Antes de tudo o conceito “gaze” é utilizado para analisar as artes visuais e a literatura de como as pessoas são apresentadas e vistas pelo público. Quem determina os tipos de “gaze” é quem está olhando, logo é o público alvo. Assim, Laura Malvey, crítica cinematográfica e feminista britânica, em seu livro “Prazer Visual e Cinema Narrativo, 1975”, cunhou o “Male Gaze”, em português brasileiro e bem claro: “olhar masculino”.

O Male Gaze na prática é aquela narrativa em que as mulheres são colocadas como objetos, sendo sempre manipuladas para serem uma distração, algo a provocar o telespectador. A mulher foi colocada ali com esse único propósito: usar o jogo de sedução e parecer disponível para quem conduz a câmera, geralmente quem conduz essa câmera é um homem, assim como o público alvo da maioria das produções de artes visuais e literárias: homem. Observando que parece que para essas indústrias apenas o homem tem o poder de consumir, então apenas ele deve ser agradado.

Na teoria feminista sobre artes visuais, o “olhar masculino” está voltado para três comportamentos: l. voyeurismo (prazer em olhar o outro em comportamentos íntimos); ll. escopofilia (ideia de obter prazer a partir do olhar) e lll. narcisismo (prazer de contemplar a si mesmo).

Em outras palavras, a mulher é objeto passivo do olhar masculino e isso muitas vezes é visto como expressão da sexualidade. Nesse sentido, Wendy Arons, dramaturga e feminista estadunidense, disse que a hiperssexualização de personagens femininos diminui a ameaça simbólica representada quando há mulheres violentas em filmes de ação: o foco em um corpo com grandes seios decotados, pernas à vista e roupas que marquem as nádegas, faz com que diminua a ameaça aos homens e que ela está ali apenas para ele, tranquilizando o espectador masculino de seu privilégio de homem, como o possuidor do olhar objetificador.

Podemos observar isso no filme da Capitã Marvel (2019), o fiel público de filmes de heróis ficou irado com o corpo da atriz Brie Larson, circularam fotos nas redes comparando o tamanho da sua bunda com a bunda do Tom Holland que interpreta Homem-Aranha (2019). Também há essa necessidade objetificação com a personagem de Mulher-Maravilha (2017) em que há momentos que a câmera filme suas pernas de baixo para cima quase dando para ver sua calcinha. Na série Love, Death + Robots (2019), a animação The Witness (A testemunha), a protagonista desse episódio passa quase os 12 minutos pelada, além disso ela é uma stripper, logo ser vista é entendida como sua profissão. Mas lembrem-se de ser vista apenas por homens. No filme Azul É a Cor Mais Quente (2013), é um filme que reforça ainda mais a objetificação de lésbicas, tendo quase 12 minutos de sexo, lembrando que o filme recebeu um prêmio no Festival de Cannes (2013) e que o diretor (sim, foi um homem dirigindo um filme sobre lésbicas) está sendo investigado por assédio. Já no último filme de Tarantino, Era um Vez em Hollywood (2019), o Male Gaze se mostra mais uma vez. Margot Robbie quase não possui falas e a profundidade de sua Sharon Tate se limita a danças sensuais, microssaias e microshorts. E se a cena focar em suas pernas, melhor. A objetificação de Pussycat (Margaret Qualley) tenta ser justificada pelo fetiche de pés de Tarantino. E para se escusar do excesso de sexualização das poses, caras e bocas da personagem o cineasta lhe concedeu longos pelos em suas axilas como forma de equilibrar seu excesso de sensualidade, que não serviam à trama. Logo, Tarantino, você fez tudo errado de novo.

Pinterest

Nos quadros de arte a nudez feminina é tradição. Assim como disse as moças da Guerrila Girls: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Artes de São Paulo (MASP)? Apenas 6% dos artistas do acervo são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”. Tenho certeza que isso resume bem a problemática.

“La Maja Despida”, Francisco de Goya

Lembra da Globeleza? Onde uma mulher negra com seu corpo pintado é exposta sambando e parecendo se sentir à vontade? Você lembra dos comerciais de cerveja? Onde há um apelo a sensualidade e exibição do corpo da mulher que está sempre na praia ou em um bar cheio de homens observando-a?

Já na literatura, a novela “Daisy Miller” há dois comportamentos do male gaze. A primeira, relacionada à objetificação do outro, submetendo-o a um olhar controlador e curioso, está presente no olhar que os personagens lançam para Daisy. Encarada como a Outra, a jovem é olhada com curiosidade e preconceito. Por ser vista como objeto, não pode ser sujeito e agente de seus próprios desejos. A luta por emancipar-se é tida como voluntariedade e desrespeito, por isso sua punição é o ostracismo e a morte. Num meio onde a mulher não tem voz nem controle sobre suas vontades, as relações de sexos preveem a dicotomia mulher passiva e homem ativo e este último controla a narrativa e o olhar. A segunda possibilidade de prazer visual diz respeito à identificação com a imagem vista, com o objeto apresentado. Conduzido por um narrador que praticamente desaparece, o espectador de Daisy Miller, fascinado pelo que é mostrado, reconhece seus gostos na tela. O narcisismo está intimamente relacionado à escopofilia, pois ao gostar do que vê, o espectador passará a olhar ainda mais o objeto, encarando-o apenas como meio para alcançar satisfação própria. Assim, Daisy não existe como sujeito na tela e sua objetificação a reduz a mera condição de ser exibida e olhada, a fim de proporcionar prazer visual e sexual.

Filme Daisy Miller, 1974

Na cultura nerd, nos quadrinhos temos as mulheres sempre sendo representadas com grande apelação sexual. Nessas [re]produções, segundo The Hawkeye Project, as mulheres estão sempre com os olhos estão semicerrados, os lábios cheios. Seios completamente separados que escapam do decote. Os detalhes transmitem suavidade diminuindo seu poder. Nos games ocorrem a mesma coisa, as mulheres nunca estão prontas para a batalha vestidas com salto 15 cm e seminuas.

The Hawkeye Initiative

O Male Gaze é mais um elemento que busca mostrar a assimetria de poder social e politico entre mulheres e homens. Mostra-se como mais uma força social controladora de representações audiovisuais dos sexos, pelo qual o sexo masculino deve ser atendido através de um prazer estético, sendo mais uma reprodução vinda dos discursos patriarcais em que coloca a mulher com objetivo meramente ilustrativo.