Tradução livre do artigo de Jo Freeman, 1972. Você pode ler o original aqui.

Em algum momento dos anos 20, o feminismo nos Estados Unidos morreu. Foi uma morte prematura. As feministas haviam conquistado a tão desejada ferramenta, o voto, com o qual elas esperavam alcançar mais igualdade para mulheres nesta sociedade. Mas parecia a luta final. Quando as netas das mulheres que sacrificaram tanto na luta pelo sufrágio alcançaram a maturidade, não só os mitos sociais firmemente acomodaram mulheres no lar, como o próprio termo “feminista” se tornou um epíteto.

Fatos sociais, no entanto, nem sempre coincidiram com mitos sociais. Durante a era da “mística feminina”, em que a porcentagem de títulos acadêmicos dados a mulheres estava caindo, seus números absolutos estavam aumentando astronomicamente. Sua participação na força de trabalho também estava aumentando — mesmo quando sua posição dentro dela caía. Oportunidades de trabalho, a tendência a famílias menores, além das mudanças nos símbolos de status (antes, uma mulher desocupada em casa; depois, um segundo carro e uma televisão), tudo contribuiu para uma alteração básica da força de trabalho feminina: de uma constituída por majoritariamente mulheres solteiras com menos de 25 anos, para uma constituída por mulheres casadas e mães com mais de 40 anos. Acrescentados a esses desenvolvimentos estava o aumento da segregação do mercado de trabalho, um tsunami de trabalhos tradicionalmente femininos (p. ex., ensino e serviço social) sendo ocupados por homens, a diminuição da porcentagem de mulheres em empregos técnicos e formais em um terço, e o declínio proporcional em sua renda média. O resultado foi a criação de uma classe de mulheres com alto grau de educação formal e profissionalmente subaproveitadas.

No início dos anos 60, o feminismo ainda era um tabu, mas seu fantasma estava lentamente se levantando do túmulo. O primeiro sinal de uma vida nova veio com a criação da Comissão sobre o Status das Mulheres, pelo presidente Kennedy, em 1961. Criada por apelo de Esther Petersen da Secretaria das Mulheres, em sua curta sobrevida a Comissão elaborou diversos relatórios, muitas vezes radicais, documentando minuciosamente o status de segunda classe das mulheres. Foi seguida pela formação de um conselho popular e de cinquenta comissões estaduais.

Muitas das pessoas envolvidas em essas comissões se tornaram o núcleo de mulheres que, insatisfeitas com a falta de progresso obtido com as recomendações das comissões, juntaram-se a Betty Friedan em 1966 para fundar a Organização Nacional de Mulheres (National Organization for Women).

A ONM foi a primeira organização feminista nova em quase cinquenta anos, mas não foi o início da expressão organizada do movimento. O movimento na verdade tem duas origens, de dois diferentes extratos da sociedade, com dois estilos, orientações, valores, e formas de organização diferentes. Em muitas formas, havia dois movimentos separados que somente no último ano convergiram suficientemente para que a rubrica de “libertação feminina” se tornasse verdadeiramente um termo guarda-chuva para a multiplicidade de organizações e de grupos.

O primeiro desses movimentos eu chamo de ramo mais antigo do movimento, em parte porque ele começou primeiro, e em parte porque a idade média de suas ativistas é maior. Além da ONM, ele contém organizações como o PWC (Setorial [partidário] de Mulheres Profissionais), o FEW (organização de Funcionárias Públicas), e a autodefinida “direita” do movimento, a WEAL (Liga de Ação pela Equidade Feminina).

As participantes de ambos os ramos tendem a ser predominantemente brancas, de classe média e com educação superior, mas a composição do ramo mais antigo é muito mais heterogênea do que a do mais jovem. Em termos de pautas, entretanto, essa tendência é invertida por aquelas do ramo mais jovem serem mais diversas. Enquanto que os programas escritos e os objetivos do ramo mais antigo abranjam um espectro amplo, suas atividades tendem a ser concentradas nas dificuldades legais e econômicas enfrentadas pelas mulheres. Esses grupos são primariamente constituídos por mulheres que trabalham e que estão substancialmente preocupadas com os problemas de homens da classe trabalhadora. Seu estilo de organização tendeu a ser formal, com a eleição de mesas diretoras, secretárias, estatutos e outras armadilhas do procedimento democrático. Todas começaram como organizações de estrutura hierárquica sem apoio popular. Algumas dessas organizações subsequentemente desenvolveram apoio popular, algumas ainda não, e algumas nem querem.

