Lezbehonest: Sobre o apagamento das lésbicas na política queer

“Lésbica” está se tornando uma categoria contestada mais uma vez. A definição mais literal de lésbica — uma mulher homossexual – é o objeto de uma nova controvérsia. Essa lesbofobia não vem de um conservadorismo social, mas se manifesta dentro da comunidade LGBT+, em que mulheres lésbicas são frequentemente demonizadas como preconceituosas ou como uma piada antiquada como resultado de sua sexualidade.

No contexto pós-moderno das políticas queer, mulheres cuja atração é estritamente direcionada ao mesmo sexo estão sendo taxadas de arcaicas. Em compensação, os desejos dos homens gays não são policiados nem com uma fração do mesmo rigor: em um contexto queer, homens são encorajados a priorizar seu próprio prazer, enquanto mulheres continuam a ter que lidar com as expectativas de que nós acomodemos os outros. Longe de subverter as normas patriarcais, as políticas queer replicam os padrões perpetrados pelos papéis de gênero restritivos. Não é coincidência que mulheres lésbicas sejam sujeitas às piores formas de hostilidade da comunidade queer.

Junto com a propagação do fascismo e a normalização da supremacia branca, os últimos anos trouxeram uma avalanche de sentimentos anti-lésbicos. Conteúdos midiáticos hipoteticamente direcionados e escritos por mulheres lésbicas nos informam que somos uma espécie em extinção. Publicações feministas questionando se nós sequer precisamos da palavra “lésbica”, editorias de oposição declarando que a cultura lésbica está extinta, peças afetadas que anunciam que lésbica ”soa como uma doença rara”, e até comentários argumentando que a sexualidade lésbica é uma relíquia do passado no nosso bravo e sexualmente fluido novo mundo — tais artigos posicionam deliberadamente a sexualidade lésbica como fora de moda. Eles encorajam ativamente a rejeição à identidade lésbica ao confirmar que a leitora se entende como uma pessoa moderna, alguém progressista, caso ela esteja prepada para abandonar o rótulo de “lésbica”.Do mesmo jeito que o patriarcado recompensa a “garota legal” por se distanciar dos ideais feministas, a política queer recompensa a lésbica que se rotula de qualquer outra forma que não “lésbica”.

Desencorajar lésbicas de se identificarem como tais, de exigirem que a cultura e a política de oposição são o nosso legado, é uma estratégia efetiva. Heather Hogan, editora da publicação supostamente lésbica Autostraddle, recentemente foi ao Twitter e comparou a resistência lésbica à lesbofobia ao neonazismo. Hogan se “identifica” como lésbica, mas ainda assim julga as perspectivas feministas lésbicas como inerentemente preconceituosas.

Os ativistas queer da internet lançaram uma campanha contra a Biblioteca do Movimento dos Trabalhadores  por convidar a feminista lésbica Julie Bindel para falar durante no Mês da História LGBT, lotando o evento no Facebook de mensagens abusivas e assédios que escalaram para ameaças de morte. O fato de Bindel considerar que gênero seja uma hierarquia em sua análise feminista, foi o suficiente para que ela tenha sido taxada de “perigosa”. A recém inaugurada Biblioteca das Mulheres de Vancouver foi objeto de uma campanha de intimidação pelos ativistas queer. A VWL foi pressionada a remover de suas prateleiras, sob a justificativa de que eles “advogavam violência” — a maioria dos livros taxados foram escritos por autoras feministas lésbicas como Adrienne Rich, Ti-Grace Atkinson, e Sheila Jeffreys. Ninguém precisa concordar com todo argumento das feministas lésbicas para observar que o apagamento deliberado das perspectivas lésbicas é um ato de covardia intelectual baseada em misoginia.

A sexualidade lésbica, sua cultura, e o feminismo estão sendo sujeitos à uma oposição concentrada das políticas queer. Tornar as lésbicas invisíveis — uma tática clássica do patriarcado — é justificada pelos ativistas queer considerando que a sexualidade lésbica e sua praxis são exclusionárias, e que essa exclusão significa preconceito (em particular quando relacionado com homens e mulheres transgênero).

O Lesbianismo é Exclusionário?

