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Rivalidade feminina e sexualidade

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Mulheres do mundo, uni-vos!

Toda mulher pratica rivalidade feminina. Toda mulher já rivalizou com outra mulher.

A diferença das feministas para o resto da sociedade é que nós sabemos que isso não é biologicamente programado, mas sim socialmente construído. Faz parte da socialização feminina entender que mulheres são inimigas e homens são o presente que mulheres ganham por seu bom comportamento. Há uma disputa ideológica entre a moralidade e a perversidade das mulheres. O patriarcado permite apenas a existência dos arquétipos santa e puta, e essa dicotomia presume o ódio entre ambas as categorias. A rivalidade feminina está no cerne dessa disputa — e o objetivo dela é ser mais merecedora de homens que as outras mulheres, ser “um tipo diferente de mulher”, aquele que homens não odeiam, mas amam. Isso é tão introjetado que é reproduzido inclusive por lésbicas.

A rivalidade feminina é visível e invisível. É visível nas novelas, nos contos de fadas, nas histórias que contamos a nossas meninas. É invisível no ódio secreto que amargamos por nossas companheiras de luta. Ela está na beleza, na idealização da personalidade “mais atrativa” — complacente, dócil, maternal -, no repúdio ou na reivindicação da suposta promiscuidade. Ela é parte da feminilidade — ou seja, do invólucro que o patriarcado preparou para nos aprisionar. É misoginia internalizada e reproduzida contra outras mulheres. É expressão do nosso auto-ódio, pois o ódio às mulheres é o ódio a si mesma. É mais uma estratégia do patriarcado de impedir a organização entre mulheres — e é bem sucedida porque a consideramos um problema superado na medida em que tomamos ciência dela. Dizer que é construído pela ideologia misógina do patriarcado não quer dizer que ser feminista nos faz “desconstruir” automaticamente — a rivalidade feminina é algo contra o qual lutaremos pelo resto de nossas vidas enquanto feministas, assim como a heterossexualidade ou maternidade compulsórias.

Rivalidade feminina mina o feminismo por dentro, por meio de rumores, hostilidade horizontal e disputas identitárias. Rivalizamos por tantos motivos que não há a pretensão de listar todos aqui. No patriarcado, mulheres odeiam mulheres. Odiamos mulheres porque é assim que fomos ensinadas. Odiamos mulheres por seus posicionamentos, por suas retóricas, por seus relacionamentos, por homens. E esse ódio é fundamental para a manutenção do patriarcado.

O que será analisado aqui será uma das formas que a rivalidade feminina se expressa — que é no âmbito da sexualidade. O ódio entre mulheres lésbicas e mulheres que se reivindicam bissexuais e heterossexuais predomina na militância que se pretende feminista — tanto presencial quanto nas redes sociais. A lesbofobia reproduzida entre esses grupos é aliada da rivalidade feminina. Isso é tão forte que ocorre mesmo entre mulheres que reivindicam a mesma sexualidade, quando possuem visões diferentes sobre esse assunto.

O fator mais importante que se ignora nessas disputas é que todas as mulheres — todas, independente da sexualidade que reivindicam — são vítimas da heterossexualidade compulsória, reproduzem lesbofobia e comportamentos de dominação e submissão. Toda mulher prioriza homens, pelo menos até que seu despertar crítico a permita começar a longa caminhada que é a tomada de consciência feminista — um processo que não tem fim. Mulheres que se entendem como heterossexuais o fazem, priorizando seus relacionamentos amorosos em detrimento de sua causa ou de suas companheiras de luta. Mulheres que se entendem como bissexuais o fazem, priorizando homens em suas relações, prejudicando outras mulheres com as quais se relacionam e também suas companheiras de luta. Mulheres lésbicas o fazem, priorizando homens com quem possuem relacionamentos não-sexuais em detrimento das mulheres com as quais se relacionam ou de suas companheiras de luta. Todas o fazem, principalmente, odiando mulheres, em detrimento do feminismo.

