Programa de conscientização feminista

Nossos sentimentos (emoções) giram em torno de nossas percepções de nosso interesse em nós mesmas.

Nós partimos do pressuposto de que nossos sentimentos estão nos dizendo algo com o qual podemos aprender… que nossos sentimentos significam algo que vale a pena analisar… que nossos sentimentos estão dizendo algo político, algo que reflete medo de que algo ruim nos acontecerá, ou esperança, desejo, conhecimento de que algo bom nos acontecerá.

Sentimentos não são algo sobre o qual podemos presumir, antecipadamente, se ficaremos por cima ou por baixo. Sentimentos são algo com o qual, pelo menos à primeira vista, nós estamos, ou seja, algo que nós examinamos e tentamos compreender antes de decidirmos se é o tipo de sentimento sobre o qual devemos ficar por cima (ou seja, controlar, sufocar, frear), ou o tipo de sentimento sobre o qual devemos ficar por baixo (ou seja, deixar que nos guie a algo novo e melhor; primeiro a uma ideia melhor de aonde queremos ir e então à ação que talvez nos ajude a chegar lá).

Agora, a cultura masculina presume que sentimentos são algo que as pessoas devem controlar, e coloca mulheres para baixo por serem guiadas por seus sentimentos (por estarem sob o controle deles).

Estamos dizendo que mulheres têm estado desde sempre de forma geral em contato com seus sentimentos (ao invés de serem controladas por eles), e que esse estar em contato com seus sentimentos tem sido sua maior força, historicamente e para o futuro. Nós também temos estado tão em contato com nossos sentimentos, na verdade, que nós temos usado nossos sentimentos como nossa melhor arma disponível — histeria, reclamação, birra, etc — , considerando que nossa melhor forma de defesa contra aqueles que têm o poder de controlar nossas vidas são os sentimentos deles por nós, sentimentos sexuais e, de outra forma, sentimentos que eles mesmos sempre tentaram combater.

Estamos dizendo que pela maior parte da história o sexo foi, de fato, ambas nossa condenação e nossa única arma possível de autodefesa e autoafirmação (agressão).

Estamos dizendo que quando tínhamos chiliques histéricos, quando levamos as coisas pro lado pessoal “demais”, nós não estávamos sob o controle de nossas emoções, mas respondendo com nossas emoções corretamente a uma dada situação de injustiça. Digo corretamente porque naquele momento (e talvez até hoje), ao primeiro sentir e depois revelar nossas emoções, estávamos agindo da melhor maneira estratégica. E talvez isso seja a razão pela qual aprendemos a estar tão em contato com nossos sentimentos, pra começo de conversa.

Em nossos grupos, vamos compartilhar nossos sentimentos e reuni-los. Vamos nos deixar levar e ver aonde nossos sentimentos nos levam. Nossos sentimentos nos levarão primeiro a ideias e depois a ações.

Nossos sentimentos nos levarão à nossa teoria; nossa teoria, à nossa ação; nossos sentimentos sobre aquela ação nos levarão a novas teorias e depois a novas ações, e assim por diante.

Novembro de 1968.

Este é um programa de conscientização feminista para aquelas de nós que estão sentindo mais e mais que mulheres são basicamente as pessoas mais legais que existem — nesse momento histórico, pelo menos — e que as sementes de uma nova e bela sociedade global estão adormecidas sob a consciência dessa própria classe que tem sido abusada e oprimida desde o início da história. É um programa planejado sob a premissa de que um movimento de libertação de massas se desenvolverá conforme mais e mais mulheres começam a entender sua situação corretamente, e que, portanto, nossa tarefa primária agora é despertar consciência de “classe” em nós mesmas e em outras em escala massificada. O seguinte roteiro é apenas um palpite de como uma teoria de conscientização de massas se pareceria.

I. O grupo de “reclamação”

A. Expansão de consciência atual

1. Reconhecimento pessoal e testemunhos

a. Relembrando e compartilhando nossas experiências amargas

b. Expressando nossos sentimentos sobre nossas experiências quando ocorreram e no presente

c. Expressando nossos sentimentos sobre nós mesmas, sobre homens, sobre outras mulheres

d. Avaliando nossos sentimentos

2. Testemunhos pessoais — métodos de prática grupal

a. Passar por todo o grupo com perguntas-chave em tópicos-chave

b. Falar de nossa experiência aleatoriamente

c. Examinar as experiências umas das outras

3. Identificando-se e generalizando experiências pessoais

a. Encontrando a raiz comum quando mulheres diferentes têm sentimentos e experiências opostas

b. Examinar os aspectos positivos e negativos dos sentimentos de cada mulher e sua forma de lidar com sua situação enquanto mulher

