres seria resultado de características masculinas introjetadas.
A partir disso, é consequência óbvia que muitas mulheres lésbicas reproduzam masculinidade por acreditarem que faz parte de quem elas são. O raciocínio do determinismo biológico também parece explicar a incongruência entre a socialização que pessoas homossexuais recebem — que as empurra à heterossexualidade — e o resultado dela — a homossexualidade; mas isso ignora que exceções à norma também são construídas socialmente, e não de forma isolada; seres humanos reagem a situações semelhantes de formas completamente diferentes. É por isso que a teoria do lesbianismo político enquanto um processo não é direcionada apenas a feministas não identificadas como lésbicas, mas também às lésbicas que desejam politizar a própria sexualidade. Esse ponto será destrinchado mais à frente.
Ao contrário do que se propaga sobre a concepção da sexualidade enquanto construção social, ela não exclui completamente a possibilidade de uma predisposição para a atração por homens ou mulheres nem define que 100% da nossa sexualidade é necessariamente resultado de influência social. Afinal, a experiência da lesbianidade se dá de diversas formas — a que se reconhece lésbica desde criança e tem dificuldade de pensar na lesbianidade como algo que não é parte de si desde que nasceu, a que descobriu a lesbianidade enquanto possibilidade mais tarde, vivenciando a bissexualidade ou até a heterossexualidade em grande parte da vida — e é prática feminista legitimar todas elas. O que se define é que (1) a sexualidade não é inteiramente inata ou biológica, ou seja, a possível existência de uma predisposição não a define por completo, (2) a construção da sexualidade é definitivamente um processo social, ainda que parcialmente e (3) toda e qualquer forma de se chegar a lesbianidade é legítima e uma não é maior ou mais certeira que outra. Definir a sexualidade enquanto majoritariamente construção social é questão de foco. É decidir que a sexualidade pode ter um fator genético ou pode não ter, mas que ele definitivamente não é determinista e não é a parte mais importante da análise política sobre o patriarcado.
Sobre esse ponto, há inúmeros argumentos que desestabilizam a ideia de sexualidade inata, tanto científicos quanto sociológicos, e não existe a pretensão de destrinchar todos aqui. O que se ressalta é a importância de se pesquisar a enormidade de material feminista radical de análise da sexualidade para que o debate sobre lesbianismo político seja feito de forma honesta e coerente.
Isso posto, fica mais fácil a compreensão do significado da frase “Toda mulher é uma lésbica em potencial”. Ela não quer dizer que não existam mulheres heterossexuais — apesar de questionar a instituição da sexualidade estratificada em si, visto que o próprio conceito de homossexualidade foi criado em oposição ao de heterossexualidade, na lógica da anormalidade a ser definida para fins de diferenciação; mas sim que a heterossexualidade feminina não tem meios de ser confirmada. Não há como ter certeza que aquela mulher, se criada num meio livre de influência patriarcal, não teria desenvolvido sua sexualidade de outra forma.Portanto, a única exigência verificável que existe para que alguém possa ser lésbica é esse alguém ser uma mulher — toda mulher carrega consigo a potencialidade para a lesbianidade, sendo essa potencialidade realizável ou não. E esse conceito é importantíssimo para o feminismo radical: que a possibilidade da lesbianidade seja sempre considerada, em todas as mulheres.
É a partir desse conjunto de concepções, então, que se forma o lesbianismo político, que pode ser definido de forma abrangente como a prática de se politizar a lesbianidade. Isso não quer dizer que toda lésbica é politizada, ou que todas as relações lésbicas são naturalmente saudáveis, ou que as mulheres devem reivindicar a lesbianidade enquanto se relacionam afetivossexualmente com homens. Quer dizer que, dentro de um sistema de heterossexualidade compulsória, em que o pessoal é político, é necessário e inevitável que se politize a lesbianidade — tanto para que mulheres já identificadas enquanto lésbicas politizem a si e suas relações quanto para que mulheres não identificadas com outras mulheres passem a entender a própria potencialidade e a explorem ao máximo de suas capacidades.
Em 1981, o Grupo Feminista Revolucionário de Leeds, na Inglaterra, escreveu um livreto chamado Lesbianismo Político: A Causa Contra a Heterossexualidade, que defendia que feministas devem abandonar a heterossexualidade como modo de vida. O livreto foi coescrito por Sheila Jeffreys, feminista lésbica que aprofunda essas questões em livros como A Heresia Lésbica e Anticlímax: Uma Perspectiva Feminista da Revolução sexual. A análise do livreto discorre sobre penetração enquanto canalizador da opressão das mulheres, explicando que a penetração compulsória (pois ela é encarada como a única forma de sexo) é a erotização da submissão das mulheres e da dominação dos homens. O livreto coloca, logo no início:
“Nós sim pensamos que todas as feministas podem e devem ser lésbicas políticas. Nossa definição de uma lésbica política é uma mulher identificada com a mulher que não fode com homens. Não significa compulsória atividade sexual com outras mulheres.”