Em 1967 e em 1968, desconhecedoras do e desconhecidas pela ONM e comissões estatais, o outro ramo do movimento estava tomando forma. Contrariando a crença popular, ele não começou no campus universitário, nem foi iniciado pelo movimento estudantil. Entretanto, suas iniciadoras, fazendo jus ao clichê, estavam do outro lado da lacuna de generalização. Ainda que poucas fossem estudantes, todas tinham “menos de 30 anos” e receberam sua educação política como participantes ou observadoras antenadas dos projetos de ação social da última década. Muitas vieram diretamente da Nova Esquerda e de organizações de direitos civis, nas quais elas haviam sido empurradas para papéis tradicionais e enfrentaram a contradição autoexplicativa de trabalhar em um “movimento de libertação” mas sem muita liberdade. Outras haviam assistido diversos cursos sobre mulheres nos múltiplos florescimentos de universidades públicas pelo país durante aqueles anos.

Pelo menos cinco grupos em cinco cidades diferentes (Chicago, Toronto, Detroit, Seattle e Gainesville, Fla.) se formaram espontaneamente, independentemente uns dos outros. Eles surgiram em um momento muito próspero. 1967 foi o ano em que as pessoas negras chutaram as pessoas brancas para fora dos movimentos por direitos civis, em que o poder estudantil havia sido descreditado pela organização nacional dos estudantes, e em que a Nova Esquerda estava em decadência. Apenas atividades de resistência ao alistamento militar obrigatório estavam aumentando, e esse movimento mais do que qualquer outro exemplificou as desigualdades sociais entre os sexos. Os homens podiam resistir ao alistamento. As mulheres podiam apenas secretariar a resistência.

Houve conferências e convenções políticas temporárias isoladas de mulheres já em 1964, quando Stokeley Carmichael fez sua famosa observação de que “a única posição para mulheres na SNCC [n/t: Student Nonviolent Coordinating Committee — organização do movimento estudantil por direitos civis] é de quatro”. Mas só em 1967 os grupos desenvolveram uma continuidade determinada, se não cautelosa, e começaram a se expandir deliberadamente. Em 1968 organizaram sua primeira, e até agora única, conferência nacional, frequentada por mais de 200 mulheres de todo o país e do Canadá, com menos de um mês de aviso. Tais grupos têm se expandido exponencialmente desde então.

Essa expansão tem sido mais orgânica do que organizada porque o ramo mais jovem do movimento se orgulha de sua falta de organização. Evitando estruturas e condenando a ideia de liderança, carrega o conceito de “cada um faz o que quer” até quase seu extremo lógico. As milhares de células irmãs espalhadas pelo país são virtualmente independentes umas das outras, ligadas apenas pelos diversos jornais, revistas e viajantes. Algumas cidades têm um comitê coordenador que tenta manter a comunicação entre os grupos locais e canalizar recém-chegadas para os mais apropriados, mas nenhum possui de fato poder sobre as atividades do grupo, que dirá sobre as ideias do grupo. Um resultado desse estilo é um movimento de bases muito largas e criativas, em que indivíduos podem se relacionar a basicamente o que quiserem sem muita preocupação com ortodoxia ou com doutrinas. Outro resultado disso é certa impotência política. É virtualmente impossível coordenar uma ação nacional, partindo do pressuposto de que haveria qualquer ponto de convergência sobre pautas ao redor das quais uma seria coordenada. Felizmente, o ramo mais antigo do movimento possui a estrutura necessária pra coordenar tais ações, e geralmente é quem as inicia, como a ONM deu o pontapé inicial para a greve geral de 26 de agosto no ano passado [n/t: em 26 de agosto de 1970 aconteceu a greve nacional de mulheres pela igualdade, nos EUA].

É um erro comum tentar alocar as várias organizações feministas no espectro tradicional de direita/esquerda. Os termos “reformista” e “radical” são convenientes e se encaixam em nossas noções pré-concebidas da natureza da organização política, mas elas não nos dizem nada relevante. E com quase todo o resto, o feminismo atravessa as categorias normais e demanda novas perspectivas para que possa ser compreendido. Alguns grupos frequentemente taxados de “reformistas” têm uma plataforma que mudaria tão completamente nossa sociedade que ela se tornaria irreconhecível. Outros grupos taxados de “radicais” se concentram nas preocupações tradicionais femininas como amor, sexo, crianças e relações interpessoais (ainda que com visões nada tradicionais). As atividades das organizações são similarmente incongruentes. A divisão de trabalho mais típica, ironicamente, é que aqueles grupos chamados de “radicais” se envolvem com trabalho educacional enquanto que os chamados “reformistas” são ativistas. É a estrutura e o estilo, mais do que a ideologia, que diferencia de forma mais precisa os diversos grupos, e mesmo assim há muito intercâmbio entre todos. O ramo mais antigo tem usado as formas tradicionais de ação política muitas vezes com muita habilidade, enquanto que o ramo mais jovem tem investido em novas estratégias.

