O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo

Essa tradução é um compilado dos textos “El sexo como eje de opresión. Sí, el sexo”, originalmente publicado em seis partes, de Raquel Rosario Sánchez, escritora dominicana e especialista em Estudos da Mulher, Gênero e Sexualidade. Como as partes são interdependentes entre si, publicamos todas aqui como um texto único, mas você ainda pode identificar cada uma delas, porque estão precedidas de subtítulo. Para ler os artigos em espanhol, publicados no El Caribe, clique aqui. Grifos da tradutora.


O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo (I)

Se você decidiu ler esse texto pensando que se trata de algum conto picante, me permita informar que se enganou completamente. Aqui falaremos sobre teorias e leis: dois assuntos que se encontram em uma guerra mortal para decidir qual dos dois é menos erótico (ambos estão ganhando).

Nessa série, vou falar de sexo biológico. A Fundéu define feminicídio como “o assassinato de uma mulher em razão de seu sexo”. Algumas das maneiras através das quais o sexo das mulheres e das meninas é utilizado para oprimi-las são: a violência obstétrica, os casamentos infantis, os abortos clandestinos e/ou forçados, as demissões por conta de gravidez, a esterilização forçada, entre outros. Isso é teoria feminista, e expandiremos esse ponto no próximo texto da série.

Agora, falemos de leis. A Constituição não contempla o sexo como fator de opressão, o que é extremamente preocupante. Só fala de gênero. Em seu art. 39, garante o direito à igualdade “sem discriminação por razões de gênero, cor, idade, deficiência, nacionalidade…”.

Ignorar o sexo como eixo de opressão e substituí-lo por gênero entra em conflito com o Anteprojeto de Lei de Identidade de Gênero (o nome político é “Anteprojeto de Lei Geral de Igualdade e Não Discriminação”). Eu sei que a Procuradoria insiste em fazer da identidade de gênero uma espinha dorsal do Anteprojeto, mas não entendo por que atar uma legislação tão importante a um conceito tão controverso. Isso abre brechas legais perniciosas e representa uma caixa de pandora revoltosa; cheia de travas e inquietudes complicadíssimas.

Essa nova conceitualização define gênero não como uma construção social, hierárquica e imposta, mas simplesmente como uma crença individual. Agora você se pergunte: se ignoramos o sexo como eixo de opressão de mulheres e meninas, assumindo que só existe o gênero, e dizemos que o gênero é uma decisão pessoal, não estamos dizendo que as mulheres e meninas são quem decide serem oprimidas e discriminadas? Pensem se não é isso, por favor.

Como sabemos que esse é um Anteprojeto de Lei de Identidade de Gênero? Pelo extremo cuidado com que trata esse ponto e pela negligência com que trata outras questões. Por exemplo, as desigualdades e discriminações que afetam mulheres e meninas.

Recentemente, uma versão final do Anteprojeto foi enviada a diversas instituições. Essa versão não menciona a misoginia (diferentemente de outras formas de discriminação, como xenofobia, racismo e homofobia, as quais menciona) e coloca o sexismo como algo subjetivo e aberto à interpretação (diferentemente de como considera as outras formas de discriminação: objetivas). Cabe ressaltar que as mulheres e meninas constituem mais da metade da população dominicana: a lacuna tem que ser bem acentuada para ignorar um segmento demográfico de tamanha magnitude.

Essa versão final foi enviada a essas instituições para que todo mundo lesse o título bonitinho e aplaudisse sem pensar muito.

Sentar para revisar o Anteprojeto e fazer sugestões não é algo bem-vindo. Como eu sei disso? Porque eu mesma fiz algumas anotações feministas, assinalando brechas fundamentais no marco ideológico do Anteprojeto, e a representante da equipe redatora reagiu me acusando,em nível pessoal, de comungar com “conservadores, reacionários e utrarreligiosos”. Se assim fosse, isso aparentemente representaria um crime macabro para a redatora. Me desculpem (não sou advogada), mas o contra-argumento sensato é o de que, numa sociedade democrática como a nossa, até eles têm todo o direito de opinar sobre políticas públicas. Suponho também que, se eu fosse uma pessoa conservadora, essa reação hostil só aumentaria meu interesse no Anteprojeto, não é?

