Créditos da Imagem: http://fernandesassis.blogspot.pt

Vou começar essa publicação com uma afirmação clara, mas certamente controversa. Agora, se você se sentir realmente na defensiva assim que ler essa afirmação, por favor leia o resto do texto ANTES de enviar mensagens de ódio. Então, aqui vai:

Transtorno de Identidade de Gênero é uma síndrome ligada à cultura, não algo com o qual você nasce.

Síndromes Culturais, ou Síndromes ligadas à cultura, incluem uma vasta gama de problemas médicos. Alguns são bem familiares aos Americanos e Europeus, como anorexia e bulimia, que surgem por causa da complexa interação entre a nossa visão cultural sobre beleza, alimentação e (geralmente) feminilidade. Outras, entretanto, são mais frequentemente (ou exclusivamente) experimentadas em outras partes do mundo, o que pode lhes dar um ar de alteridade.

Por exemplo, a síndrome dE Koro — no qual, dependendo da cultura da pessoa, acredita-se que o pênis de alguém foi roubado ou começou a encolher até desaparecer — é, hoje, vivenciado primariamente em países da África Ocidental e partes do Sudeste Asiático e subcontinente, embora tenha sido experimentado como uma epidemia em culturas europeias/americanas em séculos passados.

Similarmente, a síndrome de Dhaté experimentada por pessoas que acreditam fortemente que estão perdendo energia e função sexual, e estão vivenciando sintomas extremos de depressão e ansiedade porque estão perdendo sêmen na urina. Isso acontece por conta de visões religiosas acerca do sêmen e da ejaculação em algumas culturas na Índia e Nepal.

A ideia de que a identidade trans é neurologicamente inata, estabelecida no útero pelas leis da biologia, é uma ideia que só pode vir de uma perspectiva cega às realidades históricas e antropológicas. Em algumas culturas, as pessoas que estão fora do gênero binário acreditam completamente que eles tenham escolhido seu caminho de gênero. Em algumas, é uma escolha feita após a meia-idade, enquanto em outras o assunto é decidido na puberdade.

O que é mais importante é que em diferentes culturas e tempos, a ideia de Identidade de Gênero e o que significa violar o binarismo de gênero e ter uma identidade em não-conformidade é diferente.

Se o fenômeno da identidade de gênero fosse, como muitas pessoas disseram (até nausear com argumentos que soam bem parecidos com aquelas pessoas afirmando que homens e mulheres têm cérebros diferentes que explicam suas diferenças culturalmente determinadas), genético/epigenético e determinado ao/antes do nascimento, isso implicaria que o fenômeno doloroso e debilitante da disforia manifestar-se-ia dessa forma ao longo da história e em muitas culturas. Mas não se manifesta.

Enquanto existem pessoas em não-conformidade de gênero em toda a história, o sentimento disfórico de ansiedade, quase obsessivo e que provoca depressão, de que as características sexuais primárias ou secundárias de alguém estão “erradas” em relação ao cérebro é um fenômeno que não está refletido em toda a história ou em todas as culturas ao redor do mundo. É culturalmente específico.

O que isso significa é que alguns elementos da nossa cultura estão fazendo com que a não-conformidade de gênero se manifeste aqui, incluindo o fenômeno da transgeneridade, transtorno de identidade de gênero e disforia.

Esse blog procura explorar alguns desses elementos culturais partindo do que, eu espero, seja uma perspectiva um pouco diferente. Mas antes que comecemos a olhar as especificidades, gostaria de deixar algumas coisas básicas em que acredito ou não acredito, para que estejamos todos no mesmo ritmo e eu não receba mensagens de ódio porque uma vez você interagiu com uma feminista radical que foi malvada contigo.

O QUE EU ACREDITO:

  • A relutância em reconhecer o Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) como uma síndrome ligada à cultura vem de um histórico de discriminação contra pessoas em não-conformidade de gênero e uma maior disposição dos americanos e europeus em aceitaram a não-conformidade de gênero se a virem em acordo com seu modelo de biologia/neurociência, no qual a identidade de gênero é inata e imutável. De certa forma, isso faz com que não seja “culpa da pessoa”, o que é um jeito triste e decepcionante de ver a não-conformidade de gênero ser analisada.
  • Disforia e TIG são vivenciados como um fenômeno real e, às vezes, doloroso: a não-conformidade de gênero ocorre em muitas culturas e é resultante do fato de o binarismo de gênero baseado no sexo não fazer um pingo de sentido. TIG e disforia — nas formas específicas em que são experimentados na nossa cultura — são ao que me refiro quando digo que a transgeneridade é uma síndrome ligada à cultura.
  • A não-conformidade e não-cumprimento de gênero são diferentes de cultura para cultura, tanto historicamente quanto nas sociedades contemporâneas: uma quantidade estupenda de energia é dedicada em dizer às pessoas que sua identidade de gênero é inata e baseada no cérebro, e que existem “cérebros femininos e masculinos”. Essa noção é incrivelmente destrutiva e tem pouco espaço no pensamento feminista.
  • Que “terceiras”, “quartas” e outras tantas identidades de gênero em outras culturas também são culturalmente mediadas e que, em algumas dessas culturas, a identidade de gênero serve mais para reforçar do que para subverter o binarismo baseado em sexo (vamos aprofundar nisso mais pra frente, prometo).
  • Que o conceito de transgeneridade como manifestado atualmente nos Estados Unidos podem levar a problemas complexos de identidade, apropriação e aceitação.

O QUE EU NÃO ACREDITO:

  • Que ser transgênero é um fenômeno inato (“nasci assim”) ligado à genética que é vivenciado igualmente em todas as culturas.
  • Que referir ao TIG como uma síndrome ligada à cultura é transfóbico. Não é anorexiafóbico referir à anorexia como uma síndrome ligada à cultura — isso não apaga ou banaliza a experiência alheia. Sua cultura é uma parte importante em você e não é surpreendente ou anormal que sua cultura se manifeste em partes importantes da sua identidade de gênero e autoconceito.
  • Que ser transgênero, inclusiva ou exclusivamente de Cirurgias de Redesignação Sexual ou tratamentos hormonais, faz de você uma pessoa ruim.
  • Que pessoas transgênero ou em não-conformidade de gênero deveriam estar sujeitas à discriminação no trabalho, assédio nas ruas, etc.
  • Que pessoas com disforia de gênero ou forte aversão às típicas identidades de gênero de suas culturas estão “fingindo” de alguma forma.
  • Que esteja fora de questão discutir os modos como nossa cultura media e cria o fenômeno da identidade de gênero e transgeneridade.

Artigo traduzido do blog Culturally-bound Gender