Se você é lésbica, bissexual ou uma aliada engajada, deve estar acostumada com o termo “heterossexualidade compulsória”. Talvez você o tenha tenha empregado para explicar porquê se sentiu coagida a namorar um homem durante a faculdade, ou o sussurrou ao ver duas crianças se tratando como namorado e namorada.
É um termo comumente usado para expressar como a heterossexualidade é imposta pela sociedade patriarcal e um tópico relativamente frequente dentro da militância. O que não é suficientemente discutido, entretanto, é como a heterossexualidade compulsória se intersecciona com a misoginia e torna particularmente conflituosa a vivência de mulheres lésbicas.
Embora hoje ainda seja difícil encontrar dados substanciais acerca da questão, a quantidade de homens que sabiam que eram gays desde a mais tenra idade, muitas vezes parece assustadoramente maior do que a de mulheres. Foram realizados artigos e estudos que sugerem que meninos gays normalmente experimentam atração por outros meninos pela primeira vez durante a adolescência ou pré-adolescência, enquanto muitas lésbicas só reconhecem sua atração pelo mesmo sexo durante a idade adulta — um fato que às vezes é motivo de escárnio até mesmo entre lésbicas.
Nunca se é jovem demais para se descobrir lésbica. Entretanto, a heterossexualidade compulsória se faz mais difícil de distinguir durante as primeiras fases da vida, e parece ser mais dura com as meninas.
Ela está tão arraigada em nossas vivências que, frequentemente, mulheres jovens não conseguem nomear seus afetos. Só quando chegam a uma idade suficiente para pensar criticamente que podem refletir com clareza sobre aquela amizade muito íntima ou a admiração realmente intensa pela Xena, A Princesa Guerreira e reconhecer o que realmente era — paixão.
Em perspectiva comparada, a heterossexualidade compulsória afeta desproporcionalmente as mulheres
“Eu simplesmente não reconhecia as paixões que tive como paixões até, literalmente, este ano”, diz Maura*, 33 anos. “Eu tinha pensamentos obsessivos sobre professoras e celebridades, mas acho que me iludi pensando que só queria muito ser amiga delas.”
Então, quais são as influências que levam as mulheres a serem tão desproporcionalmente afetadas pela heterossexualidade compulsória?
A tarefa do amor
As meninas frequentemente são levadas a acreditar que namorar homens é uma tarefa difícil, e que é comum se degradar emocional e sexualmente sem sentir ou receber qualquer coisa de volta, porque os homens são emocionalmente despreparados ou simplesmente “machos”.
Por exemplo, as mídias que consumimos diariamente estão repletas de romances hétero que retratam como uma mulher atraente se dispõe a aturar se relacionar com um homem medíocre — mesmo sendo evidente que ele não a faz feliz — porque ele tem um “coração de ouro”.
Como a saga interminável do relacionamento entre Penny e Leonard, que parece tê-la levado a beber excessivamente nas últimas temporadas de “The Big Bang Theory”. Como Tom e Lynette, extensivamente considerados o melhor casal de Desperate Housewives, mesmo com o primeiro fazendo a vida de sua mulher miserável, ao contribuir apenas com o mínimo dos mínimos nas tarefas de casa e no cuidado de seus seis filhos. Ou como Supergirl e Mon-El, cujo relacionamento inteiro parece se basear na ideia de que é tarefa das mulheres tornar os homens pessoas melhores, independente do custo.
Pode ser difícil para uma mulher distinguir entre uma falta generalizada de entusiasmo por homens e uma série de encontros decepcionantes
Além disso, mulheres são socialmente condicionadas a esperarem e tolerarem experiências sexuais insatisfatórias com homens. Quase todos os programas de TV retratam o sexo como algo que ocorre até que o homem atinja o clímax, enquanto a mulher tem que lidar com sua eterna insatisfação. Na vida real, estudos mostram que as mulheres só atingem o orgasmo em 39% das relações sexuais com homens, enquanto esses gozam em 91% das vezes.
Isso pode tornar praticamente indistinguível a falta generalizada de desejo pelo sexo masculino e uma série de encontros e relacionamentos insatisfatórios — diferenciar o ser lésbica de um esgotamento emocional de tanto tentar satisfazer os homens — e esse é um dos aspectos mais cruéis da heterossexualidade compulsória, levando-as a continuar tentando forçar uma atração bem depois de perceberemos que ela simplesmente não existe.
Eu pensei que era hétero porque era igualmente infeliz em meus relacionamentos com homens como a maioria das mulheres que conhecia
“Eu tive meu primeiro namorado aos 16 anos”, diz Andi*, uma lésbica de 33 anos que só teve seu primeiro relacionamento com uma mulher no ano passado. “Eu reclamava dele, sexual e emocionalmente, e minhas amigas riam e diziam que sentiam o mesmo em seus relacionamentos.
