O útero não é uma nave
O útero não é uma nave

Em 1965, o fotógrafo sueco Lennart Nilsson publicou suas pioneiras fotos de fetos, primeiro na revista Life [Vida] e depois no livro A Child Is Born [Nasce uma Criança].

Nilsson experimentava com microscópicos eletrônicos desde 1953, e o projeto do livro tinha lhe tomado quase doze anos. A edição de 30 de abril de 1965 da revista Life surpreendeu o mudo e vendeu 8 milhões de cópias só nos primeiros quatro dias. 

“Foto inédita em cores” de um feto de 18 semanas dentro do útero materno, 30 de abril de 1965 (Foto: Lennart Nilsson — Life)

Encolhido, com uma cabeça grande e braços com aparência de barbatanas, o feto flutua livremente dentro de um balão de água. É assim que nos acostumamos a imaginar o início de nossa existência. O bebê flutua, como um astronauta independente, apenas com um cordão umbilical ligando-o ao mundo. A mãe não existe. Ela se tornou um vazio — o pequeno astronauta já autônomo voa só. O útero é apenas um cômodo. 

Mas ninguém consegue se separar do lugar onde o olhar teve origem. Dizem que a lente da câmera é objetiva. Mas as fotografias do fotógrafo Nilsson são uma representação — não uma descrição precisa do mundo. O que vemos na ampliação extrema e no corte dramático das fotos não é a realidade. A existência na barriga não é um flutuar livre e desolado. Não há nada mais distante da realidade. O feto cresce da mãe, na mãe e em constante contato com a mãe. É apertado, pulsante, vibrante, e não dá pra saber bem onde a mãe termina e o feto começa. 

Na imagem o feto está sozinho. A mãe foi erradicada. As imagens não mostram relação alguma entre mãe e bebê: nascemos como indivíduos completos e autossuficientes. 

A imagem da vida, como mostrou Lennart, entrou e ficou no nosso imaginário coletivo até hoje. Ela nos parece atraente. A questão é por quê

Aprendamos que as nossas sociedades são construídas através de contratos racionais e nossas economias em mercados livres. Que produtores e consumidores, empregados e empregadores — tudo — são uma única consciência em formas diferentes. Expressões diferentes de um único raciocínio. O mundo é a soma impessoal das livres escolhas individuais. 

Na verdade, a sociedade é mais parecida com uma guerra. É exploradora, racista e patriarcal. A realidade econômica tem mais a ver com a lei de sobrevivência do mais forte: os ricos ficam mais ricos e o resto de nós corre atrás deles. Em algum nível, sabemos disso. Mas continuamos fantasiando. 

Há seculos engolimos histórias sobre como a sociedade surgiu porque os seres humanos tomaram a decisão racional de se unir. Depois de estabelecer que nos beneficiaríamos de uma estrutura colaborativa, começamos a depender uns dos outros. Nem mais, nem menos. 

Esse mito da criação é contado com inúmeras variações e, como a maioria dos outros mitos, é um jogo psicológico. É difícil imaginar que realmente tenha acontecido dessa forma. Que estávamos curvados em nossas cavernas. Escuridão, frio, outras figuras agachadas em outras cavernas, impossível determinar quem era amigo, inimigo, humano ou mamute. De repente, uma pessoa se levanta e exclama: 

“Ei, ouçam! Por que não unimos forças a nos ajudamos? Podemos trocar coisas uns com os outros, e todo mundo se beneficiará!”

Improvável.

Mas essa é nossa fantasia de autossuficiência. E ela é sedutora. 

As famosas fotos de Lennart Nilsson são variações do mesmo tema. Na capa da revista Life, uma pessoinha flutua solitária em algo que perece uma cápsula espacial transparente. É uma existência uterina completamente independente do próprio útero. O feto é um individuo livre, e o corpo da mulher não existe. A mãe é um espaço que o feto está alugando. Esperma entra, bebê sai. A gravidez é uma mulher em uma cadeira de balanço ao lado de uma janela durante nove meses. Essa é sua “mãe”. Ela é um depósito passivo. Você estava dentro dela, mas era independente desde o início. Mestre do espaço vazio em que flutuava. 

O feto nas imagens de Nilsson chupa o dedão e fita a escuridão por trás de olhos fechados. Ao seu redor, tudo é negro e a placenta é uma estação espacial voando livre a distância. É um mito de criação sobre indivíduos livres adequado para a época. As fotos foram publicadas em 1965. Lyndon B. Johnson é o presidente, e os Estados Unidos aumentaram sua presença no Vietnã. Em Londres, Churchill morreu e um “porra” é pronunciado pela primeira vez na televisão britânica. Na terra natal de Nilsson, a loja Ikea abre seu segundo depósito, e os Rolling Stones fazem seu primeiro show no país, no Kungliga Tennishallen de Estocolmo. 