Me preocupa esse estranho nível de autoritarismo, intolerante e preconceituoso, uma vez que ele não combina com um Anteprojeto que alega praticar o completo oposto. É como se fazer perguntas sobre políticas públicas representasse uma intromissão inoportuna e fosse algo proibido. Poxa, que pena, porque eu tenho muitíssimas perguntas. Sugiro que prestemos mais atenção ao Anteprojeto.


O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo (II)

Ai, meu deus! Alguns amigos me disseram que meu último texto foi um sucesso e agora tem um monte de homem interessado nessa série. Bom, se você se emocionou com aquela conversa sobre teorias e leis, pois então se prepare, que isso aqui ainda vai pegar fogo: vamos até mesmo chegar ao ponto de falar sobre estatísticas e sobre a importância de ter requisitos claros nos estudos clínicos, uma loucura! Tomara que ninguém me denuncie às autoridades por indecência…

Continuamos falando sobre o Anteprojeto de Lei de Identidade de Gênero (nome político: “Anteprojeto de Lei Geral de Igualdade e Não Discriminação”). Após a introdução da série, considero importante especificar alguns pontos. Como “o que é o sexo biológico?”, “o que é o gênero?” e “por que Raquel continua alegando que as mulheres representam uma ‘classe sexual’?”. É com muito prazer que eu lhes explico.

O sexo é nossa biologia. Podemos nascer meninas, meninos e, em uma porcentagem muito, mas muito reduzida, podemos ter uma variação genética que nos determinaria como intersexo (uma combinação de ambos). Costumamos assumir que, quando falamos de diferenças biológicas entre homens e mulheres, nos referimos exclusivamente ao sistema reprodutivo. Mas isso é uma ideia medieval equivocada, já que assume que as mulheres são uma mera derivação dos homens, só que útero e seios.

O sexo biológico é muito mais do que sistemas reprodutivos. Por exemplo, nosso sexo biológico determina fatores como a diferente propensão ou resistência a certas doenças. Em um mundo ideal, tudo isso seria irrelevante e todas as pessoas seriam tratadas com amor e respeito. Mas não vivemos nesse mundo ideal: vivemos em um patriarcado. Em um sistema patriarcal, nascer menina e ser mulher frequentemente acarretam repercussões severas. Quando as feministas argumentamos que as mulheres constituem uma “classe sexual”, o que queremos dizer é que, ao redor do mundo, as mulheres passam por todos os tipos de situações de opressão e discriminação diferentes, mas seu sexo biológico funciona como um denominador comum.

Algumas dessas opressões são legitimadas através de crenças que buscam naturalizar a opressão e a subordinação das mulheres. Essas crenças são o que conhecemos como gênero, e falaremos sobre isso mais adiante.

Na República Dominicana, os três cavaleiros principais do apocalipse das mulheres são os feminicídios, o casamento infantil e os abortos clandestinos. Em cada um, o sexo biológico tem um papel fundamental. Não são homens e mulheres que matam cônjuges, na mesma proporção… foram homens que mataram mais de 200 mulheres no ano passado. Na cabeça dos feminicidas, ser mulher implicou o nível de desumanização que legitimou cada assassinato. Da mesma forma, os homens adultos que procuram menores com quem “possam casar” falam abertamente que, para eles, as meninas representam sujeitos dóceis que se podem dominar com facilidade, particularmente, logo após engravidá-las. Ser menina é fundamental nessa dinâmica. E, obviamente, uma gravidez não pode colocar sua vida em perigo mortal se você não tem um útero fecundável.

A evidência é irrefutável, mas, segundo as leis dominicanas, o sexo não é um fator. Dado nosso contexto, é extremamente preocupante que o direito dominicano sequer saiba que isso é importante e que essa omissão é perigosa, uma vez que coloca as mulheres em uma posição vulnerável.

Você perguntará: por que essas definições seriam tão importantes? Eu te respondo que, para mulheres e meninas, é um assunto de vida ou morte. Isso se evidencia especialmente quando analisamos os efeitos de ignorar o sexo biológico na medicina. Sobre isso, falaremos no próximo artigo.


O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo (III)

Como você sabe que está tendo um ataque do coração? Certamente você imagina que vai sentir uma pressão terrível no peito e cair no chão, como os anúncios na televisão costumam mostrar. A imagem é popular, mas pode ser que a realidade não seja tão dramática. Especialmente se você for uma mulher.

