Ninguém tem o

Stelarc — um artista performático que atualmente habita o corpo de um Cipriota-Australiano de 74 anos — acredita que o “corpo humano, como agora o conhecemos, é obsoleto.

Seu trabalho brinca com a fronteira entre homem e máquina. Em uma exibição, ele deu aos membros do público o controle de seus membros através de estimuladores musculares eletrônicos. Em outra, ele projetou um sistema que permite a um corpo físico animar um corpo virtual enquanto ele se move através do ciberespaço. Em 2007, Stelarc implantou cirurgicamente em seu braço esquerdo uma orelha cultivada a partir de células, com a esperança de um dia instalar um dispositivo de áudio sem fio e permitir que outros escutem dela, ouvindo como Stelarc ouve. Ele sonha com um mundo no qual já não estamos limitados pelas nossas formas animais: “a vida não mais começaria com o nascimento e terminaria com a morte! A vida se tornaria uma experiência digital.”

Lendo um artigo recente do New York Times intitulado “A luta pela Igualdade de Fertilidade”, parece que um novo movimento de ativistas pró-subrogação (de útero) estão pensando de forma distintamente Stelarciana:

Ainda na sua infância, este movimento prevê um futuro quando a capacidade de criar uma família já não é determinada pela riqueza, sexualidade, gênero ou biologia… argumentam que as pessoas — gay, heterossexual, solteiras, casadas, machos e fêmeas — não são inférteis porque os seus corpos se recusam a cooperar com a criação de bebês.

Ron Poole-Dayan, fundador e Diretor Executivo de uma organização chamada Homens Tendo Bebês (‘Men Having Babies’ no original), vê os objetivos de seu movimento como simplesmente o próximo passo lógico na luta pela igualdade, seguindo a campanha de sucesso para legalizar o casamento gay nos Estados Unidos da América. Ele argumenta que as barreiras que os homens gays enfrentam em ter filhos são sociais, ao invés de físicas, e que suposições ao contrário são amargamente “heterocentricas”.

Poole-Dayan e outros activistas da igualdade de fertilidade insistem não só na legalização total da sub-rogação comercial de útero (aqui conhecida também como “barriga de aluguel”), mas também na cobertura dos custos por parte das companhias de planos de saúde. Alguns empregadores já oferecem os chamados “benefícios de fertilidade”, pagando pela congelação de ovos, FIV (fertilização in vitro) e “barriga de aluguel” — uma regalia que é cada vez mais comum no setor tecnológico. Os defensores da igualdade de fertilidade gostariam de ver isto amplificado, permitindo assim que qualquer pessoa, independentemente do seu rendimento, sexo, orientação sexual ou estatuto de relação, tenha um filho que esteja geneticamente relacionado com eles.

A palavra “mulher” não aparece uma única vez no artigo do New York Times. Nem a palavra “mãe”. Há uma breve menção de feministas reagindo contra a expansão da indústria da sub-rogação de útero, incluindo figuras famosas, como Gloria Steinem e Phyllis Chesler, essa última protestando contra o anti-materialismo de que: “Algumas pessoas querem acabar com a realidade, mas a biologia é real, a biologia existe — e é a biologia que faz com que você engravide.”

Phyllis Chesler

Quando entrevistei Chesler no ano passado, ela falou sobre seus esforços para fazer oposição à campanha para legalizar a sub-rogação de útero comercial no Estado de Nova York, uma campanha que o governador Andrew Cuomo mais tarde intitulou como “O Amor Faz Uma Família” (‘Love Makes a Family’ no original) Desde então, Cuomo conseguiu avançar com suas propostas de reformas, o que significa que a sub-rogação de útero comercial se tornará legal no Estado de Nova Iorque em fevereiro de 2021. A resistência feminista, por agora, falhou.

É muitas vezes esquecido que a maioria das pessoas que procuram serviços de substituição de útero não são homens gays, mas sim casais heterossexuais. Uma minoria é infértil como resultado de doença ou deficiência, mas uma proporção muito maior é incapaz de conceber pela idade da mulher. Como a gravidez tardia tornou-se mais comum no mundo moderno, assim como a infertilidade relacionada com a idade. A proporção de mulheres de 20 anos que não terão um parto bem sucedido depois de engravidar é de cerca de 2–3%; para mulheres de 40 anos, o número é mais próximo de um terço; para mulheres de 45 anos, quase 90%. Os homens gays não são as únicas pessoas cujos “corpos se recusam a cooperar com a criação de bebês” — as mulheres mais velhas estão na mesma situação, embora seja por culpa da passagem do tempo, e não pelo seu sexo biológico.

É quase cruel salientar que a idade está tão intimamente relacionada com a fertilidade, dado que os comentários sobre o “relógio biológico” podem ser tão afiados e tão pessoais para as mulheres que estão nos trinta e poucos anos. Mas, como a publicação Endocrinologia Ginecológica diz de maneira franca, as mulheres “são falsamente tranquilizadas por crenças populares que os avanços nas novas tecnologias reprodutivas podem compensar o declínio da fertilidade relacionado à idade, mas a ciência não pode vencer o relógio biológico.” Phyllis Chesler já disse isso: “a biologia é real, a biologia existe.”