A inovação mais prevalecente desenvolvida pelo ramo mais jovem do movimento tem sido as “rodas de conversa”. Essencialmente uma técnica educacional, ela se espalhou pra muito além de suas origens e se tornou uma das mais significantes unidades organizacionais de todo o movimento, mais frequentemente utilizada por donas-de-casa em subúrbios. De uma perspectiva sociológica, as rodas de conversa são provavelmente a contribuição mais valiosa até agora feita pelo movimento de libertação de mulheres para o rol de ferramentas de mudanças sociais.

As rodas de conversas servem a dois objetivos principais. Um é tradicional; o outro é único. O papel tradicional é o simples processo de reunir mulheres em uma situa.ão de interação estruturada. É sabido que pessoas podem ser contidas enquanto são mantidas separadas umas das outras, sentindo-se mais próximas daquelas em posição social superior do que daquelas em posição similar às delas próprias. É quando o desenvolvimento social cria estruturas naturais em que pessoas podem interagir umas com as outras e comparar suas aflições em comum que os movimentos sociais podem agir. Essa foi a função desempenhada pela fábrica para a classe trabalhadora, pela igreja para o movimento de direitos civis do Sul do país, pelo campus para o movimento estudantil e pelo ghetto pelas pessoas negras urbanizadas.

As mulheres têm sido amplamente privadas de meios de interação estruturada e têm sido mantidas isoladas em suas casas, relacionando-se mais com homens do que umas com as outras. Estruturas naturais ainda são largamente ausentes, apesar de terem começado a se desenvolver, mas as rodas de conversa têm criado uma estrutura artificial que cumpre o propósito. Esse fenômeno é similar o desenvolvimento, no século XIX, de uma multidão de clubes e organizações de mulheres com qualquer propósito social e político imaginável. Essas organizações ensinaram habilidades políticas a mulheres e eventualmente serviram como a rede primária de comunicação para a propagação do movimento sufragista. No entanto, após o fim da grande cruzada, a maioria deles desapareceu ou entrou em franco declínio. As rodas de conversa estão tomando tais lugares e servirão à mesma função para o desenvolvimento futuro desse movimento.

Elas fazem mais do que simplesmente reunir mulheres, por mais radical que essa atividade já seja. Essas rodas de conversa se tornaram mecanismos de mudança social em e para si mesmas. São estruturas criadas especificamente para o propósito de alterar as percepções e concepções das participantes de si mesmas e da sociedade como um todo. A forma como isso é feito é chamada “levante de consciência”. O processo é muito simples. Mulheres se reúnem em grupos de cinco a quinze e conversam umas com as outras sobre problemas pessoais, experiências pessoais, sentimentos e preocupações. A partir desse compartilhamento público de experiências vem a compreensão de que aquilo que se pensava ser individual é na verdade comum; aquilo que se pensava ser um problema pessoal tem uma causa social e provavelmente uma solução política. Mulheres aprendem a ver como estruturas e atitudes sociais as têm moldado desde o nascimento e limitado suas oportunidades. Elas descobrem a dimensão do rebaixamento das mulheres nessa sociedade e como elas desenvolveram preconceitos contra elas mesmas e contra outras mulheres.

É esse processo de profunda mudança de atitude pessoal que faz das rodas de conversa uma ferramenta tão poderosa. A necessidade de um movimento desenvolver “consciência correta” é conhecida há muito tempo. Mas geralmente essa consciência não é desenvolvida por meios intrínsecos à estrutura do movimento, e não requer uma ressocialização tão profunda do próprio conceito de self. Essa experiência é ao mesmo tempo irreversível e contagiosa. Uma vez feita essa “ressocialização”, a visão da mulher de si mesma e do mundo nunca mais será a mesma, ainda que ela não participe mais ativamente no movimento. Mesmo aquelas que “saem” raramente o fazem sem antes espalhar ideias feministas entre suas amigas e colegas. Todas aquelas que passam pelo “levante de consciência” virtualmente compelem a si mesmas a buscar outras mulheres com quem compartilhar a experiência, e então começar novas rodas de conversa.

