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No dia dos namorados, lembre-se: o pessoal é político

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No dia dos namorados, lembre-se: o pessoal é político
No dia dos namorados, lembre-se: o pessoal é político

Às vezes parece que a mulher sujeito das análises do feminismo, enquanto indivíduo, não existe. Nós falamos muito de questões estruturais e fazemos análises materialistas que pressupõem a coletividade. Falamos de problemas e de explorações a que estão sujeitas todas — ou a maioria — das mulheres a nível macro, aos milhares, aos milhões. E dispomos disso justamente pra dar dimensão do tamanho do problema que enfrentamos.

Mas isso não significa que as análises feitas pelo feminismo não sirvam pra explicar o que acontece nas relações privadas. Na verdade, é exatamente o contrário.

O feminismo te mostra que a família — as relações domésticas e familiares — são um universo micro em que se repetem as opressões e explorações que acontecem lá fora, no universo macro. Em termos de trabalho, dentro de casa, o homem explora, além da prole, a mulher: explora sua capacidade reprodutiva, explora sua sexualidade (colocando o sexo como a obrigação da mulher casada, um direito do homem que a possui), explora sua força de trabalho (responsabilizando-a, unicamente, pelos cuidados da casa, da prole e de eventuais pessoas idosas). Mesmo nas famílias em que a mulher não pode se dar ao luxo de se dedicar exclusivamente à casa e precisa trabalhar fora, como é o caso de famílias pobres, ainda assim a mulher dedica muito mais horas de sua semana aos cuidados da casa.

É claro, é evidente, que por trás dessa relação de exploração de um trabalho (ainda por cima!) não remunerado existe todo um imaginário social (ou uma ideologia, chame como quiser) que dispõe de justificativas pra esse fenômeno. Os argumentos vão desde motivos “biológicos” (“mas a mulher é naturalmente mais caseira, mais ordeira”) até justificativas “pragmáticas” (“a mulher já trabalha menos, aposenta mais cedo e engravida, então cuidar da casa é uma compensação”). Mas o que existe na verdade, como sabemos, é pura exploração. Misoginia, hierarquia.

Mas o alcance do machismo e da misoginia não pára aí.

Da mesma forma como o capitalismo e a ideologia burguesa conseguem se enfiar em todos os cantos da nossa vida, até nas nossas relações pessoais e afetivas (quem aqui nunca se pegou quantificando afeto em preço de presente?), o patriarcado também o faz. A ideologia patriarcal não se restringe ao campo da economia ou do trabalho, porque isso não garantiria o controle total dos homens sobre as mulheres. Não: a dominação só é efetiva se for possível plantar sementes de sua ideologia em todas as áreas de nossa vida. E isso inclui os relacionamentos.

É por isso que o pessoal é político. Tudo o que acontece na vida das mulheres, seja dentro de casa, na universidade, no transporte público, na internet, no Senado, na ala da maternidade ou no presídio — tudo é atravessado pelo fato de que somos mulheres. Não à toa mulheres têm tantas experiências em comum — resguardados alguns limites de raça e de classe. O que nos acontece, o que fazem com a gente em ambientes privados é reflexo e consequência direta de discursos e ideias políticas que se expressam no espaço público. 

E se a gente sabe que os perpetuadores de nossa exploração e de nossa opressão são os homens — já que são eles que se beneficiam desse sistema — , então não tem como fugir da análise de que, em um relacionamento heterossexual, eventualmente o cara vai reproduzir essa estrutura.

Eu gosto muito dessa imagem pra ilustrar o que é um relacionamento heterossexual, pra mim. É uma performance da famosíssima Marina Abramović, e a artista afirma se tratar de uma performance sobre confiança.

Pra mim, é sobre a nossa posição, enquanto mulheres, em um relacionamento heterossexual — em que, de fato, depositamos nossa confiança em alguém que tem o poder pra nos machucar a qualquer segundo. Porque é ele quem segura a flecha, apontada para o coração dela. O resultado é uma constante tensão.

Vamos ver exemplos de como a exploração/opressão no nível macro se manifesta no nível micro?

Cultura do estupro

A cultura do estupro nos diz que a culpa de uma violência é da vítima e não do agressor, o que implica que o agressor não fez nada de errado e estava em seu direito masculino de acesso aos corpos femininos. A cultura do estupro nos diz que temos que gostar de assédio, pois isso significa que somos desejadas. A cultura do estupro mede nosso valor pelas investidas sexuais que recebemos. A cultura do estupro nos coloca no lugar de propriedade do homem.

E, no nível micro, também faz parte da cultura do estupro a ideia de que “sexo sem vontade” faz parte do relacionamento (sendo uma obrigação da mulher casada)… que “homens têm mesmo mais vontade de sexo, é mais fácil ceder”… que temos de dar desculpas (vide a piada corrente sobre dor de cabeça como motivo para negar sexo) para não fazer sexo, porque não podemos simplesmente não querer e negar… que se o homem não é “satisfeito” em casa, então vai “procurar na rua”… O que está por trás de tudo isso, se não a cultura do estupro? Se não a velha ideia de que homens têm direito de acesso aos corpos das mulheres, e de que isso se potencializa se o homem tiver algum grau de relacionamento com a mulher (seja ele de afeto ou de parentesco)?

E eu não vou nem começar a falar de namorados que acham que têm o direito de consumir pornografia e/ou prostituição.