Então, acusar um grupo de mulheres baseado em sua identidade em relação a sexualidade de odiar mulheres, ou de reproduzir a lógica da heterossexualidade compulsória, ou de reproduzir lesbofobia é mais do mesmo. É, novamente, rivalidade feminina. Isso não quer dizer que não devemos combater a lesbofobia dentro do movimento feminista — devemos. Também não quer dizer que não devemos criticar a priorização de homens — devemos. Quer dizer que as disputas baseadas em sexualidade sobre quem mais machuca quem são baseadas em premissas errôneas — de que tal grupo está isento de uma prática que é inerente da feminilidade.

Dentro desse contexto, os relacionamentos entre mulheres são recheados de dor. São dificultados pela conjuntura patriarcal em que vivemos — a lesbofobia e a rivalidade que introjetamos e reproduzimos nos machuca, e machuca as mulheres com quem nos relacionamos. Relacionamentos entre lésbicas e mulheres que se reivindicam bissexuais são mais dificultados ainda — há a divergência de experiências, que faz mais diferença do que costumamos admitir, e que traz violências mútuas específicas.

Lésbicas minimizam o amor de mulheres que se entendem como bissexuais por mulheres, ao invés de celebrá-lo — como mulheres bissexuais enxergarão a alternativa aos relacionamentos com homens se ouvirem das próprias mulheres que se relacionam que não amam mulheres de verdade? — e mulheres bissexuais priorizam homens em suas relações, ignorando a carga emocional que isso tem em mulheres lésbicas. E isso não é uma falha de caráter — somos projetadas assim pela misoginia. Ambas reproduzem estereótipos em relação às outras. Ambas reproduzem rivalidade feminina e a disputa ideológica de quem odeia mais quem é a maior expressão disso.

Há um tema recorrente, e que já deveria há muito ter sido superado, na questão desses relacionamentos: a acusação de que escolher não se relacionar com alguém com base em sua sexualidade seria preconceito. Ignora-se que a proximidade de experiências é atrativa e isso não é um problema. A proteção da própria saúde mental deveria ser prioridade de todas as mulheres — e muitas vezes não adentrar nesses relacionamentos que possuem premissas tão difíceis é se proteger.

Isso não acontece só entre mulheres que se reivindicam bissexuais e lésbicas — mulheres bissexuais escolhendo se relacionar apenas com mulheres bissexuais ou mulheres lésbicas escolhendo se relacionar apenas com mulheres lésbicas. Acontece com mulheres lésbicas que já se relacionaram com homens escolhendo não se relacionar com lésbicas que nunca o fizeram, e vice-versa. Acontece com mulheres lésbicas que escolhem não se relacionar com outras mulheres lésbicas que priorizam relações afetivas com homens em detrimento do próprio relacionamento. Acontece com mulheres que escolhem não se relacionar com mulheres que não são feministas radicais. E essa prática não presume ódio. Não é necessário que se odeie mulheres lésbicas para escolher não se relacionar com elas. O mesmo com mulheres que se entendem como bissexuais.

Responder aos atritos já preparados no terreno do patriarcado escolhendo se relacionar apenas com pessoas que possuem experiências semelhantes é válido e não é preconceito. Presumir que mulheres de quaisquer sexualidades priorizarão homens, principalmente aquelas que se relacionam amorosamente com eles, não é preconceito, é análise crítica do patriarcado.

Não é à toa que uma das ferramentas mais importantes do feminismo é apostar nas conexões entre mulheres para a criação de um novo mundo, onde a lógica de dominação e submissão não seja a regra. Responder o ódio às mulheres com a máxima de que ‘Mulheres amam mulheres’ e clamar por esse amor é a resposta para a rivalidade feminina — e ferramenta de luta contra o patriarcado. As feministas de Leeds fizeram isso conceituando o lesbianismo político. Edda Gaviola fez isso conceituando a amizade política entre mulheres. As feministas de hoje em dia precisam fazer isso também.

O único posicionamento feminista válido no contexto dessa disputa é contra a disputa em si, não contra as mulheres pela sexualidade que reivindicam. É contra a rivalidade feminina. É a favor da compreensão das especificidades e escolhas de cada uma no âmbito dos relacionamentos. Qualquer movimento entre mulheres que não se propõe a superar as diferenças, principalmente aquelas baseadas em identitarismo, não é feminismo.