“Embora tanto homens quanto mulheres possam sentir uma pressão no peito tão forte que pareça que há um elefante sentado ali, as mulheres podem sofrer um ataque do coração sem senti-la”, explica a doutora Nieca Goldberg, diretora do Centro para a Saúde da Mulher no Langone Medical Center, da Universidade de Nova Iorque. “Elas podem sentir falta de ar, uma pressão ou dor na parte de baixo do peito ou na parte de cima do abdome, tontura ou desmaio, pressão na parte de cima das costas ou fadiga extrema”.

A diferença entre os sintomas de um ataque do coração é o exemplo mais conhecido das diferenças entre os sexos na medicina… e, ainda hoje, muita gente não sabe disso. Mas as diferenças não param por aí. Acontece que as armas nucleares e a radiação têm um efeito diferente no corpo das mulheres. Vocês sabem: a proliferação nuclear é um assunto feminista!

Os corpos dos homens são mais resistentes à radiação (Nuclear Information and Resource Service) e, entre as pessoas que desenvolvem câncer depois de expostas a ela, as mulheres têm o dobro de probabilidade de morrer. Hoje sabemos também que 80% dos remédios retirados do mercado são descontinuados devido aos efeitos secundários nocivos que têm nos corpos das mulheres. E a razão pela qual esses remédios as afetam de maneira diferente é que, na hora de testar esses remédios, antes de introduzi-los no mercado, eles só são avaliados nos corpos dos homens. Para que fique clara a gravidade do problema: esses efeitos secundários não são apenas uma coceira ou um vômito leve. Muitas vezes, a discriminação estrutural que as mulheres sofrem na ciência se traduz na morte desnecessária de inúmeras mulheres e meninas.

As perguntas óbvias são “o que nos falta descobrir?” e “que diferenças encontraríamos aqui em nosso país?”. A única maneira de averiguar isso é realizando mais ensaios clínicos comparativos entre homens e mulheres. Mas, no ano de 2018, a pergunta que nos estão obrigando a responder é: “quem é mulher?”. Nem eu escrevi nem você leu errado: a pergunta que eu quero de você responda é “quem é uma mulher?”. Eu sempre pensei que a mulher fosse um ser humano com uma realidade biológica que existe independentemente das ideias pessoais e das agendas políticas. Mas nossas leis dizem que não.

A última vez que analisei o Projeto de Lei Orgânica que o Sistema Integral para a Prevenção, Atenção, Sanção e Erradicação da Violência contra as Mulheres criou (há poucos meses), ele dizia que se deve considerar mulher “qualquer pessoa que se autoidentifique como mulher”. A Constituição de 2010 diz que a mulher é um gênero. E o Anteprojeto de Lei de Identidade de Gênero (nome político: “Anteprojeto de Lei Geral de Igualdade e Não Discriminação”) diz que o gênero é uma identidade pessoal mutável. Quer dizer, não existe nenhuma lei na República Dominicana que reconheça as mulheres como seres humanos, com direitos próprios, com base no seu sexo. Muitos países (por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra) reconhecem, mediante leis integrais, o sexo como um eixo de opressão e, portanto, entendem que as mulheres precisam de garantias e direitos particulares. Mas na República Dominicana não existe nenhuma lei similar, e as que estão em trabalho estão prestes a piorar consideravelmente o assunto.

Nosso sexo se encontra em cada célula do nosso corpo (Shah, McCormack, Bradbury. American Journal of Physiology – Cell Physiology). O gênero é uma construção social, mas o sexo é imutável. Num ensaio clínico comparativo, qualquer célula masculina que caia no grupo de prova das mulheres faz com que seja preciso descartar o ensaio e recomeçar tudo do zero, arriscando-se o laboratório a perder o financiamento. Mas, e se a lei diz que essas células masculinas devem ser legalmente reconhecidas como as de uma mulher? Isso é o que se chama de sobrepor a semântica ao sentido comum e, irresponsavelmente, à vida das mulheres.