Lesbianismo político é, então, uma proposta de prática política feminista que parte de uma análise social para a criação de um processo:
- A análise: que a heterossexualidade é um regime político que restringe nossa livre-expressão da sexualidade, e que a lesbianidade — o modo de viver lesbiano, a existência lésbica — tem caráter político ainda que vivenciada de forma não politizada; pois a negação por si só de corpos femininos ao acesso masculino tem uma carga política descomunal, ainda que feita de forma inconsciente ou apolitizada. Faz parte disso reconhecer a importância da resistência lésbica e da inserção da voz de lésbicas dentro do movimento feminista, e entender que a lesbianidade não pode ser colocada como apenas mais uma “orientação sexual” — assim como a heterossexualidade não o é. É diferenciar a lesbianidade da homossexualidade masculina, e não assimilar ambas sob o discurso liberal de diversidade. Faz parte disso também entender que a sexualidade das mulheres é negada e moldada pelo patriarcado, e portanto, toda mulher é uma lésbica em potencial. É por isso que o termo utilizado é lesbianismo político — o sufixo -ismo, apesar de rechaçado pelas políticas Queer por poder referir-se à doença, também refere-se a ideologia ou sistema político; em adição à lesbianidade, que refere-se à vivência lésbica.
- O processo: partir dessa análise da sexualidade para a criação de um impulso politicamente ativado. A proposta do lesbianismo político é de se transpor as conclusões dessa análise política para sua vida pessoal, entrar em profundo questionamento, sair da zona de conforto e analisar a si mesma, seus gostos e concepções de vida. Isso é muito mais complexo do que simplesmente questionar a própria sexualidade, ou construir a sexualidade lésbica como uma escolha consciente — pois a heterossexualidade é um modo de vida, e é todos os aspectos desse modo de vida que são questionados nesse processo. Passar pelo processo do lesbianismo político enquanto impulso politicamente ativado não necessariamente resulta em se afirmar lésbica no final — vivenciar a lesbianidade é amar e desejar exclusivamente mulheres, isso é fato — ; mas sim em aplicar na vida e principalmente na militância a lógica poderosa que a lesbianidade carrega de negação de acesso afetivo e sexual dos homens aos nossos corpos, principalmente afetivo — e de direcionamento das energias para relações entre mulheres. Para mulheres lésbicas, é questionar as práticas e concepções que aplicaram a si mesmas por crescerem e se formarem sob a lógica patriarcal — desintoxicar-se de qualquer reprodução de masculinidade que a sociedade incutiu às suas personalidades, direcionar suas energias para suas relações com mulheres (pois há lésbicas que, apesar de se relacionarem amorosamente com mulheres, ainda focam sua energia nas relações que mantêm com homens), entender a importância da própria existência enquanto resistência ainda que nunca tenha se pensado dessa forma, e ajudá-la a não deixar que distorções patriarcais a façam recair na heterossexualidade compulsória. Para mulheres não-lésbicas, consiste no questionamento de sua sexualidade e do direcionamento de suas energias para relações afetivossexuais com homens — e mesmo que esse processo não resulte na descoberta da lesbianidade, ele é crucial para a construção de uma dinâmica feminista — mulher-identificada — de suas relações.
Nada disso tem a finalidade de romantizar a lesbianidade enquanto um mar de rosas político, nem fazer crer que os problemas da vida das mulheres se resolverão ao se assumirem lésbicas ou ao direcionarem suas energias para relações entre mulheres — é consenso inclusive que a vida de lésbicas num patriarcado é extremamente difícil. Até porque, feminismo não é sobre tornar a vida das mulheres mais confortável a curto prazo, mas sim para que se atinja um patamar de transformação social característico de revolução. E lesbianismo político também não é sobre pressionar lésbicas a uma politização forçada: é uma prática política para mulheres que escolham adentrar no feminismo e aplicá-lo ao seu modo de vida. Também é importante que não se confunda a proposta do lesbianismo político com o discurso liberal de fluidez da sexualidade, que geralmente é usado para flexibilizar os limites da lesbianidade, e não o contrário. O discurso da fluidez da sexualidade é responsável, inclusive, por lésbicas que sempre tiveram ciência de sua sexualidade e nunca se relacionaram com homens e acabam “experimentando” a heterossexualidade já na vida adulta — o discurso liberal atual coloca a lesbianidade como limitadora, um rótulo conservador. Lesbianismo político não é sobre isso — é exatamente o contrário.
Toda essa reflexão não ficou só no âmbito teórico. Muitas mulheres da segunda onda feminista abandonaram maridos, filhas e filhos para ir a casas exclusivamente de mulheres, e debater e construir uma vida verdadeiramente mulher-identificada. É por isso que não se pode considerar o lesbianismo político uma política identitária: a identidade lésbica foi transcendida para uma verdadeira prática política, real, intensa e, na minha opinião, fantástica.
De acordo com a lógica do lesbianismo político, toda lésbica feminista radical é uma lésbica política — não necessariamente por ter descoberto sua lesbianidade a partir do discurso do lesbianismo político, mas também por terem decidido reivindicar a politização da própria lesbianidade. A mulher que nega a heterossexualidade como escolha consciente a partir da lógica do lesbianismo político e foca suas energias em relações intensas com mulheres também é uma lésbica política. Faz parte disso, também, receber de braços abertos aquelas que descobriram a seu amor por mulheres depois de terem acesso ao feminismo radical, e não acusá-las de apropriarem-se de uma sexualidade que não é delas. O mundo não precisa de mais pessoas dizendo a mulheres que seu amor por mulheres não é legítimo.
“É uma de minhas esperanças como lesbiana-feminista que mais mulheres agora e no futuro, devido a nossa visibilidade, trabalho e energia, ponham mais valor nas suas relações com mulheres e elijam abertamente ao lesbianismo — como uma política, como um modo de vida, como uma filosofia e como um plano vital.”
Cheryl Clarke, em Lesbianismo: Um ato de resistência