Após a saída dos Estados Unidos do Afeganistão e retorno do Talibã ao poder, muitas mulheres ocidentais (especialmente feministas) começaram a demonstrar solidariedade às afegãs, nas redes sociais, e a problematizar as opressões dessas mulheres, incluindo o uso da burca e se extendendo ao uso do véu (que hoje chamamos de hijab). Estou acompanhando os debates, publicações e comentários, e gostaria de trazer minha reflexão sobre todos os lados: ocidente versus oriente e principalmente sobre as tais “feministas brancas” versus muçulmanas, que é o que as pessoas mais tem comentado.
Primeiro quero esclarecer que sou latina, muçulmana, estudiosa da religião e não uma leiga (nem toda muçulmana estuda o islã). Meus estudos tem como foco a exegese do Alcorão (inclusive estou escrevendo a primeira interpretação feminista do Alcorão em língua portuguesa), lei islâmica, direitos das mulheres muçulmanas e feminismo islâmico (sou pioneira no Brasil). Também acompanho alguns coletivos feministas do Oriente, Ásia e Brasil.
Segundo, quero deixar claro que muçulmana feminista e feminista islâmica são dois termos diferentes, especialmente aqui no Brasil.
A muçulmana feminista entende que a sociedade precisa do feminismo, mas ela não se aprofunda em estudos sobre o feminismo nem sobre o islã, para ela, o islã não precisa do feminismo. Na teoria, são feministas liberais. A feminista islâmica, ao contrário, busca a fonte da opressão da mulher e sabe que ela também está na religião. A feminista islâmica questiona práticas e regras muçulmanas, e chamamos todas as muçulmanas a conscientização de suas vidas e opressões. O feminismo islâmico não é uma nova “vertente” do feminismo e nem as teóricas do feminismo islâmico se consideram “feministas islâmicas”. Eu me denomino feminista islâmica porque estou diretamente envolvida com a comunidade muçulmana e com a exegese feminista do islã, mas meu feminismo é raiz.
E é importante que você entenda isso para não se deixar levar pelo discurso liberal do tipo “meu hijab, minhas regras”, “véu feminista e escolha”, “feminista branca salvadora” “feminismo sinhá”, e “ouça as afegãs sobre o que elas têm a dizer sobre a burca”. Isto é equivocado e NÃO é um discurso baseado em pressupostos realmente feministas mas liberais, que desejam silenciar os debates sobre as opressões das muçulmanas e problemas da nossa comunidade.
E por que não é um discurso feminista e sim LIBERAL?
Porque é mega problemático e não liberta mulheres.
Vejamos o caso do véu. Como algo que é culpado pela morte, prisão, agressão e violação de direitos básicos de milhares de mulheres pode ser algo feminista? Como algo que é uma OBRIGAÇÃO religiosa, inclusive imposto por alguns Estados, familías, sociedade e doutrinação religiosa, pode ser algo feminista ou escolha pessoal? Mulheres estão tendo seus rostos desfigutados por ácido, sendo estupradas na prisão e agredidas nas ruas por causa desse artigo “feminista”, e as liberais muçulmanas falam que isso não é problema delas porque “é uma interpretação fundamentalista do islã”. Sentiram o discurso liberal?
Como isso não é problema nosso? É problema de todas as mulheres. Onde estiver uma acorrentada, todas estarão acorrentadas. Usar véu é uma declaração evidente de que você segue uma versão fundamentalista do islã.
As maiores e mais renomadas feministas árabes e de paises de maioria muçulmana, foram todas abertamente contra o véu, leiam a Fatema Mernissi.
E por que o discurso “feminista branca salvadora” também é problemático? Porque ele basicamente serve para silenciar mulheres!
(A hostilidade horizontal de muitas muçulmanas feministas no Brasil está tão absurda, que enquanto falam das “salvadoras brancas” de forma pejorativa, ao mesmo tempo distorcem pautas do feminismo islâmico e me silenciam em seus canais. Fui em várias páginas feministas denunciar isso, mas nao tive retorno. Me fala se isso não é realmente um projeto de silenciamento?)
Nossa opressão é a MESMA em todo o mundo: é uma opressão baseada em nosso sexo. Acaso nós, mulheres muçulmanas, somos diferentes das outras? Acaso não temos úteros e vaginas como todos as outras mulheres?
Existem muçulmanas em todo mundo, brancas, amarelas, marrons, indígenas e negras. A lider da revolta dos malês, no Brasil, era uma mulher negra. Então, mulheres de todos os continentes, brancas ou não, muçulmanas ou não, têm o direito de sentir a dor das mulheres orientais/árabes e asiáticas, têm o direito de solidarizar com elas e devem problematizar tudo que é opressor às mulheres (mulheres no Oriente também problematizam nossa opressão). Isso não quer dizer que esquecemos nossos problemas particulares para olhar para o quintal do outro, isso é empatia.
Você sabia que existem mulheres cristãs, atéias e de religiões variadas, vivendo no Oriente? Você sabia que existem mulheres estudando o feminismo Ocidental, incluindo o radical, em paises de maioria muçulmana? Existem coletivos de mulheres na Tunísia, no Líbano e etc, reunindo-se para discutir teóricas do feminismo Ocidental, e isso até no Iêmen. É claro que temos algumas demandas diferentes, mas o feminismo é (e deve ser) um movimento GLOBAL e político que deseja libertar TODAS as mulheres. O feminismo não exclui nenhuma mulher.
As feministas ocidentais, nós ainda não temos poder político, financeiro nem grupos armados para libertar mulheres e NÃO podemos salvar ninguém. Por isso, nos chamar de “brancas salvadoras” é problemático e chega a ser hilário quando é dito às do sul global.
Mas eu penso que, se desejamos realmente salvar nossas irmãs que estão em zonas de conflito, se desejamos abraçar essas mulheres e se sentimos suas dores como as nossas próprias dores, não devemos usar argumentos liberais para nos calar, mas antes ter no horizonte que enquanto uma de nós ainda não for livre, nenhuma será.