Há diversos resultados pessoais desse processo. O inicial é um declínio da depreciação de si e do grupo. Mulheres passam a ver a si mesmas como pessoas essencialmente bem bacanas. Junto com isso vem a destruição do mito da solução individual. Se mulheres são como são porque a sociedade fez com que elas fossem dessa forma, elas só podem mudar suas vidas mudando a sociedade. Esses sentimentos por sua vez criam a consciência de si enquanto participante de um grupo, e o sentimento de solidariedade tão necessário a qualquer movimento social. A partir disso vem o conceito de irmandade entre mulheres [sisterhood].

Essa necessidade de solidariedade de grupo parcialmente explica por que homens foram amplamente excluídos dessas rodas de conversa. Não era a razão inicial, mas tem sido um dos subprodutos mais benéficos. Originalmente, a ideia foi pega emprestada do movimento negro, já bastante de consciência pública quando o movimento de libertação de mulheres começou. Foi reforçada pela contínua hostilidade da maioria dos homens da Nova Esquerda à ideia de um movimento independente de mulheres desconexo de qualquer organização radical. Mesmo quando essa hostilidade não estava presente, as mulheres de virtualmente todo grupo nos EUA, Canadá e Europa logo descobriram que os papéis sexuais tradicionais se reafirmavam nos grupos independentemente das boas intenções dos participantes. Os homens inevitavelmente dominavam as discussões, e geralmente falavam apenas sobre como a libertação das mulheres se relacionava aos homens, ou sobre como homens são oprimidos pelos papéis sexuais. Em grupos segredados, as mulheres perceberam que as discussões eram mais abertas, honestas e amplas. Elas poderiam aprender como se identificar com outras mulheres e não só com homens.

Diferentemente da política de exclusão masculina, as rodas de conversa não se desenvolveram espontaneamente nem sem briga. O histórico político de muitas das feministas do ramo mais jovem do movimento as predispunha contra as rodas de conversa por as considerarem “apolíticas” e elas condenavam reuniões de discussão que “acabavam se resumindo” a “sessões de reclamação”. Essa tendência era particularmente forte em Chicago e em Washington, D.C., que haviam sido centros de atividade da Nova Esquerda. Enquanto isso, outras feministas, geralmente com histórico de lutas por direitos civis ou simplesmente apolítico, perceberam que a “sessão de reclamação” obviamente cumpria uma necessidade básica. Elas se aproveitaram disso e criaram as rodas de conversa para levante de consciência. Desenvolvida inicialmente em Nova Iorque e em Gainesville, Fla., a ideia logo se espalhou pelo país, tornando-se o paradigma para a maioria das organizações de movimento.

Até hoje, a principal atividade do ramo mais jovem do movimento feminista, apesar de longe de exclusiva, tem sido a organização dessas rodas de conversa, de conferências, e de literatura educacional, enquanto que o ramo mais antigo tem usado os “canais” e outras formas de pressão política para mudar situações específicas de desigualdade. De forma geral, o ramo mais jovem tem se organizado para atacar comportamentos e o ramo mais antigo, para atacar estruturas.

Ainda que as rodas de conversa venham sendo excelentes técnicas para mudar comportamentos individuais, elas não têm sido muito bem-sucedidas em lidar com instituições sociais. Sua estrutura informal solta encoraja a participação em discussões e sua atmosfera solidária evoca realizações pessoais; mas não é muito eficiente em lidar com tarefas específicas. Portanto, apesar de serem de valor fundamental para o desenvolvimento do movimento, são os grupos mais estruturados que são mais visivelmente efetivos.

Rodas de conversa específicas tendem a se estagnar quando suas membras exaurem as virtudes do levante de consciência e tentam fazer algo mais concreto. O problema é que a maioria dos grupos resistem a mudar sua estrutura quando mudam as tarefas. Eles aceitaram a ideologia da “ausência de estrutura” sem perceber as limitações de seu uso. Isso atualmente está causando uma crise organizacional dentro do movimento porque a formação de rodas de conversa como uma das principais funções do movimento está se tornando obsoleta. Por conta da intensa publicidade midiática que começou no outono de 1969, assim como os diversos livros e artigos “oficiais” agora em circulação, a libertação das mulheres se tornou praticamente uma expressão doméstica. Suas pautas são discutidas e rodas de conversa informais são formadas por pessoas que não têm nenhuma conexão explícita com qualquer grupo do movimento. Ironicamente, essa propagação sutil, silenciosa e subversiva de consciência feminista está causando uma situação de desemprego político. Agora que não há mais tanta necessidade de trabalho educacional, os grupos de libertação feminina devem desenvolver novas formas de organização para lidar com as novas tarefas de um novo estágio de desenvolvimento. Isso está exigindo uma boa quantidade de reestruturação e reflexão. Cidades que estão passando por esse processos frequentemente passam a impressão de inatividade, e apenas o tempo dirá qual será o resultado.

