Com a Constituição de 1891, após a Proclamação da República, o Estado brasileiro se desvinculou da religião católica, tornando-se, ainda que formalmente, um Estado laico. Naquela carta constitucional, passou a ser regulamentado que não se poderia apoiar ou se opor a nenhuma religião. Assim, o próprio processo de secularização das instituições estatais brasileiras (produto do liberalismo político do século XIX), que possibilitou o implemento do direito à liberdade religiosa no ordenamento constitucional brasileiro, se deu de maneira paulatina, ante o forte domínio do clero católico no Parlamento Brasileiro e nas demais instâncias políticas de poder.
Foi no período de redemocratização do país, com a elaboração da nova Constituição Federal em 1988, no qual diversos grupos sociais buscaram a garantias de seus direitos civis que muitos evangélicos ingressaram na política para proceder ao combate da “imoralidade”, notadamente no que se refere à concessão de direitos às minorias, especialmente às mulheres e aos homossexuais. Assim, a participação dos evangélicos na política brasileira, se vê, desde o início, ligada intrinsicamente à moral, “aquilo que alguns evangélicos conservadores chamavam de “nosso terreno”. Nesse contexto de representatividade evangélica na política brasileira, surge a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), uma associação civil, de natureza não governamental, constituída no âmbito do Congresso Nacional, integrada por Deputados Federais e Senadores.
Hoje, o Brasil está na 56ª Legislatura, o Congresso Nacional, através dos seus representantes, os deputados federais, estão exercendo as suas atribuições previstas pela Constituição, como por exemplo, legislar sobre assuntos de interesse nacional, sendo o aborto objeto-chave da bancada evangélica, mobilizado nos muitos jogos políticos. Logo em 1995, foi apresentada ao Parlamento a primeira proposta de emenda constitucional cujo objetivo era proibir toda e qualquer prática de aborto induzido. O referido projeto foi rejeitado, mas sua apresentação acarretou em discussões posteriores que somadas a pressão dos movimentos feministas e a atuação religiosa na política conjecturam em grandes barbaridades Congresso. Ao longo destas últimas legislaturas o tema do aborto sempre se fez presente através de posições polarizadas e de uma quantidade significativa de discursos e projetos de lei pró-vida e pró-escolha.
O cerne da controvérsia dentro do Congresso é a existência ou não do direito à vida pelo feto, contraposto ao direito de a mulher decidir sobre seu corpo e a gestação em curso. Como se trata de uma relação hierárquica entre a mulher grávida e o feto, na perspectiva feminista e pró-escolha, a mulher engloba o feto e tem precedência sobre ele. Já na perspectiva pró-vida ou antiaborto, o feto engloba a mulher, que é encarada como suporte para seu desenvolvimento e não pode optar por interromper a gravidez, pois a vida sagrada é uma totalidade maior do que ela. Ambos os lados considerarem a sacralidade da vida humana, sendo que o lado pró-escolha vai enfatizar a vida da mulher, em contraste com a perspectiva pró-vida, centrada na proteção do feto.
Se, no final do século XX, a inserção de religiosos na politica, era em particular daqueles ligados à vertente progressista da Igreja Católica que enfatizava a luta por direitos humanos no sentido de direitos sociais. Hoje, quando se verificam os discursos e proposições legislativas na Câmara dos Deputados, percebe-se que a luta por direitos humanos é ressignificada por direito à vida e por liberdade religiosa. Foi, a partir dos anos 90, que no âmbito do catolicismo, acentuou-se a predominância dos grupos ligados à orientação mais conservadora do Vaticano, como há o crescimento da Renovação Carismática Católica — que, em termos morais, também tende ao conservadorismo — e reduz-se a presença dos católicos ligados às pastorais populares e à Teologia da Libertação.
No âmbito evangélico, foi a redemocratização que possibilitou aos evangélicos pentecostais a oportunidade de sair do estado de invisibilidade e adentrar, definitivamente, o Legislativo nacional, consolidando por exemplo a Bancada Evangélica e ganhando um número cada vez maior de cadeira ao longo dos anos. Desse modo, temas relativos à moral cristã, às agendas das minorias feministas e ainda, às pautas referentes ao movimento LGBTI+ tornaram-se terreno de atuação destes parlamentares, que passaram a inviabilizar e até mesmo obstruir, em razão de sua massiva expressão política, a concessão de direitos fundamentais a estes grupos.
Os parlamentares religiosos legitimam seus discursos contra políticas públicas de movimentos sociais utilizando como fundamento o direito à liberdade religiosa e a própria laicidade do Estado, tanto para proporem, livremente, projetos de lei que objetivem minimizar direitos fundamentais das minorias, quanto direcionando sua forte presença parlamentar para obstruir/barrar iniciativas legislativas inerentes a elas. A forte onda conservadora atingiu a religião, a política e a sociedade, acabando com as evidências dos avanços democráticos dos últimos anos (ações de promoção da igualdade de gênero; Estatuto da Igualdade Racial; lei contra a homofobia; Política Nacional de Participação Social, etc). E a religião aparece como uma grande protagonista dessa forte onda conservadora que vai ganhando proporções cada vez maiores.