Nunca antes havíamos estado tão perto de ressarcir o prejuízo que a manipulação da ciência provocou ao discriminar mulheres. E, justamente quando tínhamos conseguido o impossível, fazer com que o estabelecimento científico se recapacitasse sobre isso, de repente perdemos a base legal necessária para proteger a mulher diante desses ensaios clínicos e em muitos outros âmbitos. É preciso formular exemplos concretos para ilustrar essa travalegal. Analisaremos isso no próximo artigo.


O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo (IV)

No dia 16 de setembro de 2017, uma senhora foi realizar um papanicolau num hospital de North West London NHS Foundation (Inglaterra). O papanicolau é um exameinvasivo para o corpo da mulher. É comum e perfeitamente legítimo que muitas mulheres se sintam desconfortáveis com a ideia de que homens estranhos as toquem, preferindo ginecologistas mulheres e enfermeiras.

Nesse sábado, a senhora exerceu seu direito (conferido por lei) de escolher alguém do mesmo sexo para fazer seu procedimento. Mas a pessoa enfermeira que a atendeu tinha barba, voz grave e cabeça raspada. A paciente explicou que havia solicitado uma mulher, e a pessoa que lhe atendeu disse que se autoidentificava como mulher. Mais uma vez a senhora explicou que queria uma enfermeira, e a pessoa, que para todos os fins fisiológicos e oculares era homem, repetiu que se autoidentificava como enfermeira. Não aceitar que o papanicolau fosse feito constituiria discriminação contra a identidade de gênero daquela pessoa.

A paciente disse se sentir “envergonhada e angustiada”, e a situação foi tão desconfortável que decidiu interromper o exame que tinha acabado de começar. Lembremos que nenhuma mulher realiza um papanicolau simplesmente porque está a fim: ele é necessário para detectar doenças potencialmente fatais. Eventualmente, o hospital pediu desculpas à senhora pela situação e porque a pessoa enfermeira não contava com um certificado de gênero legal. “Nos desculpamos com essa paciente pelo nosso erro. O protocolo é de que toda solicitação deve ser levada muito a sério”, disseram. Com ou sem certificado, esse cenário abre uma série de inquietações.

Na Inglaterra, a mulher na maca tem direito de solicitar uma enfermeira com base em seu sexo e a pessoa que se apresentou como enfermeira tem direito a ser considerada enfermeira, desde que tenha o certificado correspondente. Muito bem, mas, quando ambas as leis entram em conflito, os direitos de quem devem prevalecer? Atualmente existem alguns critérios necessários para obter um certificado de mudança de gênero. Esses requisitos buscam prevenir o que nossa pessoa enfermeira fez: abusar perversamente da lei.

Controversamente, o governo (atenção!) conservador britânico, com aval dos demais partidos políticos, propôs eliminar todos os requisitos e outorgar certificados de gênero baseando-se exclusivamente no princípio da autoidentificação/declaração pessoal. Quer dizer, bastaria assinar um documento. Chama a atenção que partidos políticos que nunca estão de acordo nem sobre que horas são, de repente, apoiem essas mudanças unanimemente. Por que será?

A chave dessas mudanças a políticas públicas radica em introduzi-las na legislação sem que ninguém se dê conta. Mas agora se armou uma tremenda rebelião, porque as feministas inglesas, reconhecidas historicamente por seu ativismo belicoso, detectaram o que isso significaria para os direitos das mulheres e decidiram se organizar. Vocês imaginam o que representaria para a sociedade dominicana uma moça tímida e pacífica como eu figurar entre mulheres tão desavergonhadamente revoltosas e desobedientes? Seria o fim!

Esse princípio da “autoidentificação/declaração pessoal” é a base do Anteprojeto de Lei de Identidade de Gênero (nome político: “Anteprojeto de Lei Geral de Igualdade e Não Discriminação”) porque não inclui nenhum critério nem requisito e, atenção, Junta Central Eleitoral e Ministério da Mulher, isso acarreta implicações significativas para os espaços nos quais se encontram as mulheres mais vulneráveis da República Dominicana: as casas de acolhimento e as penitenciárias segregadas.