Inicialmente, havia pouca ideologia no movimento além de um sentimento instintivo de que havia algo errado. A ONM foi formada com o slogan “completa igualdade para mulheres em uma parceria verdadeiramente equalitária com homens” e especificou oito demandas em uma “Carta de Direitos”. Ela e outras organizações do ramo mais antigo do movimento continuaram focando-se em torno de questões concretas, sentindo que tentativas de uma ideologia compreensiva têm pouco a oferecer além de conflito interno.

No ramo mais jovem, uma diferença de opinião básica se desenvolveu bem cedo. Estava disfarçada de diferença filosófica, foi articulada e mediada como uma diferença estratégica, mas na verdade era mais uma discordância política do que qualquer coisa. Os dois lados envolvidos eram essencialmente as mesmas pessoas que discordavam a respeito das rodas de conversa, mas a divisão perdurou bem depois de os grupos se tornarem onipresentes. A questão original era se o jovem movimento de libertação de mulheres se manteria como um ramo do movimento da esquerda radical, ou se se tornaria um movimento de mulheres independente. As proponentes ficaram conhecidas como “políticas” ou “feministas”, respectivamente, e trocavam argumentos sobre se “o capitalismo era o inimigo” ou se os valores e instituições sociais da supremacia masculina que eram. Também trocaram epítetos, com as “políticas” chamando as feministas de politicamente pouco sofisticadas e elitistas, e sendo acusadas, por sua vez, de subserviência aos interesses dos homens de esquerda.

Com o influxo de grandes números de mulheres previamente apolíticas, um movimento de libertação de mulheres independente e autônomo se tornou uma realidade ao invés de uma discussão. O espectro mudou para a direção feminista, mas a diferença básica de orientação ainda se mantinha. As “políticas” algo também se chamam de feministas, e muitas abandonaram a esquerda, mas a maioria vê as questões femininas dentro de um contexto político mais amplo, enquanto que as feministas originais continuam a se focar quase que exclusivamente nas preocupações de mulheres. Apesar de grande parte da briga original ter sido deixada para trás, as “políticas” geraram tamanha desconfiança sobre seus motivos que elas infundiram preconceito em muitas mulheres a respeito das preocupações da ideologia de esquerda. Isso levou algumas feministas a adotar a própria perspectiva limitada que as “políticas” mais temiam que elas adotassem.

Enquanto isso, de frente a um êxodo feminino, o movimento de esquerda radical renunciou à retórica de sua oposição original sem abrir mão da maioria de suas práticas sexistas. Adotando a posição de que mulheres são um nicho eleitoral a ser organizado, a maior parte das organizações da Nova Esquerda (e, em menor parte, da Velha Esquerda) criou setoriais de mulheres para recrutar mulheres para “atividades mais importantes”. Esses são bem diferentes dos setoriais de mulheres dos sindicatos, que também surgiram. Estes últimos são preocupados em levantar questões feministas dentro de suas organizações. Os grupos de mulheres da Nova Esquerda servem basicamente às mesmas funções de antigas secretárias.

Os históricos e perspectivas amplamente divergentes das mulheres no movimento resultaram em igualmente divergentes interpretações do status das mulheres. Algumas estão mais desenvolvidas do que outras, e algumas foram mais publicizadas; mas, em 1971, não há uma configuração estruturada de crenças que possam ser devidamente denominadas como ideologia liberacionista, feminista, neofeminista ou feminista radical de mulheres. No máximo se pode dizer que há uma concordância generalizada sobre duas preocupações teóricas. Uma é a crítica feminista da sociedade, e a outra é a ideia de opressão.

A crítica feminista parte de premissas completamente diferentes do que a visão tradicional, e portanto uma não pode realmente refutar a outra. Esta presume que homens e mulheres são essencialmente diferentes e deveriam servir a funções sociais diferentes. Seus papéis e status diversos simplesmente refletem essas diferenças essenciais. Aquela — a perspectiva feminista — parte da premissa de que mulheres e homens são iguais em constituição e compartilham das mesmas capacidades humanas. As diferenças observadas, portanto, demandam uma análise crítica das instituições sociais que as causam.