“Eu achava que a recusa dos meus parceiros à prática do sexo oral, minha insatisfação com as preferências sexuais dos caras e o sentimento de que sexo é um fardo eram apenas partes normais da vida. Eu pensei que era hétero porque era igualmente infeliz em meus relacionamentos com homens como a maioria das mulheres que conhecia.
Sexualização
Às vezes, o “olhar masculino” pode ser tão penetrante que sentir atração por mulheres parece ser algo natural. Mulheres raramente são foco na mídia sem serem sexualizadas em algum grau, por isso pode parecer uma experiência banal quando uma jovem lésbica se deslumbra ao olhar para outra mulher. “Oh, olha, é uma mulher linda! Que novidade!”.
Pode parecer que o mundo inteiro é obcecado com corpos femininos, e adolescentes podem ainda não ter desenvolvido a compreensão de que a publicidade de corporações como a Rolling Stone, Burger King e até a PETA tem como público alvo homens heterossexuais.
As mulheres são retratadas como bonitas e desejáveis, de modo que qualquer tipo de atração que eu sentisse por elas parecia normal
Isso faz com que seja lógico para mulheres racionalizarem sua atração por outras mulheres — elas se sentem em sintonia com a cultura hegemônica e acreditam que todo mundo sente “esse tipo” de atração por mulheres, enquanto pode ser mais simples para homens gays a compreensão precoce de que seus desejos não estão alinhados com o ideal imposto pela sociedade.
“As mulheres são retratadas como bonitas e desejáveis, de modo que qualquer tipo de atração que eu sentisse por elas, quando criança, passava despercebida, por falta de uma expressão melhor”, diz Sarah*, 25 anos.
A objetificação constante tem efeitos concretos na vida cotidiana, onde se espera que as mulheres sejam femininas e coloquem seus melhores esforços em parecerem atraentes, enquanto seus parceiros se preocupam muito pouco com a própria aparência.
“As pessoas me davam a impressão de que meu pai estava acima dos padrões de cuidado com a aparência, mas quando penso nele, seus cuidados parecem mínimos se comparados com os da minha mãe, e ela nem era vaidosa. Estar barbeado, ter um corte de cabelo OK e roupas que combinam não dá, nem de perto, tanto trabalho quanto as rotinas de cuidado com sobrancelhas, depilação completa, unhas e cabelo.”
“Muitas lésbicas pensam que sua falta de atração por homens é o jeito que todas as mulheres se sentem, porque os homens são retratados como pouco atraentes; são sujeitos que você lida com, mas não necessariamente se interessa por.”
Sexualidade
A supressão sociopolítica e cultural da sexualidade feminina, especialmente na juventude, pode desempenhar um papel considerável no motivo das garotas demorarem mais para se descobrirem homossexuais. Apesar de serem bombardeados com imagens de si mesmas como objetos sexuais, não é permitido que elas cedam a desejos, o que significa que elas não têm a oportunidade de tomar consciência do quê lhes desperta desejo.
Repreensões sobre o jeito como meninas devem sentar e o que devem vestir são transmitidas com o objetivo de preservar sua “inocência” e estudos mostram que a postura negativa da sociedade em relação à menstruação e ao desenvolvimento do corpo feminino durante a puberdade faz com que os pais restrinjam as saídas das meninas — muito mais que dos meninos — assim que percebem sinais de envolvimento romântico ou sexual precoce.
Dos homens, por outro lado, é esperado que sintam desejo sexual. Enquanto o patriarcado impõe o controle da sexualidade feminina, o desenvolvimento da sexualidade masculina não é tão estigmatizada e são concedidas mais oportunidade de experimentar aos jovens rapazes.
Eu vivenciei minha sexualidade logo nos primeiros estágios da vida e já sabia que era gay por volta dos 12 anos
“Eu vivenciei minha sexualidade nos primeiros estágios da vida”, diz Navid*, um homem gay de 20 anos de idade. “Sempre que via meus amigos, o assunto surgia. Nós começamos a falar sobre mulheres gostosas e revistas pornográficas, o que depois evoluiu para interações homoeróticas e eu já sabia que era gay por volta dos 12 anos.
“Minha melhor amiga é lésbica e teve o mesmo tipo de experiência com garotas, mas ela sequer considerou que pudesse ser lésbica, e se sentiu culpada o suficiente depois para não voltar a repetir o ato. Ela teve relações com homens dos 12 aos 15 anos. Ela nem mesmo se sentia atraída por eles, mas se sentiu compelida a se relacionar romanticamente com homens e arranjar um namorado.
“Eu não conseguia entender isso. Veja, eu também me senti pressionado a me relacionar com mulheres, mas nunca o fiz porque sempre tive experiências com meninos. ”
Texto original:
https://medium.com/@overtake/why-do-lesbians-take-longer-to-realise-theyre-gay-90861548fccc