Se o Anteprojeto fosse aprovado exatamente como foi enviado às instituições nos finais de 2017 e o cenário apresentado nesse artigo ocorresse aqui, teria-se que multar a senhora do papanicolau por discriminação. O Anteprojeto estabelece que “se aplicará, além das sanções indicadas e as que se considerem, uma multa de 50 a 100 salários mínimos mensais do montante estabelecido para o setor privado às pessoas diretamente responsáveis pelo ato ou omissão discriminatória”. Quanto são de 50 a 100 salários mínimos do setor privado?Segundo a Resolução 05/2017 do Ministério do Trabalho, o mínimo dos salários mínimos do setor privado é RD$ 9,411.60 pesos. Agora vamos multiplicar: a multa seria de RD$ 470,580 a RD$ 941,160 pesos [R$ 43,82 a R$ 87,73, em junho de 2020].

Aqui é preciso respirar fundo. Atualmente, o tema da identidade de gênero (que afirma que o gênero são sentimentos internos, não uma construção estrutural) é o mais tóxico dentro do movimento feminista. Debatê-lo é quase impossível. Lembremos à equipe redatora que mais de 40% da população dominicana vive em extrema pobreza. E que a pobreza tem cara de mulher, porque as mulheres não são afetadas da mesma forma que os homens. A quem ocorre escrever em um Anteprojeto de Lei de “Igualdade e Não Discriminação” que a mãe solo que vende pastel numa esquina pela manhã e é porteira de uma escola pela tarde deveria ser multada em RD$ 470,580 a RD$ 941,160 pesos por desconhecimento sobre um tema acerca do qual nem as especialistas entramos em consenso?

Se as pessoas ricas por trás desse Anteprojeto querem multar-se entre elas, apoio 100%, mas introduzir isso dissimuladamente na legislação e esperar que a população geral não se dê conta é uma ousadia elitista pouco razoável. De onde vêm essas ideias? De quem é esse Anteprojeto? Me esperem no próximo artigo.


O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo (V)

Continuamos conversando sobre a importância de levar em conta o sexo nas leis dominicanas, porque elas não o incluem. A última vez que tocamos nesse assunto, analisamos como eu me encontrei (por acaso) com conceitos inovadores pertencentes às políticas de identidade de gênero dentro de projetos de lei que supostamente deveriam tratar de outras coisas.

Tudo começou lendo o “Projeto de Lei que cria o sistema integral para a prevenção, a atenção a sanção e a erradicação da violência contra as mulheres” e depois o “Anteprojeto de Lei Geral de Igualdade e Não Discriminação”. Ambos apresentavam um monte de complicações que pretendiam perpetuar na lei as confusões substanciaissobre sexo, gênero e identidades, sem conhecimento da população, muito menos consenso público.

Como assim? Bom, acontece que se você diz que a misoginia é uma conduta de ódio implícita ou explícita para com “o feminino” você está deixando de fora todas as mulheres que não se submetem aos padrões de feminilidade. Se você põe em uma lei que “mulher” é qualquer pessoa que identifique a si mesma como mulher, está 1) abrindo uma brecha bem grande para qualquer agressor que queira abusar da lei, 2) pulverizando a mulher como sujeito político e 3) impossibilitando a monitoração de estatísticas confiáveis sobre a desigualdade e a discriminação que as mulheres e as meninas sofrem.

Se você inclui em uma lei que a pessoa trans é “qualquer pessoa que transcenda às categorias culturalmente estabelecidas para seu gênero”, essa categoria passa de ser de menos de 10.000 pessoas a 10,7 milhões de pessoas, porque todo homem que chora (ou seja, todos) quebra com os estereótipos estabelecidos por seu gênero. Da mesma forma como toda mulher que fala de política (ou seja, todas) está cortando os fios com os quais a feminilidade quer controlá-la.

Se você acha que isso é insignificante, lembre-se de que estamos falando sobre a consagração da mulher como um sujeito político, até agora legalmente indefinido, mas que na República Dominicana conta com cerca de 5,3 milhões de pessoas. E isso é importante.

Essas confusões são o resultado de não querer consultar pessoas cujas ideias possam ser diferentes das nossas, porque toda feminista ao fazer análises estruturais pega o lápis e começa a perguntar nas margens do projeto: “o que isso quer dizer?” e “o que isso implica?”. Esse não é um assunto local: ao redor do mundo, as políticas de identidade de gênero funcionam como o exemplo mais perfeito sobre o que acontece quando se suprimem as consultas amplas e a pluralidade na hora de escrever leis nacionais. Um documento recém-aprovado diz que a diversidade ideológica é considerada “um princípio e um valor fundamental para o exercício da democracia política”. Me pergunto quem é mais ingênuo: quem escreve esse tipo de frase ou quem acredita nela.