O conceito de opressão coloca em uso um termo que tem sido evitado há muito tempo, por conta da sensação de que seria retórico demais. Mas não havia eufemismo conveniente e “discriminação” é [uma expressão] inadequada para descrever o que acontece com mulheres e o que elas têm em comum com outros grupos. Enquanto a palavra continuava ilegítima, o mesmo acontecia com a ideia, e era valiosa demais para não ser usada. É um conceito ainda muito pouco desenvolvido cujos detalhes ainda não foram delineados, mas parecem existir dois aspectos do fenômeno da opressão que soam como dois lados de uma moeda — distintos, mas inseparáveis. As manifestações socioestruturais são facilmente visíveis, uma vez que estão refletidas nas instituições legais, econômicas, sociais e políticas. As manifestações psicossociais são frequentemente intangíveis; difíceis de agarrar e difíceis de alterar. O auto-ódio grupal e a distorção de percepções para justificar uma interpretação pré-concebida da realidade são apenas alguns dos fatores sendo manifestados.

Para as mulheres, o sexismo descreve a especificidade da opressão feminina. Partindo da crença tradicional da diferença entre os sexos, o sexismo encarna dois conceitos principais.

O primeiro é de que homens são mais importantes do que mulheres. Não necessariamente superiores — somos sofisticadas demais atualmente para usar tais termos viciados — mas mais importantes, mais significativos, mais valorosos, mais valiosos. Esse valor justifica a ideia de que é mais importante que o homem, o “ganha-pão”, tenha um salário ou uma promoção do que uma mulher; mais importante que um homem seja bem pago, mais importante que um homem tenha educação e em geral tenha preferência sobre mulheres. É a base do sentimento dos homens de que se mulheres entram em uma atividade específica elas a degradarão, e de que homens devem sair ou serão eles mesmos degradados; e do sentimento das mulheres de que elas podem aumentar o prestígio de suas profissões ao recrutarem homens, o que elas só podem fazer ao lhes dar trabalhos melhores. A partir desse valor vem a postura de que um marido deve ganhar mais do que sua esposa, ou sofrerá com a perda de status social, e de que uma esposa deve submeter seus interesses aos do seu marido, ou será socialmente castigada. Desse valor vem a prática de recompensar homens por servirem nas forças armadas e punir mulheres por terem crianças. O primeiro conceito essencial do pensamento sexista é que os homens fazem o trabalho importante no mundo, e que o trabalho feito pelos homens é aquele que é importante.

O segundo conceito essencial é de que mulheres estão aqui para o prazer e a assistência dos homens. É isso que significa quando mulheres dizem que seu papel é complementar àqueles dos homens; de que elas deveriam realizar suas funções “femininas” naturais; de que elas são “diferentes” dos homens e não deveriam competir com eles. Desse conceito vem a postura de que mulheres são e deveriam ser dependentes de homens; para tudo, mas especialmente para suas identidades, a definição social de quem elas são. Esse conceito define os poucos papéis pelos quais mulheres são socialmente recompensadas — esposa, mãe e amante — todos os quais são aprazíveis ou benéficos para homens, e levam diretamente à teoria do “pedestal” que louva mulheres que permanecem em seus lugares como boas ajudantes de homens.

É essa postura que estigmatiza aquelas mulheres que não casam ou que não devotam suas energias primárias ao cuidado de homens e de suas crianças. A associação a um homem é o critério básico para participação das mulheres nessa sociedade, e uma mulher que não busca sua identidade através de um homem é uma ameaça aos valores sociais. É, similarmente, essa postura que faz com que ativistas da libertação de mulheres sejam taxadas de odiadoras de homens quando expõem a natureza do sexismo. As pessoas sentem que uma mulher que não esteja devotada a cuidar de homens só pode agir desse jeito por ódio ou inabilidade de “fisgar” um homem. O segundo conceito essencial do pensamento sexista é de que as identidades das mulheres são definidas por seus relacionamentos com homens, e de que seu valor social é definido pelos homens com quem elas se relacionam.