Sim. Toda sexualidade é, por definição, exclusionária — formada por um conjunto de característica específicas que moldam os parâmetros pelo qual um indivíduo é capaz de experimentar uma atração mental e física. Esse conceito em si mesmo, não é um preconceito. A atração é física, é baseada em uma realidade material. Desejo pode pode apenas se manifestar, ou não. A sexualidade lésbica é, e sempre foi, uma fonte de controvérsia porque mulheres vivendo vidas lésbicas não devotam seu trabalho emocional, sexual e reprodutivo para homens, e todos esses trabalhos são demandados pelas normas patriarcais.

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Uma lésbica é uma mulher que se sente atraída e tem interesse por outras mulheres, e portanto, excluem homens. Que os limites sexuais das lésbicas sejam tão policiados é o resultado de uma misoginia concentrada composta de homofobia. Mulheres que desejam outras mulheres, excluem homens; mulheres que direcionam seu tempo e energia para outras mulheres, excluem homens; mulheres que moldam vidas ao redor de outras mulheres, excluem homens; Dessa maneira, o amor lésbico se apresenta como um desafio fundamental ao status quo. Nossa própria existência contradiz o essencialismo tradicionalmente usado para justificar a hierarquia do gênero: “é natural”, que se tornar subserviente à um homem é simplesmente o bastante na vida de uma mulher. A vida lésbica é inerentemente oposta a tudo isso. Ela cria espaço para possibilidades radicais, que sofrem resistência tanto dos conservadores quanto dos liberais.

A sexualidade lésbica está em disputa pelo discurso queer porque ela é um reconhecimento positivo e ativo da biologia feminina. Arielle Scarcella, uma famosa vlogger, foi atacada depois de afirmar que, enquanto lésbica, ela “gosta de peitos de vaginas e não pênis.” A atração de Scarcella pelo corpo feminino foi denunciada como transfóbica. O fato da atração lésbica ser direcionada a corpos femininos é criticado como essencialismo porque se manifesta pela presença das características sexuais primárias e secundárias. Como o desejo lésbico não se extende às mulheres trans, ele é “problemático” para uma compreensão queer das relações entre sexo, gênero e sexualidade.

Ao invés de aceitar os limites sexuais impostos por mulheres lésbicas, a ideologia queer trata esses limites como problemas a serem resolvidos. O editor do Buzzfeed da sessão LGBT, Shannon Keating, defende a desconstrução da sexualidade lésbica como uma “solução” em potencial:

“…talvez nós devêssemos continuar a desafiar a noção tradicional de lesbianidade, que assume que há apenas dois gêneros binários, e que lésbicas podem ou devem apenas ser mulheres cis atraídas por mulheres cis. Algumas lésbicas que não seguem totalmente a lógica TERF ainda estão muito dispostas a não namorarem pessoas trans por conta de uma “preferência por genitais”, o que significa que elas têm ideias incrivelmente reducionistas sobre gênero e os corpos.”

A sexualidade lésbica não pode ser desconstruída a ponto de parar de existir. Além do mais, problematizar a sexualidade é, em si mesmo, problemático: uma forma de lesbofobia. A lesbianidade foi “desafiada” desde tempos imemoriais pelo patriarcado. Ao longo da história homens aprisionaram, mataram, e institucionalizaram mulheres lésbicas a estupros coletivos — como forma de reforçar a heterossexualidade. A lesbofobia antiquada operava numa lógica “não pergunte, não fale”, em que o preço da aceitação social (leia-se: a tolerância mínima) nos permitia a sermos tidas como héteros até que o contrário fosse provado. Nem um pouco ameaçador.

A lesbofobia “progressista” é de modo geral mais insidiosa porque acontece dentro dos espaços LGBT+ dos quais somos ostensivamente parte. Essa lesbofobia nos pede que descartemos a palavra “lésbica” por algo mais brando e suave, como Mulheres que amam Mulheres, ou algo vago o suficiente para evitar transmitir o conjunto de características restritivas dos limites sexuais, como queer. Ela nos pede que abandonemos as especificidades da nossa sexualidade para pacificar os outros.

O Teto de Algodão

O debate sobre o Teto de Algodão é comumente desqualificado como sendo uma “retórica TERF“, ainda que o termo tenha sido originalmente criado pelo transativista Drew DeVeaux. De acordo com o blogger feminista queer Avory Faucette, a teoria do Teto de Algodão busca “desafiar a tendência das lésbicas cis” de… traçar uma linha entre dormir com mulheres trans ou incluir lésbicas trans em suas comunidades sexuais.”A associação Planned Parenthood ministrou um agora notório workshop nesse assunto, Superando o Teto de Algodão: Quebrando as barreiras sexuais contra as mulheres Trans Queers.