As políticas públicas devem ser dialogadas com toda pessoa que habite determinado país, sem nenhum tipo de má vontade, seja imigrante ou cidadã e sem importar filiações, porque afetam a todos. É necessário escutar o ponto de vista das pessoas que questionam, ainda que você não goste disso. Recusar-se a dialogar com pessoas que opinam diferente pode ser chamado de maniqueísmo. Observando a reação de pessoas que têm uma baixa de açúcar quando veem mulheres aplicando valores liberais que alegam apoiar no abstrato e/ou quando outros homens o empregam, eu me pergunto: será que a democracia é um conceito masculino? Vem aí outra série!

Um dos projetos que acabo de mencionar terminou sendo analisado substancialmente, e foram corrigidas várias brechas. E eu sei disso porque recentemente revisei a versão finalizada através de uma instituição. O outro deve andar por aí, suponho, em condições incertas.

Vamos supor que as coisas não apareçam nos projetos de leis nacionais por acaso. E se um assunto controverso aparece em dois projetos de leis diferentes inadvertidamente isso quer dizer que provavelmente aparecerá em um terceiro, não é verdade? Quero fazer algumas perguntas às pessoas que estão escondendo o tema da identidade de gênero dentro desses ou outros projetos… mas acabou o espaço! Continuamos no próximo artigo.


O sexo como eixo de opressão. Sim, o sexo (VI)

Vamos terminar a conversa sobre o polissêmico conceito de identidade de gênero, que possivelmente já está incluído de maneira clandestina em alguma lei dominicana. O que mais me interessa perguntar a quem advoga e insiste em esconder esse assunto é simples: o que é a identidade de gênero? E gostaria, por favor, de uma definição legal que não recorra a estereótipos sexistas nem se baseie em definições circulares. No tempo de vocês, eu espero.

A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (assinada pela República Dominicana em 17 de julho de 1989 e aprovada em 2 de setembro de 1982) afirma que os Estados que fazem parte deverão “modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com o objetivo de alcançar a eliminação dos preconceitos e das práticas consuetudinárias de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de quaisquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres”. Mas como desmantelamos esses estereótipos se uma lei legitima o conceito de identidade de gênero?

Você poderia ter uma lei individual que definisse sexo, mas nossa Constituição ainda não a tem. Portanto, como pretendem que a figura da identidade de gênero interaja com os direitos das mulheres que, segundo o que a Constituição alega, só existem com base em nosso gênero? Como recolher estatísticas confiáveis e transparentes sobre a iniquidade e a discriminação que mulheres e meninas sofrem, uma vez que se subscreva esse conceito na lei? A cota feminina deveria permanecer reservada às mulheres ou ser aberta a todo mundo, com base em identificações pessoais?

Qualquer definição ou redefinição legal sobre “o que são” as mulheres deve consultá-las. Onde está essa consulta pública e democrática? Quais foram os resultados? Ou por acaso vamos impor às próprias mulheres “o que elas são”, sem seu consentimento nem conhecimento? Existe uma palavra para esse tipo de prática. Qual você acha que é?

Há muito tempo eu pensava que esse era um assunto em que interagiam duas partes cujos interesses entravam em conflito. Mas, quanto mais me aprofundo no tema, mais descubro que o conceito de identidade de gênero é tão versátil que o número de partes interessadas pode ser infinito, então, quanto mais cérebros analisarem isso, melhor. Se o interesse fosse desenvolver políticas públicas de maneira não ditatorial, então seria necessário que dialogar com todos: mulheres, ativistas do coletivo LGBT, especialistas em fraudes de identidade, corpo docente das escolas, feministas, endocrinologistas, representantes religiosos, especialistas em desenvolvimento cognitivo e neurológico na infância, antropólogos, sociólogas, filósofos, analistas de estatísticas e muito mais.

