Nós, mulheres, precisamos estar em todos os lugares.

Aí você me diz: parabéns, descobriu a roda.

Precisamos estar em cada uma das organizações, em cada um dos movimentos sociais, em cada um dos sindicatos, em cada partido político (à esquerda, claro, não perca seu tempo em partidos conservadores), em cada uma das associações. Temos feito isso organicamente, mas não estamos fazendo isso estrategicamente. E é o que precisamos.

Eis uma lição que aprendi com as irmãs que organizam a greve feminista na Espanha.

Em 2018, estive em um acampamento feminista na Espanha com aproximadamente 100 mulheres. Foi um encontro nacional para avaliar a passada Greve 8 de Março e para construir a próxima greve. Tinha mulheres de todas as idades, de diferentes cidades, classes e contextos. Mulheres organizadas em partidos, em sindicatos, em coletivos de base, em associações rurais e vizinhas.

A Greve Feminista na Espanha foi impressionantemente bem-sucedida em mobilizar mulheres. Este ano, por exemplo, mais de 350 mil mulheres participaram da marcha em Madri. E não estou contando Barcelona ou Valencia. Esse número é só em Madrid. Elas tiveram 24h de greve em algumas cidades, 48h noutras, e ainda tiveram paralisações laborais em horários de picos de restaurantes a hospitais em outras. Mulheres de zonas rurais levaram seus tratores para a rua e usaram para fechar o tráfego e as fronteiras. Então, sim, o 8M na Espanha tem sido um enorme sucesso para o movimento de mulheres, no sentido de que mulheres que estão aprendendo a se organizar e a fazer reivindicações políticas por mudança nunca mais vão “desaprender”. Elas estão fazendo história.

Isso é algo que eu chamaria de “empoderamento“. Geralmente evito essa palavra, já que geralmente é utilizada para defender uma ideia liberal em que a mulher sozinha, sem qualquer envolvimento na luta coletiva ou sem fazer nada por ninguém, já se mune de “poder” por passar um batom vermelho ou porque faz pole dance, enquanto o Patriarcado Capitalista continua vendendo de batons vermelhos à lingeries para ser sexy enquanto dança, explorando a mão-de-obra feminina economicamente vulnerável em países assolados pelo colonialismo. Mas isso, essa imensa e poderosa mobilização, que foi e é um processo coletivo e nacional do início ao fim, é algo que eu reconheceria como empoderador.

As mulheres na Espanha estão cada vez mais conscientes de seu poder social, da sua capacidade para se articular de modo a provocar as mudanças políticas necessárias. Elas não só estão conscientes, mas estão praticando a sua teoria. O 8M não é um “fim”, é um “meio”. Uma prática. E elas estão praticando e ensinando outras mulheres a praticar, e eu acho que é assim (também, mas não só) que se promove a alavanca de consciência. Elas estão mostrando às mulheres jovens e meninas como tomar as ruas, como se organizar e, melhor ainda, estão fazendo disso uma parte normal da vida cotidiana. Elas agora conseguem efetivamente medir os prejuízos em termos econômicos e sociais causado quando as mulheres param de trabalhar dentro e fora de suas casas para lutarem juntas por um objetivo – e o que isso significa para a sociedade e para o movimento das mulheres. Elas tinham tantas mulheres nas ruas fazendo greve – laboral, estudantil, ao consumo e aos cuidados –, que não precisavam “estimar” ou “imaginar” como seria esse prejuízo: elas puderam medir os efeitos da ausência das mulheres nas ruas de Espanha, de tantas que mobilizaram.

E a razão de estar falando sobre as mulheres de Espanha – embora seja brasileira, viva em Portugal, e não tenha um fio de cabelo espanhol – é que, quando estávamos no acampamento, algumas discussões esclarecedoras aconteceram. As mulheres trabalhavam juntas em diferentes grupos, como por exemplo: “propostas concretas para o dia da greve” (eu estava nesse); “comunicação social”; “relações com homens, sindicatos e partidos”; etc. – e, obviamente, surgiu um certo atrito entre mulheres organizadas e mulheres anarquistas. Mulheres individuais e mulheres sindicalizadas.