Maternidade compulsória

A maternidade compulsória nos diz que é natural e instintivo querer ser mãe, que todas as mulheres nasceram pra isso, e que não querer ser mãe é uma negação de nossa própria natureza, uma aberração, uma subversão. Mas o ser mãe não se limita aos atos de gestar, de parir e de eventualmente amamentar: ser mãe, aqui, é ser total e completamente responsável por outro ser humano, que, por sua vez, é absolutamente incapaz e não pode ser responsabilizado por seus atos. Ser mãe é suportar as piores tempestades, pesadelos e momentos ruins por… amor. É resiliência, paciência; e, acima de tudo, é aguentar todo o processo de maneira abençoadamente calada.

No nível micro, também faz parte da maternidade compulsória a ideia de que você tem que aguentar toda e qualquer merda que seu namorado te fizer, porque homens são assim: infantis e imaturos, infantilizados por suas mães (sabe como é mãe de menino, né!), e você tem que ser paciente e esperar que ele amadureça, se você realmente o ama. Você tem que ensiná-lo como se relaciona. Você tem que ceder e “relevar” algumas besteiras que ele fizer. E não fique cobrando demais, cada um tem seu tempo! Pensar em você mesma, respeitar seus limites, tirar satisfação, cobrar maturidade e reciprocidade? Que egoísmo! Assim você vai acabar ficando sozinha!

Falocentrismo

Como o próprio termo diz, o falocentrismo é esse dogma que coloca os homens no centro de tudo, inclusive e principalmente no centro da vida das mulheres.Nossas vidas devem girar em torno deles e nosso maior objetivo de vida é agradá-los e sermos por eles aceitas e desejadas. O maior exemplo disso é a elevação do casamento a um pedestal, como o grande e irresoluto objetivo de vida, ápice de felicidade, ponto alto da vida de uma mulher. Mas existem outras manifestações do falocentrismo: concursos de beleza; a criação da rivalidade feminina; até mesmo a pornografia — tudo serve para reforçar a ideia de que o que importa é a opinião masculina.

No nível micro, isso significa que, dentro de um relacionamento, além de somente os sentimentos e demandas do homem importarem, é responsabilidade exclusiva da mulher “fazer o relacionamento funcionar”. É a mulher que é responsável por “salvar” o casamento, por “manter seu parceiro fiel”; e também será responsável se o relacionamento “falhar” (ou seja: se não desembocar no casamento, único medidor de sucesso possível para relacionamentos, pelo jeito).

Mas não só: mulheres devem se contentar (e ficarem felizes) com o mínimo. Não devem nunca esperar mais do que o mínimo, aliás, e devem premiá-lo. Aparentemente, ser tratada com respeito, dignidade e um mínimo de decência é pedir demais.

…consequentemente: mulheres, seres de segunda classe

Simone de Beauvoir já nos mostrou que a mulheridade é construída em oposição à masculinidade. O conceito de “homem” só existe porque existe o conceito de “mulher”. O homem é o Um, o ser, aquele que é, enquanto que a mulher é o Outro, o não-ser. Daí a ideia de que o homem é quem é um ser humano; a mulher é meramente fêmea, reprodutora, mutilada, um macho imperfeito e inacabado (ideia essa repetida milhares de vezes ao longo de toda a história por diversos “filósofos” diferentes). Na prática, isso nos coloca sempre abaixo dos homens, inferiores a eles, num status muitas vezes de, literalmente, coisa, objeto. Nossos direitos (quando existem) são secundários, um “a mais” de projetos de governo. Nossa sexualidade é considerada tabu. Nosso trabalho e seus resultados sempre serão manchados pela marca de “feito por uma mulher”, e, por isso, desvalorizados. Nossas dores, angústias e pautas são fruto de nossa histeria. A biologia, a medicina e a psiquiatria por anos a fio tentaram demonstrar que somos mais fracas, menos inteligentes, menos capazes, menos potentes.

Não tem como isso não impactar o que pensamos de nós mesmas; e, mais, o que pensamos de nós dentro de uma relação com um homem. É óbvio, é praticamente esperado que nós coloquemos nossas insatisfações, medos, inseguras, angústias e demandas em segundo lugar. É óbvio que sempre se espera que seja a mulher quem ceda quando surgem brigas (até por ser de nossa natureza compreensiva e maternal). É óbvio que você vai duvidar da sua sanidade mental quando começar a querer pensar mais em você do que no outro, porque não foi isso que você foi programada pra fazer. É óbvio que você vai ser acusada de estar louca, histérica, egoísta; de ser manipuladora e mentirosa (o famoso gaslighting). Nem é possível que um homem aja diferente se a vida toda ele esteve acostumado com todo o mundo girando ao redor de suas necessidades, a começar por sua relação com sua própria mãe.


O feminismo oferece análises e explicações pra nossa situação enquanto coletividade dentro do patriarcado e do capitalismo, sem se esquecer de que mulheres no final do dia voltam pra casa.

Nós, feministas, também temos que nos lembrar disso. É um processo muito difícil e doloroso enxergar essas contradições em nossos próprios relacionamentos, porque exige que a gente desaprenda e questione nossa própria socialização — e é também por conta da socialização que nenhuma feminista está imune de viver relacionamentos tóxicos e/ou abusivos — mas, afinal, a emancipação está justamente nesse processo de questionamento, de destruir pra depois reconstruir por cima das cinzas.