Dessas consultas surgiriam relatórios que deveriam ser todos públicos, pois dizem por aí que a transparência melhora a institucionalidade. Agora que em outros países há problemas graves em relação à identidade de gênero tem muita gente se fazendo de desentendida em relação a algo que pede uma análise ponderada. Se esse assunto é seriamente considerado como possibilidade na República Dominicana, então é importante deixar registrado quem sabia o quê e desde quando soube, especialmente se começamos a induzir o uso de hormônios em menores de idade, que eventualmente necessitarão inquirir muita gente.

As primeiras que se darão conta de que o assunto é muito mais complexo do que se pinta serão as técnicas das casas de acolhimento. Suponho que tenham sido consultadas, certo? Então gostaria de ver esse relatório. Também é necessário saber a opinião das técnicas das prisões femininas. Qualquer pisada de bola em relação a esse assunto não afetaria nem um pouco congressistas, juristas nem articulistas: afetaria principalmente meninas, adolescentes e mulheres em condições de vulnerabilidade; portanto, suas vozes são extremamente importantes. As mulheres que estão em casas de acolhimento e reclusas em centros penitenciários foram consultadas? Se não, por quê?

O problema com esse assunto não é que “Raquel brinca demais” (para não dizer um palavrão). O problema é que, em relação à questão da identidade de gênero, muita gente está cutucando a onça com vara curta, sendo que há corporações farmacêuticas à espreita, rondando como rêmoras países com legislações despreparadas, após encontrarem um mercado emergente com o qual lucrar facilmente e criando brechas perigosíssimas, que, uma vez abertas, já não podem ser fechadas.

Algumas pessoas acreditam que o assunto pode ser partido em pequenos pedaços para, dessa forma, deixar os aspectos mais alarmantes de um lado. Mas, analisemos: se a identidade de gênero habita todas as pessoas (ainda estamos tentando entender se ela está em nossa alma ou em nosso cérebro), por que uma pessoa de 65 anos a teria, e não uma menina de sete anos?

Diante desse tema, devemos pensar menos em adultos carismáticos e mais em adolescentes deprimidas, que estão enchendo as salas de espera de “clínicas de gênero” ao redor do mundo. Quantas “clínicas de gênero” deveria haver na República Dominicana? Na Inglaterra há apenas uma, enquanto nos Estados Unidos há cerca de vinte e quatro. O que é uma “clínica de gênero?”, pergunta quem inocentemente não se inteirou ainda dessa hecatombe. As “clínicas de gênero” são centros de criminalidade nos quais se medicalizam pessoas do sexo masculino que gostem muito de rosa e pessoas do sexo feminino que odeiem vestidos de bolinha. Imaginem quantos empregos podem ser gerados aqui, medicalizando todo rapazinho que insiste em querer esfregar o chão e toda menina que diariamente trepa em árvores para pegar cajá.

Estou convencida de que, dentro de poucos anos, as pessoas que conceberam a ideia de criar “clínicas de gênero” receberão o Prêmio Nobel de Medicina, assim como, em 1949, Antonio Egas Moniz e Walter Rudolf Hess, os criadores das lobotomias, o receberam. Coincidentemente, a maioria das vítimas desse “avanço científico” também foram mulheres.

Uma vez que se legitima uma indústria, criadora de empregos e carreiras, cujo serviço é converter meninas e meninos saudáveis em pacientes/clientes vitalícios, como se desfaz esse negócio? Como se tira esses lobistas das escolas públicas, nas quais já estão enfiados recomendando faixas para os seios a crianças e adolescentes, o que causará a elas problemas respiratórios e vertebrais, em nome da igualdade e da não discriminação? Todas essas perguntas são legítimas e deveriam incentivar um diálogo nacional do qual participassem todos os atores e setores, sem exclusões. Sim, todos.

Quem diria que, ainda hoje, em supostas democracias, as mulheres precisariam se rebelar e se organizar politicamente para lembrar às suas classes governantes que são um sujeito político? Em outras legislações ao redor do mundo, essa é a nova norma. É indigno que os direitos das mulheres continuem sendo relegados a um pós-escrito, como se representassem um incômodo, e é alarmante sugerir o tema da identidade de gênero em um país como este, onde as mulheres não têm direitos com base em seu sexo garantidos. Se contássemos às sufragistas que essa seria uma das batalhas que em 2018 estaríamos travando, elas acreditariam em nós?