O sexismo de nossa sociedade é tão difuso que sequer estamos a par de todas as desigualdades que ele gera. Ao menos que a pessoa tenha desenvolvido uma sensibilidade aos seus mecanismos, adotando uma visão deliberadamente contrária, suas atividades são aceitas como “normais” e justificadas sem muito questionamento. Diz-se que as pessoas “escolheram” algo sobre o qual na verdade nunca pararam pra pensar. Um bom exemplo é o que aconteceu durante e após a 2ª Guerra Mundial. A repentina investida da guerra radicalmente mudou toda a estrutura das relações sociais assim como a economia. Os homens foram arrastados para o exército e as mulheres, para a força de trabalho. Agora desesperadamente necessárias, os desejos das mulheres eram atendidos assim como aqueles dos meninos no front. O financiamento nacional de creches foi aprovado pelo Congresso em um recorde de duas semanas. Programas de treinamento especial foram providenciados para as novas mulheres trabalhadoras para lhes dar habilidades que antes não se pensava que elas eram capazes de exercer. Mulheres instantaneamente assumiram posições de autoridade e de responsabilidade indisponíveis no ano anterior.

Mas o que aconteceu quando a guerra terminou? Tanto homens quanto mulheres haviam respondido ao chamado da pátria para o serviço e o concluíram com sucesso. No entanto, os homens foram recompensados por seus esforços e as mulheres foram punidas pelos seus. Os soldados que voltavam eram agraciados com benefícios de veteranos, assim como receberam seus empregos de volta e uma parcela desproporcional dos novos empregos criados pela economia de guerra. As mulheres, por sua vez, viram suas creches serem desmontadas e seus programas de treinamento serem descontinuados. Elas foram demitidas ou rebaixadas em mutirões, e muitas vezes tinham dificuldade para entrar nas universidades que agora estavam entupidas com veteranos que se matriculavam com o dinheiro ganho do governo. É realmente de se espantar que elas tenham ouvido a mensagem de que o lugar delas era em casa? Para onde mais elas iriam?

A erradicação do sexismo e das práticas que ele apóia, como as citadas acima, é obviamente um dos principais objetivos do movimento de libertação das mulheres. Mas destruir um conjunto de valores e deixar um vácuo normativo não é suficiente. Eles devem ser substituídos com alguma coisa. Um movimento só pode começar ao declarar sua oposição ao status quo. Eventualmente, se ele for bem-sucedido, deve propor uma alternativa.

Não posso nem tentar falar de maneira definitiva sobre as alternativas possíveis contempladas pelas numerosas participantes do movimento de libertação das mulheres. Ainda assim, a partir da abundância de ideias e de visões pensadas, discutidas e escritas pelas feministas, penso que existem duas ideias básicas emergindo que expressam o grosso de suas preocupações. Eu as chamo de “Ética Igualitária” e de “Ética da Libertação”, mas elas não são independentes uma da outra e juntas elas se fundem no que só pode ser descrito como um humanismo feminista.

A “Ética Igualitária” significa exatamente o que o nome diz. Os sexos são iguais; consequentemente, os papéis sexuais devem ser abolidos. Nossa história prova que a diferença institucionalizada inevitavelmente significa desigualdade, e estereótipos de papéis sexuais já se tornaram anacrônicos há muito tempo. Papéis sexuais fortemente diferenciados têm suas raízes na antiga divisão do trabalho; a base de tal divisão já foi derrubada pela tecnologia moderna. Sua justificação tinha raízes na sujeição das mulheres ao ciclo reprodutivo; isso já foi destruído pela farmacologia moderna. As pequenas e apertadas caixas de personalidade e de funções sociais que designamos às pessoas desde seu nascimento devem ser destruídas para que todas as pessoas possam se desenvolver independentemente, como indivíduos. Isso significa que haverá uma integração de funções sociais e de estilos de vida de mulheres e de homens como um grupo até que, idealmente, não se possa dizer nada de relevante sobre o papel social de uma pessoa a partir de seu sexo. Mas essa similaridade aumentada dos dois grupos também significa mais opções para indivíduos e mais diversidade na espécie humana. Não vão mais existir trabalhos de homens e trabalhos de mulheres. A humanidade não vai mais sofrer de uma personalidade esquizofrênica que tenta desesperadamente reconciliar suas partes “feminina” e “masculina”. O casamento não vai ser mais a instituição em que duas pessoas incompletas se juntam na esperança de formar um todo.

A “Ética da Libertação” diz que isso não é suficiente. Os limites dos papéis não devem apenas ser mudados, mas seu conteúdo também deve ser. A “Ética da Libertação” olha para os tipos de vidas sendo atualmente vividas por homens assim como por mulheres e conclui que ambos são deploráveis e nenhum dos dois é necessário. As instituições sociais que oprimem mulheres como mulheres também oprimem pessoas como pessoas e podem ser alteradas para fazer uma existência mais humana para todas. Tanto da nossa sociedade se sustenta na estrutura dos estereótipos de papéis sexuais e de suas funções recíprocas que o desmantelamento dessa estrutura fornecerá a oportunidade para fazer uma vida mais viável para todas as pessoas.