Nos quase cinco anos que vão de junho de 2013 a 2018, houve a produção de um mal-estar na democracia. Tal sintoma começou a se apresentar a partir das manifestações importantes, as “Jornadas de Julho” por melhores políticas públicas e potencializadoras de um conjunto de ações que dificilmente contribuíram para o fortalecimento da democracia. E nas eleições de 2018, com a vitória da direita populista chefiada pelo “capitão” Bolsonaro mostra-se um projeto de recolonização marcado pela submissão ideológica à direita populista americana de Trump e legitimada por movimentos conservadores e fundamentalistas.
De acordo com um levantamento da Gênero e Número, em tempo nenhum a Câmara defendeu tantos projetos relacionados ao aborto como nos últimos anos — e nunca tantos foram contrários à legalização do procedimento. Só em 2019, foram 28 propostas que mencionam a palavra aborto, sendo que 12 buscam restringir os direitos à interrupção voluntária da gravidez. Destes, o PSL, antigo partido de Bolsonaro apresentou seis. De forma geral, o bloco religioso atua como uma força ultraconservadora e pró-vida na política brasileira. A controvérsia sobre o aborto mostra alianças entre católicos, evangélicos e espíritas, mas verificam-se diferenças de posições dentro desse agrupamento. Normalmente, os deputados evangélicos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus se posicionaram a favor do aborto em caso de anencefalia e justificam sua posição favorável à pesquisa com células-tronco embrionárias humanas. Já os assembleianos tem posições antiaborto em todos os exemplos levantados. Já os espíritas, também tendem a ser contra a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e contra à pesquisa com células-tronco.
É possível verificar, pelas análises dos Projetos de Lei mencionados abaixo que políticos religiosos motivados por seus ideais de moral cristã, empenham-se na aprovação de iniciativas legislativas que obstaculizam a produção de políticas públicas para as mulheres, em verdadeira afronta aos direitos fundamentais. Esta realidade chama a atenção para o fato de que, o Brasil, embora seja um país democrático e laico, o mesmo permite diversos tipos de discriminações de gênero pautadas em valores religiosos. De acordo com movimentos feministas, os debates que tentam criminalizar o aborto no Congresso violam gravemente os direitos fundamentais das mulheres, ameaçando os direitos humanos das mulheres conquistados desde a década de 40, e limitando a revisão de leis que permanecem violando os direitos constitucionais e os pactos internacionais de direitos humanos.
Projetos que estão na Câmara:
Lei do Aborto. Projeto de Lei do Aborto (PL 5069/2013), de autoria do ex-deputado Federal Eduardo Cunha, membro da Igreja Universal do Reino de Deus, já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e está pronto para ir ao plenário. Em linhas gerais, o Projeto de Lei cria uma série de empecilhos para o direito constitucional das mulheres vítimas de violência sexual realizarem aborto na rede pública de saúde, exigindo a comprovação de que a mulher foi vítima de violência sexual (com a obrigatoriedade do exame de corpo de delito).
O projeto dificulta, como já mencionado anteriormente, o aborto nos casos de estupro, já que, atualmente, o profissional de saúde pode realizar o procedimento, independentemente de boletim de ocorrência, exame de corpo de delito ou decisão judicial, bastando, para tanto a palavra da vítima. Não bastasse isso, o Projeto prevê que o médico poderá se recusar à aconselhar, receitar ou administrar qualquer procedimento ou medicamento que provoque abortamento, de acordo com o exercício de seu “direito de consciência”. Tal previsão contraria o Código de Ética Médica, que apesar de garantir ao médico o direito de objeção de consciência, impõe o dever de orientar a vítima e garantir a atenção ao abortamento por outro profissional ou instituição, sendo ainda, de acordo com a Norma Técnica do
Ministério da Saúde, dever do profissional orientar a vítima a respeito de seu direito ao aborto nos casos de estupro.
O Estatuto do Nascituro. A PL 478/2007, de autoria do ex-deputado Luis Bassuma, é uma das principais pautas de atuação do Presidente da Frente Parlamentar Evangélica. O projeto tem como principal objetivo dar direito ao feto, tipificando o aborto como crime hediondo e considerando crime congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação, o que inviabiliza o estudo com células-tronco. Ademais, esse projeto visa atribuir direitos fundamentais ao embrião, partindo de uma concepção questionável de que os conceitos de nascituro e embrião teriam o mesmo status (jurídico e moral) de pessoas nascidas. Seria análogo ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, um guarda-chuva de mecanismos para assegurar os direitos do bebê, e por consequência impedir a ampliação de casos em que o aborto é legal e criar incentivos para que as mulheres não optem pela medida em caso de estupro, como já é permitido. Em, 15 de março de 2017, parlamentares contrários à legalização do aborto pediram que o Estatuto do Nascituro (PL 478/07) seja colocado na pauta de votações do Plenário da Câmara.