E isso porque algumas mulheres que estavam organizadas em sindicatos e partidos políticos queriam se apresentar, no encontro da Greve Feminista, em representação dessas organizações. Ou seja, nós tivemos uma introdução inicial por regiões. Mulheres da Catalunha, Madri ou Barcelona iam a frente de todas as presentes e davam seu relatório sobre a organização da greve nas suas regiões, mas como núcleo organizador da greve, não como integrantes do sindicato X ou do partido Y. E algumas mulheres, que participavam na greve como integrantes de sindicatos e partidos, tentaram se “apresentar” novamente, depois de já terem dado o relatório da sua região, mas agora falando em nome de seus sindicatos/partidos. Imediatamente, as vozes se ergueram no grande salão e as mulheres começaram a fazer sinais para que a fala fosse cancelada. Elas não conseguiram apresentar novamente em representação das suas organizações. As mulheres que estavam no salão a ouvir os relatórios começaram a dizer claramente que o movimento das mulheres não era um espaço para fazer esse tipo de coisa – e por “esse tipo de coisa” eu provavelmente quero dizer propaganda.

Elas disseram repetidamente que a regra básica para todas, enquanto movimento de mulheres, é que a perspectiva feminista deveria vir em primeiro lugar.

A agenda da Greve de Mulheres deve ser definida pelo movimento como feministas, como mulheres; e partidos políticos, sindicatos e outras associações deveriam endossar essa agenda apresentada invés de fazer a sua própria “agenda para as mulheres” e impor ao movimento feminista.

Então, devíamos nos reunir como mulheres, discutir e trabalhar juntas como mulheres, e decidir juntas como mulheres – depois iríamos para as nossas organizações, das quais também fazíamos parte como mulheres, e levaríamos a nossa agenda feminista para esses espaços. É de dentro para fora, não o contrário. Afinal de contas, essa era uma greve feminista, e é assim (também) que uma Greve Feminista se difere de quaisquer outras greves.

E é isso que quero dizer quando afirmo que precisamos estar estrategicamente em todos os lugares. Não simplesmente colocar a nossa perspectiva individual como Fulana da Silva que até está organizada em um partido político ou em um sindicato. Mas, sim, levar a nossa perspectiva coletiva, nossa agenda política como feministas, como Movimento de Mulheres, para onde quer que estejamos. Porque onde quer que estejamos, a desigualdade sexual também está, inevitavelmente.

Diferentes formas de se organizar significam diferentes maneiras de agir e de reivindicar. Um sindicato não vai reivindicar mudanças na lei sobre estupro, por exemplo. Um coletivo de base dificilmente aplicaria o mesmo esforço que um sindicato para reivindicar melhores condições para um grupo específico de trabalhadores, porém é mais provável que atinja pessoas mais jovens que não estão politicamente engajadas nem nos partidos nem nos sindicatos. Contudo, um partido político dificilmente transformaria qualquer uma dessas coisas em um projeto de lei se não fosse pela pressão tanto dos sindicatos quanto dos coletivos de base. E porque vivemos em uma sociedade patriarcal capitalista que nos afeta em todos os aspectos de nossas vidas, e nos atingem de diferentes maneiras em diferentes idades, privada e publicamente, precisamos estar em cada uma dessas organizações.

Mas estar lá não é suficiente. Nós estivemos lá desde sempre – mesmo quando erámos “proibidas” – e, ainda assim, aqui estamos nós, não é mesmo?

Nós temos estado em partidos políticos e sindicatos desde o início do movimento da classe trabalhadora. Temos estado em movimentos antiescravidão, antirracistas, anti-guerra, em ONGs, associações estudantis, associações de pais, etc. etc etc, organicamente, porque somos afetadas em todas essas condições. Mas nós estivemos lá individualmente, como Fulana da Silva. Não coletivamente, como o movimento de mulheres.

E qual a diferença? Descobri na prática. É assim.

Fiz parte de um coletivo em Portugal praticamente desde a sua fundação. Éramos, e ainda somos, mulheres de diferentes planos de fundo: anarquistas, marxistas, sindicalizadas, partidarizadas, feministas radicais, lésbicas, acadêmicas, trabalhadoras, e até de outros movimentos sociais – como o movimento de apoio ao povo curdo. Nossas companheiras partidarizadas sempre foram primeiro marxistas e, em segundo lugar, só depois, feministas. Sua primeira experiência política foi dentro de um partido político, e elas tinham lido Marx, Engels, Lenin e Moreno. Mas nunca tinham lido Simone de Beauvoir, Shulamite Firestone, Bell Hooks e certamente nunca tinham ouvido falar de Andrea Dworkin. Em termos práticos, elas não tinham conhecimento sobre o movimento das mulheres, a teoria política que as mulheres têm escrito e algumas delas acabaram deixando o nosso coletivo e focalizando em seus partidos. Algumas delas ainda não têm certeza se existe um Patriarcado ou se é tudo meramente um subproduto do Capitalismo. Elas eram 100% “hey, homens não são inimigos” em vez de “hey, mulheres não são inimigas”.