É importante ressaltar que essas duas Éticas devem trabalhar juntas em compasso. Se a primeira é enfatizada em detrimento da outra, temos um movimento por direitos das mulheres, não um de libertação das mulheres. Buscar apenas igualdade, dado o atual viés masculino dos valores sociais, é presumir que mulheres querem ser como homens ou que vale a pena imitá-los. É demandar que seja permitido a mulheres participar da sociedade como a conhecemos, que tenham seu pedaço da torta, sem questionar o quanto realmente vale a pena participar dessa mesma sociedade. Essa visão é sustentada por algumas, mas a maioria das feministas a considera inadequada. As mulheres que são mais pessoalmente compatíveis com o que é considerado o “papel masculino” devem entender que esse papel só é possível pela existência do papel sexual feminino; em outras palavras, pela sujeição das mulheres. Portanto, mulheres não podem se tornar iguais aos homens sem a destruição desses papéis interdependentes e mutualmente parasíticos. A falha em perceber que a integração dos papéis sexuais e a igualdade entre os sexos inevitavelmente vai levar a mudanças estruturais mínimas é falhar em aproveitar a oportunidade para decidir a direção dessas mudanças.

Também é igualmente perigoso cair na armadilha da busca por libertação sem a preocupação com igualdade. Esse é o erro de muitas das pessoas militantes de esquerda. Pensam que a condição humana geral é miserável, então que todas as pessoas deveriam devotar suas energias à Revolução do Milênio, crendo que a libertação das mulheres se seguirá naturalmente à libertação do povo.

Entretanto, as mulheres sequer já foram definidas como pessoas, mesmo dentre os radicais, e é errôneo presumir que seus interesses sejam os mesmos daqueles dos homens. Exigir que as mulheres novamente subordinem seus interesses é garantir que a promessa da libertação vai ser espúria. Ainda está para ser criada ou concebida qualquer teoria política ou social uma sociedade revolucionária em que mulheres sejam iguais a homens e em que suas necessidades sejam devidamente ouvidas. A estrutura de papéis sexuais nunca foi verdadeiramente desafiada por qualquer filósofo homem e os sistemas que eles propuseram presumiram todos a existência de uma estrutura de papéis sexuais em algum nível.

Tal ênfase indevida da “Ética da Libertação” frequentemente tem levado a um tipo de Paradoxo Radical. Essa é uma situação em que as “políticas” frequentemente se encontravam durante os primeiros dias do movimento. Elas achavam repugnante a possibilidade de perseguir pautas “reformistas” que poderiam ser atingidas por meio da alteração da natureza básica do sistema, e que elas achavam que, portanto, somente o reforçaria. Entretanto, sua busca por uma ação e/ou pauta eficientemente radical se mostrou inútil, e elas se encontraram incapazes de fazer qualquer coisa por medo serem contrarrevolucionárias. Revolucionárias inativas são bem mais inócuas do que “reformistas” ativas.

Mas mesmo dentre aquelas que não se renderam à impotência, a busca unilateral pela Libertação tem seu preço. Algumas mulheres radicais se tornaram tão chocadas com a condição da maioria dos homens, e com a possibilidade de se tornar o que eles são (ainda que parcialmente), que se apegaram à segurança dos papéis que elas conhecem — esperar complacentemente que a Revolução liberte todo mundo. Alguns homens, temendo que a inversão de papéis fosse um objetivo do movimento de libertação de mulheres, assumiram uma posição semelhante. Os dois lados falharam em perceber que a abolição dos papéis sexuais deve ser continuamente incorporada a qualquer restruturação radical da sociedade, e, portanto, falharam em explorar as consequências possíveis de tal integração de papéis. O objetivo que buscam pode ser de libertação, mas não envolve a libertação das mulheres.

Separadas, a “Ética Igualitária” e a “Ética da Libertação” podem ser defeituosas, mas juntas podem ser uma força muito poderosa. Separadamente elas apelam a interesses limitados; juntas, elas apelam à toda a humanidade. Separadamente, elas são nada mais do que soluções superficiais; juntas, elas reconhecem que enquanto o sexismo oprime mulheres, também limita as potencialidades dos homens. Separadamente, nenhuma será alcançada porque seu objetivo se estende o suficiente; juntas, elas fornecem uma visão digna de nossa devoção. Separadamente, essas duas Éticas não levam à libertação das mulheres; juntas, elas também levam à libertação dos homens.