Proibição do aborto em caso de estupro. O projeto ainda está em contrariedade ao Código Penal brasileiro, que prevê, expressamente, no artigo 128, II, a não punição do aborto praticado por médico “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal” (BRASIL, CÓDIGO PENAL, 1940).
Concessão de auxílio “bolsa estupro”. Outro ponto que causa revolta é a previsão de auxílio financeiro prestado pelo Estado à mãe que mantenha a criança nascida de gravidez decorrente de estupro. A ajuda financeira passou a ser chamada de “Bolsa Estupro” pelo movimento feminista, que vê, na aprovação do dispositivo, uma tentativa de conferir legitimação, por parte do Estado à violência contra a mulher.
Registro público de gravidez. O profissional de saúde ou o hospital que atender a uma gestante será responsável pela emissão obrigatória de um registro público da gravidez, caso seja aprovado o Projeto de Lei 5044/05.
Aumento da penalidade ou criação de tipos penais para o aborto. O Projeto de Lei 1008/19, do deputado Capitão Augusto (PR-SP), aumenta a pena para quem provoca aborto com consentimento da gestante para entre três e seis anos. A punição atual é de reclusão de um a quatro anos.
Proibição da pílula do dia seguinte e do DIU. O deputado federal Márcio Labre (PSL/RJ) é o solicitante do projeto de lei 261/2019, que propunha a proibição do comércio, propaganda e distribuição de métodos contraceptivos, como o dispositivo intrauterino (DIU), e da pílula do dia seguinte. No site da Câmara, o PL já consta como “retirado pelo autor”.
Regulação de clínicas de reprodução humana. A PL 115/2015, de Juscelino Filho (PRP/MA), institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais.
Central de atendimento para denúncias. Dr. Talmir (PV-SP), quer crira um número de telefone específico para denúncias de abortos clandestinos ou de venda de substâncias que provoquem aborto.
Advertência contra o aborto nos testes de gravidez.
Orientação contra o aborto nos serviços de aborto legal.
Redução de pena. O deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), decidiu apresentar projeto de lei 3673/2008 para reduzir a pena máxima em caso de aborto, de três para dois anos de detenção.
Descriminalização do aborto. Projeto de Lei n. 882/2015, pelo Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que: “Estabelece as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências.
A última vitória do grupo pró-vida foi a rejeição no plenário do STF por unanimidade a ação que liberava o aborto em caso de mulheres infectadas com o zika vírus. A vitória foi comemorada pelos parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica, sob a liderança do seu presidente, deputado Silas Câmara, que se consideram peças chaves nesta conquista. O grupo relatou que realizou diversas incursões junto aos ministros do STF mostrando argumentos bem fundamentados contra a ADI 5581 pró-aborto.
Apesar da cultura religiosa que alimenta a hegemonia conservadora na política, grupos progressistas religiosos minoritários têm buscado formas de rearticulação diante do avanço conservador. A ação da Católicas pelo Direito de Decidir, da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direitos, entre outros, rompe com a fantasia do consenso conservador dogmático através da imaginação de uma outra forma de relação que realça as diferenças, a pluralidade e o que está fora. Sua disposição é alternativa as tradicionais, busca diferenciação e distanciamento daqueles que estão no poder. Eles gritam a todo momento que a bancada evangélica, que os religiosos, que essa elite política não os representa, reconhecem a pluralidade do ser religioso também demarcando que não podem falar por ninguém.
Não é possível mais definir, de forma permanente o que é apenas religioso e o que é apenas político. O Brasil é um bom exemplo disso, onde a religião não está restrita à intimidade dos fiéis ou as igrejas, ocupa ruas e instituições políticas. Por isso, na hora que generalizamos e publicamente criticamos os “evangélicos” da política por eles serem evangélicos, e não por suas atuações racistas, misóginas e homofóbicas, estamos inviabilizando o trabalho de muitos grupos evangélicos progressistas, que há tempos vêm resistindo e combatendo representações com este perfil. Analisar a população religiosa (evangélica, católica e espírita) e suas lideranças na política a partir de simplificações só vai escurecer a nossa capacidade de compreensão e reduzirá os canais de diálogo com essas pessoas. É preciso entender que o campo religioso, assim como a democracia é um campo em disputa.
Mas, nós mulheres, feministas, ativistas, militantes, precisamos de atenção redobrada em relação as movimentações deste legislativo ultraconservador que se recusa a debater a descriminalização do aborto sem apelar para dogmas religiosos e que cria e apoia projetos de leis e propostas de emendas à Constituição que buscam retroceder completamente no que já foi garantido em lei em relação ao aborto no Brasil, nós precisamos exercer a vigilância e fazer a resistência.