Na maioria das fotos, Lennart está na verdade mostrando embriões mortos. Isso permitiu que ele brincasse com luz, fundo e composição. O que diz representar vida na verdade é sua ausência. 

Há mais de trinta anos sabemos que as suposições sobre as pessoas nos modelos econômicos padrão não estão corretas. O homem econômico não existe — pelo menos não na vida real. Mas ainda nos apegamos a ele. Independentemente de quanto é criticado, ele ainda é sinônimo de economia, e permitimos que ele ocupe cada vez mais espaço em nossas vidas. 

Não importa o que dizem as pesquisas. Não importa o fato de frequentemente os modelos econômicos que construímos contribuírem para derrubar a economia geral. Não importa que, mais uma vez, eles não consigam prever uma bolha no mercado, seus ataques de pânico e caprichos. Continuamos apegados a ele. 

Arrebanhamos pedaços de um universo imaginado, juntamos em modelos e dizemos que é uma imagem bastante precisa do mundo. 

Já comprovaram várias vezes que as suposições relativas ao homem econômico estavam erradas. Mas embora alguns econômicos tenham demonstrado há mais de anos que nossas decisões não são nem objetivas nem racionais, nada mudou muito. Sabermos que o homem econômico não existe de verdade não nos impede de colocá-los no centro da ciência econômica e aplicar sua lógica a porções cada vez maiores da nossa vida. 

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“Somos todos humanos!”, costumamos dizer isso quando queremos apontar uma característica em comum. Algo que nos une para além da classe, sexo, raça, idade, história e experiência. Como se a humanidade se desse fora da classe, sexo, raça e idade, história e experiência — e não por meio de classe, sexo, raça, idade histórico e experiência. Em vez disso, vemos circunstâncias, o corpo e o contexto como camadas que têm de ser descascadas. Elas embaçam a visão. Se quisermos discutir como as coisas realmente são, devemos abstrair como as coisas realmente são. 

Mas somos humanos justamente por causa de um sexo, um corpo, uma posição social, por nosso histórico e nossas experiências, não há outra forma. 

Supomos, porém, que isso seja precisamente o que devemos negar. Que devemos encontrar uma consciência racional comum a todos nós.

“As mulheres também são indivíduos”, dizemos. Ser um indivíduo virou sinônimo de ser humano, e o indivíduo é partícula elementar da economia. 

O homem econômico, porém, é uma ideia muito especifica do que significa ser humano. A economia virou “a ciência do individuo” e a palavra “indivíduo” significa, precisamente, indivisível. A menor parte em que o todo poder ser dividido. Como o átomo na física de Newton. Entendendo o indivíduo, entende-se tudo. Indivíduo, porém, não é o mesma que pessoa.

A característica mais distinta de metade da humanidade é precisamente divisível. 

Toda mulher pode parir tecnicamente. Nem toda mulher quer parir. Mas o diferencial do corpo feminino e o corpo masculino é que ele pode engravidar, gestar e parir. 

Bom, todos vieram ao mundo porque mulheres conseguem parir. Não começamos a vida em um estado de independência e depois enfrentamos o desafio de criar algum tipo de laço com os outros. Mas quando precisamos argumentar a favor da importância de uma sociedade, quase sempre partimos de um indivíduo autônomo e depois enumeramos as razões pelas quais ele deve criar dependências e relações.

  • Será mais fácil produzir alimentos.
  • Será mais fácil nos defender de animais selvagens.
  • Ele será mais feliz.
  • Ele pode conseguir ajuda quando estiver doente.
  • Ele viverá mais.

São muitas as vantagens de ter outras pessoas ao redor. Como se tivéssemos alguma escolha…

O processo, na verdade, é o oposto. Nascemos das demandas e expectativas dos outros. Ser criança é ser quase completamente dependente dos outros. Nunca conhecemos outra coisa. Totalmente à mercê de suas esperanças, demandas, amor, neuroses, traumas, decepções e vidas não realizadas. Cuidar de uma criança é, de certa forma, estar constantemente atendendo necessidades alheias e, com essa intimidade, a criança deve aprender, passo a passo, a se tornar mais independente. Como destacou a teórica feminista Virginia Held: o estado humano natural é estar envolto em nossa dependência dos outros.

O desafio é se libertar disso e encontrar se encontrar. Desbravar mais espaço para si. A partir do contexto dos outros, das relações e do mundo que criamos.

Fantasiam que somos seres independentes e que o útero é só uma coisa que não existe. Mas sabemos quem pare: é a mulher. 

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