Talvez preferíssemos que não. Há trans-humanistas como Stelarc determinados a deixar para trás estes nossos corpos carnudos e restritivos e a avançar para um novo futuro ciborgue. Talvez um dia eles alcancem suas ambições e será possível gerar bebês fora do corpo humano, parar o processo de envelhecimento, ou até mesmo conquistar a morte, enviando nossas mentes para a internet.

Mas ainda não chegámos lá. A mais impressionante conquista de Stelarc até à data é transplantar uma orelha para o seu braço. Mas o ouvido não funciona de fato: não consegue ouvir nada, já que não tem a conexão necessária com o cérebro. É uma peça de arte chamativa, que chama atenção, não uma verdadeira transformação da forma humana.

Sterlac e sua orelha implantada no braço

A verdade é que, aqui e agora, os bebês ainda precisam de mães, quer nos referamos ou não a elas por essa palavra. E essas mães estão assustadoramente ausentes do discurso sobre sub-rogação de útero. Nos primeiros tempos dessa indústria, todos os acordos de “barriga de aluguel” eram do chamado tipo “tradicional” — a mulher era paga para ser inseminada pelo esperma do pai comissionado. Ela dava à luz uma criança que não só tinha crescido dentro de seu corpo, mas também era geneticamente relacionada a ela. Ela era, de todas as formas possíveis, a mãe daquela criança. O pagamento que ela recebia era a compensação por abandonar todos os direitos de guarda.

Esse sistema resultou em muitos processos. Como Julie Bindel escreveu recentemente para o UnHerd, mães que tem seus úteros sub-rogados muitas vezes sofrem terrivelmente quando se separam dos bebês, e uma mulher que participou da barriga de aluguel “tradicional” pode mais facilmente fazer uma petição legal com base em sua conexão genética com a criança. Hoje em dia, os acordos de sub-rogação “gestacional” contornam esse problema usando um óvulo extraído de outra mulher. Por isso, a mãe com o útero sub-rogado torna-se, supostamente, nada mais do que um recipiente.

Desta forma, a indústria de sub-rogação de útero tem tentado gradualmente corroer a ligação entre as duas pessoas centrais no ato: a mãe e a criança. O vocabulário da indústria tem sido parte desse empenho, uma vez que ao longo das décadas a palavra “mãe” foi gradualmente retirada do final do termo “mãe sub-rogada”*, removendo da nossa visão esta mulher e o seu precioso corpo.

As pessoas que procuram serviços de “barriga de aluguel” estão desesperadamente forçando os limites naturais que nos são impostos como seres humanos. A grande maioria quer desafiar a sua idade ou o seu sexo, e quer que essa audácia seja apoiada por outros: pelo Estado, pelos seguros médicos e — acima de tudo — pelas mulheres que agem como mães substitutas.

A indústria da sub-rogação de útero — uma rede cada vez maior de advogados, médicos e outros intermediários — vende-lhes a ideia de que tudo é possível, desde que estejam preparados para pagar. E a ideologia política do individualismo liberal os diz que a sua liberdade deve ser colocada acima de tudo. Tendo isto em conta, porque não exigiriam o “direito” de ter um filho? É, como Ron Poole-Dayan, sumo sacerdote da Igreja do liberalismo, tão sucintamente afirma “sobre a sociedade estendendo a igualdade à sua conclusão final e lógica.”

Mas a existência do movimento da igualdade de fertilidade destaca os problemas inerentes a uma doutrina liberal que promete auto-realização, ao mesmo tempo em que negligencia as formas em que somos interdependentes: ligados uns aos outros como membros da sociedade, em vez de indivíduos que flutuam livremente. Estes ativistas estão determinados a buscar uma forma de liberdade que não se importa com as restrições impostas pela realidade material. Mas não há como (ainda) gerar bebês em garrafas. O projeto deles é individualista, mas não é algo que os indivíduos possam realizar sozinhos. Então, para obter o que eles querem, eles têm que exigir que outras pessoas dêem a eles.

E estas outras pessoas se tornam então invisíveis. Os ativistas da igualdade de fertilidade nos pedem para esquecer a existência da mulher que — apesar de toda a tecnologia sofisticada utilizada para a concepção e implantação — faz o mesmo que qualquer mãe faz, e fizeram por um bilhão de anos. Uma tarefa de baixa tecnologia, ainda misteriosa, que mais ninguém pode executar, por mais que queira. Porque, como as mulheres usadas pela indústria de sub-rogação de útero sabem muito bem, “a biologia é real, a biologia existe.” 

Por mais que insistamos no contrário.


Louise Perry é uma escritora freelancer e militante contra a violência sexual.


Notas:

*‘surrogate mother’ no original. Aqui a ‘barriga’ em ‘bariga de aluguel’ nunca nem fez referência à essa mulher, a mãe com útero sub-rogado.


Por Louise Perry — traduzido do UnHeard