B. Formas clássicas de resistir à conscientização; ou, Como evitar encarar a péssima verdade

  1. Anti-mulherismo
  2. Glorificação do opressor
  3. Desculpar o opressor (e sentir pena dele)
  4. Falsa identificação com o opressor e com outros grupos socialmente privilegiados
  5. Esquivar-se de se identificar com seu próprio grupo oprimido e com outros grupos oprimidos
  6. Fantasias românticas, pensamentos utópicos e outras formas de confundir a realidade presente com o que a pessoa quer que a realidade seja
  7. Pensar que se tem poder no papel tradicional — “consegue o que quer”, tem poder por trás do trono, etc
  8. Crença de que encontrou uma solução pessoal adequada ou será capaz de encontrá-la sem grandes mudanças sociais
  9. Auto-cultivação, individualismo, reclusão, e outras formas de faça-tudo-sozinho
  10. Autoculpa
  11. Ultramilitância
  12. Outros

C. Reconhecendo as razões de sobrevivência para se resistir à conscientização

D. “Começando a parar” — superando repressões e ilusões

1. Ousar ver, ou: tirando as lentes cor-de-rosa

a. Razões para repressão da própria consciência

a.1 Medo de sentir o peso total da própria situação dolorosa

a.2 Medo de enxergar o próprio passado como desperdiçado e sem sentido (e querer que as outras pessoas passem pelos mesmos obstáculos)

a.3 Medo de desprezar o próprio futuro

b. Analisando quais medos são válidos e quais são inválidos

b.1 Examinando as condições objetivas no próprio passado e nas vidas da maioria das mulheres ao longo da história

b.2 Examinando as condições objetivas no presente

c. Discutindo métodos possíveis de luta

c.1 A história da luta e da resistência à opressão das mulheres

c.2 Possibilidades para lutas individuais no presente

c.3 Luta em grupo

2. Ousar compartilhar a própria experiência com o grupo

a. Fontes de hesitação

a.1 Medo de exposição pessoal (medo de ser considerada burra, imoral, fraca, autodestrutiva, etc. pelo grupo)

a.2 Sentir lealdade ao próprio homem, patrão, pai e mãe, crianças, amigos e amigas, ou ao “Movimento”

a.3 Medo de represália se aquilo se espalhar (perder seu homem, seu emprego, sua reputação)

a.4 Medo de ferir os sentimentos de alguém no grupo

a.5 Não enxergar como sua própria experiência pode ser relevante para outras no grupo, ou vice-versa

b. Decidindo quais medos são válidos e quais são inválidos

c. Estruturando o grupo para que seja relativamente seguro para que as pessoas participem dele

E. Compreendendo e desenvolvendo teoria feminista radical

  1. Utilizar as técnicas acima para chegar a uma compreensão de opressão onde quer que exista em nossas vidas — nossa opressão como pessoas negras, como trabalhadoras, inquilinas, consumidoras, crianças, ou o que quer que seja, assim como nossa opressão como mulheres
  2. Analisando os privilégios que possamos ter — o privilégio da pele branca, o privilégio da educação e da cidadania de uma nação (imperialista) poderosa, e enxergar como esses privilégios ajudam a perpetuar nossa opressão como mulheres, como trabalhadoras, etc

F. Treinamento de conscientizadoras (organizadoras) — para que cada mulher em dada sessão do grupo de “reclamação” possa se tornar uma “organizadora” de outros grupos

  1. O papel da “conscientizadora” (“organizadora”)

a. Ousa participar; ousa se expor, reclamar

b. Ousa lutar

2. Aprendendo a trazer a teoria para o mundo real

a. Falar em termos de experiência própria

3. Aprendendo a “se identificar”

a. Com as irmãs do grupo

b. Com outras mulheres

c. Com amigas e aliadas

d. Com inimigos

4. Problemas específicos de começar um novo grupo

II. Ações de conscientização

A. Ações-relâmpago

Sessões de filme, ataques a fenômenos e eventos culturais, adesivos, bottons, pôsteres

B. Programas de conscientização

Jornais, vitrines, comunas de libertação de mulheres, literatura, conexão por escrito, outros

C. Utilizando a mídia de massas

III. Organizando-se

A. Ajudar novas pessoas a começarem grupos

B. Ações e comunicação inter-grupos

Reuniões mensais

Conferências


Tradução do texto de Kathie Sarachild, publicado originalmente em 1968 na coletânea Feminist Revolution, da coletiva Redstockings of the Women’s Liberation Movement.