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Os limites sexuais de mulheres lésbicas são apresentados como uma “barreira” a ser “superada”. Formular estratégias para encorajar mulheres a se envolver em atos sexuais é coerção sexual legitimada, açucarada pela linguagem da inclusão. Essa narrativa se baseia na objetificação da mulher lésbica, nos posicionando como objetos de uma conquista sexual.A teoria do Teto de Algodão repousa em uma mentalidade de direito adquirido sobre o corpo das mulheres que é promovido por um ambiente de misoginia.

A sexualidade lésbica não existe para proporcionar validação. Os limites sexuais de nenhuma mulher está aberto a negociação. Argumentar de tal forma dentro do discurso queer recria a lógica da cultura do estupro produzida pelo patriarcado heterossexual.Tratar o acesso sexual aos corpos de mulheres lésbicas como um teste de legitimidade, uma validação para a transmulheridade, é desumanizante para mulheres lésbicas. Tratar a sexualidade lésbica como motivada pelo preconceito cria um contexto de coerção, em que mulheres são pressionadas a reconsiderar seus limites sexuais por medo de serem taxadas de TERF.

Recusar acesso sexual ao próprio corpo não é a mesma coisa que discriminação com a parte rejeitada. Não considerar alguém como um potencial parceiro sexual não é uma forma de exercer opressão. Enquanto parte de uma demografia, mulheres lésbicas não possuem mais poder estrutural que mulheres trans — e se apropriar da linguagem da opressão para o debate do Teto de Algodão é, na melhor das hipóteses, falso.

Para pôr em poucas palavras, nenhuma mulher nunca é obrigada a transar com ninguém.

Conclusão

A sexualidade lésbica se tornou um campo em que constantes tensões sobre gênero e sexo explodem. Isso é porque, sob o patriarcado o ônus da prova é firmemente nosso. Homens gays não são chamados de preconceituosos por evitar sexo vaginal por conta de sua homossexualidade.Amar os homens e desejar o corpo masculino carrega uma certa lógica num contexto cultural construído na centralidade da masculinidade, numa perspectiva queer. Por outro lado, como o corpo feminino é constantemente degradado no patriarcado, mulheres que desejam mulheres são tidas sob suspeita.

“Se eu não me definisse por mim mesma, eu seria triturada pela fantasia dos outros sobre mim e comida viva.” — Audre Lorde

Lésbicas lidaram com a mesma velha combinação entre misoginia e homofobia vinda da direita e agora estão sendo implacavelmente investigadas pela esquerda queer e liberal: o fato de sermos mulheres desinteressadas em pênis é aparentemente litigioso no espectro político. Os conservadores dizem que somos quebradas, anormais. A família LGBT+ na qual deveríamos pertencer nos diz que somos irremediavelmente ultrapassadas em nossos desejos. Ambos tentam ativamente desconstruir a sexualidade lésbica até a inexistência. Ambos tentam tornar as mulheres lésbicas invisíveis. Ambos sugerem que nós ainda não provamos o pênis certo. Os paralelos das políticas queer e o patriarcado não podem ser ignorados.


Por Claire Heuchen
Post Original


Notas

Esse post é o segundo em uma série de seis artigos sobre sexo, gênero e sexualidade. O primeiro está disponível aqui, assim como as partes três e quatro também. Eu escrevi sobre o apagamento lésbico porque eu me recuso a me tornar invisível. Erguendo minha voz em dissidência, eu procuro oferecer tanto um grau de reconhecimento à outras mulheres lésbicas quanto uma resistência política ativa a qualquer estrutura — hétero ou queer — que insista que lésbicas são uma espécie em extinção.Se mulheres amando e priorizando outras mulheres são uma ameaça às suas políticas, eu posso garantir que você faz parte do problema e não da solução.

Dedicado à SJ, que me fez me sentir orgulhosa de ser lésbica. Sua bondade ilumina meu mundo.


Referências Bibliográficas

Julie Bindel. (2014). Straight Expectations.

Cordelia Fine. (2010). Delusions of Gender

Audre Lorde. (1984). Scratching the Surface: Some Notes on Barriers to Woman and Loving. IN Sister Outsider

Rebecca Reilly-Cooper. (2015). Sex and Gender: A Beginner’s Guide

Adrienne Rich. (1980). Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence