Camaradas, tenho um problema e necessito sua ajuda. Dá até vergonha lhes perguntar… Minha biografia diz que tenho título de Mestra em Estudos da Mulher, Gênero e Sexualidade e é verdade. Durante o transcurso do mestrado estudamos todo tipo de temas relacionados à sexualidade humana; desde as origens do Kama Sutra até as características da assexualidade. E acontece que, ainda assim, com todo o meu suposto conhecimento, parece que me faltou aprender um conceito fundamental: o sexo sem desejo.
E é que o sexo sem desejo como conceito esteve na arena pública de maneira proeminente estas últimas semanas, tanto nos círculos conservadores como nos liberais. Não, não estamos falando de agressões sexuais, abusos sexuais nem violações. Não, o sexo sem desejo parece ser um conceito diferente que, aparentemente, ganhou adeptos como um tipo de sexo 100% legítimo e normal… para as mulheres.
Indaguemos juntas!
Em meados de junho de 2017, o Conselho Central de Pesquisa em Yoga e Naturopatia da Índia, parte do Ministério da Saúde, publicou um folheto de 16 páginas intitulado “Cuidados da Saúde Materno-Infantil” que oferecia dicas para as mulheres gestantes. O panfleto faz parte dos esforços governamentais para promover tanto a medicina tradicional como a alternativa.
Algumas dicas são bastante benéficas, como a recomendação de que as mulheres se exercitem durante a gestação e, em especial, que pratiquem ioga. Além dessas dicas, está a recomendação de que as mulheres gestantes leiam biografias de grandes personalidades e que pendurem fotografias de paisagens bonitas porque isso poderia ter um “impacto positivo” no seu feto. Foi recomendado também que não se beba chá nem café, e que não comam nem carne nem ovos nem açúcar nem farinha branca nem alimentos fritos. Ah! O folheto, além disso, exorta que as mulheres gestantes devem se abster de ter pensamentos lascivos e desejos sexuais.
As recomendações do Ministério da Saúde da Índia causaram uma grande controvérsia. Por exemplo, após de publicada a guia, algumas médicas declararam que os dicas sobre alimentação do folheto são perigosas para a saúde das mulheres gestantes já que a Índia possui uma alta porcentagem de mortalidade materna e esta se relaciona, em parte, à má nutrição e à deficiente atenção à saúde que as mulheres gestantes recebem.
A ginecologista Arun Gandre explica: “O governo está distribuindo dicas irracionais e pouco científicas, quando deveria garantir que as mulheres gestantes pobres possam comer comida nutritiva e rica em proteínas”. Tudo isso são pontos muito importantes, mas eu não sou nem especialista em ioga nem nutricionista. Então, para fins deste artigo nos concentraremos em um único conselho: a recomendação de que as mulheres se abstenham de ter “pensamentos impuros”.
“As mulheres gestantes devem desprender-se de sentimentos do desejo, da ira, do apego, do ódio e da luxúria”, diz o folheto. Talvez por essa razão a mídia internacional noticiou que o governo da Índia estava recomendando a mulheres gestantes que não tenham relações sexuais. Diante dessa suposta confusão, o Ministro da Saúde “esclareceu” que a recomendação não era que as mulheres gestantes não fizessem sexo, mas não retirou a recomendação de que as mulheres se abstenham de ter desejo sexual ou pensamentos lascivos.
O jornal inglês The Guardian noticia: “o Ministro da Saúde defendeu o panfleto dizendo que este continha ‘sabedoria acumulada durante muitos séculos’ e que não houve recomendação especificamente contra o sexo, somente contra os pensamentos de desejo e luxúria”. O ministro Shripad Naik expressou: “O folheto é um conjunto de dados relevantes à prática do ioga e à naturopatia”. O diretor do Conselho Central de Pesquisa em Ioga e Naturopatia, que confeccionou o folheto , Ishwara N Acharaya, defendeu a sua publicação dizendo que “essas são apenas dicas e ninguém é obrigado a cumpri-las”. Que defesa!
O que é o sexo sem desejo sexual nem pensamentos lascivos? O que é o sexo sem desejo?
O que é o sexo sem desejo sexual nem pensamentos lascivos? O que é o sexo sem desejo? O que quer dizer que o governo de uma nação recomenda às mulheres gestantes que lá habitam que não se abstenham de ter relações sexuais mas que se garantem de não ter pensamentos sexuais quando o façam?
Essa recomendação revela uma visão utilitarista do corpo da mulher que diz que a mulher deve se alimentar e se exercitar adequadamente pelo bem da sua gravidez, mas manter o seu corpo disponível para o uso sexual, presumimos que do seu marido ou parceiro. Essa visão assume que o prazer da mulher é desnecessário para as relações sexuais.
Se essa ideia parece ultraconservadora e talvez até religiosa, acontece que também habita os confins supostamente progressistas.
No início do mês de julho, a revista estadunidense para meninas adolescentes Teen Vogue suscitou também uma grande controvérsia ao publicar uma guia sobre o sexo anal. A revista se descreve como uma revista “rebelde e empoderadora” para as adolescentes. Desde a escolha de Donald Trump por parte do Colégio Eleitoral estadunidense como Presidente, e da publicação de alguns artigos sobre política e justiça social, a revista pôde se desfazer um poco do seu estereótipo de revista superficial e adquiriu uma reputação como uma voz progressista e feminista para as jovens. Essa nova reputação faz com que o artigo sobre o sexo anal para meninas adolescentes tenha sido tão pernicioso.
O centro da polêmica de Teen Vogue, ao menos entre as feministas, não foi o ato sexual em si, mas sim:
- O artigo se referia às mulheres como “pessoas sem próstata”. Quer dizer, nomeia-se a mulher como um ser que existe somente em relação ao homem. Nessa linguagem, supostamente “inclusiva”, universaliza-se a masculinidade, quando essa ideia vem sendo combatida pelo feminismo há décadas.
- A sua ilustração da anatomia do corpo da mulher não inclui o clitóris quando sabemos que, em termos de prazer sexual, o equivalente ao pênis não é o canal vaginal mas sim o clitóris. Cabe destacar que na ilustração do corpo dos homens desenharam e indicaram sim o pênis (com glande e tudo) mas a revista não se preocupou em indicar o órgão mais importante para a sexualidade das mulheres… será que pensa que é irrelevante para a sexualidade?
- O artigo não menciona que, nas relações heterossexuais e em especial entre adolescentes, existe um clima de coerção e manipulação com respeito ao sexo anal. As feministas que estudamos a sexualidade temos visto com preocupação como meninas adolescentes descrevem a pressão que recebem por parte dos seus companheiros para participar de um ato sexual que descrevem como “constrangedor, doloroso e perigoso” para elas.
- Estudos revelam que as adolescentes explicam que, para os jovens, o desejo de fazer sexo anal está relacionado com a prevalência da pornografia e o desejo dos homens de se gabar disso para os seus amigos. Nas conversas tanto dos adolescentes como das adolescentes, a ideia a exploração mutual da sexualidade esteve ausente… Teen Vogue não mencionou absolutamente nada sobre este tema.
- E finalmente, diante das queixas das feministas por tudo mencionado anteriormente, o editor de Conteúdo Digital de Teen Vogue, um homem chamado Phillip Picardi, acusou as feministas de homofobia e mandou-as à merda.
O que dizem as adolescentes sobre o sexo anal? Que seus namorados as assediam, insistindo-lhes que queriam sexo anal e demandando-o. Um estudo sobre o tema descreve que “os rapazes querem copiar o que viam na pornografia” e para conseguir isso demonstravam uma falta de consideração para com temas como o consentimento e os níveis de dor das adolescentes. “Se as pessoas fazem, deve ser porque gostam” dizem eles, sem dúvida educados pelo pornô onde as mulheres são pagas para fingir que todo ato é prazeroso, não importa que seja doloroso ou degradante na realidade. Alguns meninos confessaram no estudo que penetravam suas namoradas analmente e fingiam que havia sido “um acidente”.
Nada anteriormente mencionado apareceu no artigo de Teen Vogue. De fato, o artigo não menciona nem uma só vez o orgasmo feminino nem o clitóris.
Nos surpreende que esta revista não só tenha comissionado um artigo sobre sexo para meninas adolescentes sem mencionar em nenhum momento o orgasmo feminino nem o clitóris? Nos surpreende saber que não só o Editor de Conteúdo Digital que comissionou o artigo é um homem, mas também que a revista Teen Vogue tem uma junta diretiva composta por homens?
Como diz a escritora feminista Victoria Smith, o que fazem artigos como o de Teen Vogue é doutrinar às adolescentes que seu papel é fingir que desfrutam de sexo não gratificante e que, diante da coerção que recebem dos rapazes, elas só tem “o direito” de dizer sim.
Em 1949 Simone de Beauvoir publicou “O Segundo Sexo” e escreveu: “A humanidade é masculina e o homem define a mulher, não por si mesma, mas em relação a ele; ela não é considerada como um ser autônomo”. Em 2017, Teen Vogue, uma revista para adolescentes, ensina às meninas exatamente o mesmo.
JJ Barnes escreve para The Independent sobre a controvérsia:
“O que estão ensinando à audiência de meninas adolescentes? Ensinam que a sua identidade não é ser ‘mulheres’ mas sim ‘não-homens’. Ensinam que elas deveriam consentir ao sexo anal, já que seu corpo é apenas um orifício para ser penetrado por homens e o órgão do seu corpo que é mais sensível e por sua vez mais consistente para garantir o orgasmo feminino é tão irrelevante que nem sequer merece ser mencionado. Dizem que consentir ao sexo anal não é algo que tem a ver com o seu prazer, mas com o prazer do seu companheiro”.
Em poucas palavras: ensinam a elas o sexo sem desejo.
Pensando eu nesse novo conceito que aprendi, me dei conta de que já existe uma indústria onde esta terminologia é a norma. Esta indústria tem um apoio consensual: encanta os capitalistas porque mercantiliza o corpo da mulher, encanta os conservadores porque mantém a mulher, como classe social, em um lugar subordinado, encanta os supostamente progressistas porque alegam que isso não é objetificação mas “empoderamento”. Estamos falando, obviamente, da prostituição.
Em seu livro “O Ser e a Mercadoria” [El Ser y la Mercancía], a jornalista sueca Kajsa Ekis Ekman escreve que para entender a prostituição, é preciso analisar a ideologia política que a sustenta. Para Ekis Ekman, a narrativa do benevolentemente chamado “trabalho sexual” é uma simbiose da direita neoliberal e da esquerda pós-moderna. Eu escrevi para Feminist Current, em uma revisão do argumento de Ekis Ekman que “após a Guerra Fria e a queda do comunismo, a esquerda respondeu à dominação quase global do capitalismo, segundo explica Ekis Ekman, “disfarçando a sua perda como um triunfo”. Em vez de ter que batalhar contra as injustiças, alguns ramos dentro da esquerda (inclusive dentro do feminismo) decidiram redefinir o status quo como subversivo e marginalizado”.
Na prostituição, onde o sexo sem desejo é a pedra angular da transação para a mulher prostituída, “a esquerda pós-moderna e a direita neoliberal entraram em um pacto tácito. A direita obtém poder, enquanto que, em troca, a esquerda esconde a sua derrota” dentro da linguagem. Explica Ekis Ekman:
“…a direita neoliberal utiliza a linguagem que explica a prostituição como uma livre escolha dentro do mercado livre. A esquerda pós-moderna, encantada com os jogos discursivos e rejeita as ações políticas, encontraram uma desculpa para não ter que lutar contra a indústria do sexo alegando que escutam as vozes das marginalizadas (as chamadas trabalhadoras sexuais)”.
E é assim como um panfleto que aconselha a mulheres grávidas a ter relações sexuais sempre e quando não sintam nenhum tipo de desejo sexual, e uma revista pseudofeminista para adolescentes que recomenda fazer sexo anal sem mencionar em nenhum momento o orgasmo feminino nem o clitóris, se conciliam ao redor do conceito de sexo sem desejo.
Pensando bem, conhecia sim esse conceito, é só que conhecia com outros nomes. O sexo sem desejo não é nada novo… são só piruetas que se jogam com a linguagem na esperança de que nós, despistadas, não nos demos conta. Que bom que eu já entendi a trama, camaradas: agora vão e avisem as demais, por favor. Digam a elas que o patriarcado está aí, fodendo como sempre, disfarçado como “sexo sem desejo” o que não é mais do que subjugação.
Tradução do texto de Raquel Rosario Sánchez para Tribuna Feminista em 07/2017
Obrigada pela tradução. ❤️
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