E isso faz diferença. Faz diferença se você está levando a agenda do seu partido político para o seu grupo feminista invés de levar a sua agenda feminista para o seu partido político. Prioridades.

Por exemplo, em 2018, organizamos um debate sobre trabalho doméstico não-remunerado. Era parte das nossas ações para o Dia Internacional dos Trabalhadores. Algumas mulheres, eu incluída, apresentariam suas ideias sobre o trabalho doméstico e a sua perspectiva, como feministas, sobre quais poderiam ser algumas soluções possíveis sobre essa problemática. Uma das convidadas, de um coletivo independente de mulheres negras, não pôde comparecer. No final, fomos três na mesa: eu, que estava como integrante da nossa coletiva feminista; e outras duas mulheres, em representação de seus partidos socialistas.

Era para ser um debate onde falaríamos sobre o trabalho doméstico e trabalharíamos juntas para encontrar soluções e propostas concretas que pudessem direcionar o caminho relativamente aos direitos das mulheres nesta área. Mulheres trabalhando juntas para encontrar uma solução. Mas acabou sendo uma repetição interminável sobre como o trabalho doméstico só poderia ser resolvido com a revolução socialista por vir. Desesperançoso. Nunca, em toda minha vida, ouvi tantas vezes as palavras “lavanderia pública”. O debate estava viciado e não havia espaço para as mulheres falarem verdadeiramente com suas vozes e expressarem seus pensamentos sobre o assunto. Não que elas não pensassem autonomamente no que diziam ou que estivessem sendo robôs programados para reproduzir um folheto comunista, mas sim porque a unilateralidade e repetição dauele debate surpimia a possibilidade imaginativa e discursiva que permitiria a todas as mulheres presentes, não só aquelas apresentando, a discutirem soluções. Havia apenas a revolução socialista e ponto final.

Continuando. Tenho muitos amigos que participam de partidos políticos. E, ao observá-los, aprendi uma coisa ou outra. Tenho amigos que são graduados ou possuem especializações que poderiam assegurá-los trabalhos em posições mais confortáveis, mas dedicaram alguns anos de suas vidas trabalhando como motoristas de ônibus ou atendentes de call centers por, e apenas por, fins políticos. O objetivo era engajar os motoristas de ônibus e trabalhadores de call center e criar um sindicato – especialmente esta última categoria, dos atendentes, que não tinha nenhuma representação sindical no país e era uma das profissões mais precarizadas. Um deles esteve na área por cinco anos até conseguir emplacar o sindicato. Os partidos políticos também estão em todas as disputas de associações estudantis que conheço, seja em Portugal ou no Brasil. Estão engajando jovens que logo poderão se tornar politicamente ativos. Eles estão preparando o solo. Isso é se organizar com uma estrutura e tática bem definida, já que temos um objetivo em mente e, para consegui-lo, é preciso mais que pole dance.

Claro, não estou pedindo que você trabalhe em más condições com o único objetivo de mobilizar mulheres – até porque, já somos a cara da precariedade em todos os lugares. É apenas um exemplo.

Estou sugerindo que o movimento das mulheres funcione como um partido político, aplicando a postura dominante dos homens – que entram em espaços de militância para inserir seu ponto de vista ou para recrutar e depois somem? Sim e não.

Sim, porque precisamos. Precisamos porque estamos em toda parte e, ao fazer isso de maneira organizada e estruturada, eles têm decidido por nós e sem nós durante muito tempo. Porque sabemos que, como consequência do patriarcado, as mulheres em todos os lugares ainda estão alienadas de si mesmas e provavelmente lutarão, em primeiro lugar, em outras lutas macho-identificadas invés de estarem na linha de frente do movimento de mulheres. Elas não estão erradas em fazer isso. Somos atravessadas ​​por tantas opressões diferentes ao mesmo tempo, somado a nossa socialização para empatizar com o opressor invés das oprimidas, que isso é simplesmente inevitável e muito normal, expectável. E é por isso que precisamos estar lá.

Ao mesmo tempo, a resposta também é não. Não podemos operar como partido político, no sentido de ter uma postura dominante em relação a outros grupos, porque nossos objetivos e formas de agir são muito diferentes. O movimento das mulheres não pretende “tomar o poder”. Nós não estamos na disputa pelo Estado, como os partidos políticos estão – e é principalmente por isso que eles entram em todos os movimentos sociais: para construir os seus projetos e “organizar os trabalhadores do mundo” dentro dele. O movimento da classe trabalhadora e o movimento feminista podem, devem e – no meu ponto de vista – precisam trabalhar juntos, mas devemos admitir que ambos são, em última instância, dois movimentos diferentes, com diferentes formas de organizar a luta para alcançar seus objetivos. A esquerda quer tomar o Estado para erradicar o Estado. O movimento das mulheres não. E, especialmente, porque não estamos em posição de dominar. Nós estamos reivindicando o nosso espaço tomado.

Nós temos referências para fazer isso. Por exemplo, os movimentos antifascistas se organizam em núcleos locais (cidades), mas também regionais, nacionais e internacionais. Recentemente, o núcleo antifascista RASH-SP teve um de seus companheiros presos por reagir e se defender de reacionários armados com armas de choque e spray de pimenta. Com as acusações que foram somadas às suas costas, o coletivo não teria condições de bancar um advogado que pudesse tirar o companheiro da prisão – então apelaram à rede internacional e, como uma rede, todos os núcleos antifascistas deverão colaborar financeiramente para a soltura do companheiro – seja organizando eventos ou fazendo vaquinhas.

Também foi essa a nossa experiência em Portugal na organização da Greve Feminista 8M: no primeiro ano, nossa coletiva organizou a greve sozinha. Apenas 300 pessoas saíram à rua, o que foi, ainda assim, incrível para uma coisa feita em uma semana. No segundo ano, novamente organizamos sozinhas. Apesar de termos convidado várias organizações e coletivos, achavam que éramos um grupo fechado e, por isso, não vinham. Tivemos 2500 pessoas na rua. Nesse mesmo ano, fomos ao acampamento em Espanha – propositalmente organizado, pelas companheiras espanholas, numa cidade próxima de Portugal para que pudéssemos aderir. Fomos um grupo de mulheres do sul e um grupo de mulheres do norte de Portugal. Depois desse acampamento, reativamos a Rede 8 de Março e, ao longo do ano, diversos coletivos, partidos, sindicatos e organizações trabalharam em conjunto para construir a próxima greve. Tivemos reuniões semanais, a nível local, e encontros nacionais; formamos núcleos por região, formamos grupos de trabalho, mantivemos comunicação constante – às vezes, impossível de acompanhar, no mar de e-mails e mensagens. Nossa terceira greve, depois do acampamento em Espanha, organizada coletivamente e nacionalmente, levou mais de 20 mil pessoas para as ruas de Lisboa, mais de 7 mil nas ruas do Porto (segunda maior cidade de Portugal) e até 500 pessoas em cidades do interior que nunca antes tinham visto mulheres em greve ou numa manifestação desse porte.

Ou podemos olhar para uma referência muito mais grandiosa, prática e verdadeiramente revolucionária: as mulheres curdas e sírias nas comunes de Rojava. Num território assolado pelas guerras do autoritário governo turco e disputada pelo Estado Islâmico, as mulheres formaram o seu próprio exército, chamado YPJ – a Unidade de Proteção das Mulheres. Era necessário ser algo militar, dado o contexto de guerra, mas mesmo assim as mulheres encontraram o seu jeito de fazer isso sem replicar as estruturas de dominação masculina – tornando a sua unidade um grupo de luta, mas também respeito, sororidade, aprendizado e apoio mútuo. O exército ajudou a quebrar muitos estereótipos sobre as mulheres na sociedade curda, rompendo com a velha imagem patriarcal da cuidadora submissa, fraca e incapaz. Foi ótimo para demarcar sua posição e impor seu respeito frente aos homens, mas não suficiente. Por isso, as mulheres também organizaram um Partido de Mulheres, uma Vila de Mulheres Ecossustentável (onde recebem principalmente mulheres vítimas de violência e fugitivas do DAESH e do ISIS) e uma Academia de Mulheres, onde aprendem sobre ciências ancestrais, sobre si mesmas, sobre o corpo e sua biologia, resgatando e construindo saberes. As mulheres também tem uma participação diferenciada, em Rojava, quando há casos de violência contra a mulher a serem julgados pelo seu próprio tribunal comum.

Ou seja, elas se organizaram em vários níveis: autodefesa, sustentabilidade de reprodução, aprendizagem e produção de conhecimento, justiça. Mas se organizaram como mulheres, um movimento, não indivíduos.

Finalmente, eu realmente penso, já que também me coloco na luta anticapitalista, que somente quando derrubarmos a opressão racista e sexista que divide homens e mulheres, poderemos trabalhar juntos como uma unidade de classe, como classe trabalhadora, para derrubar as estruturas do Capital.