Para entender o que aconteceu e o que está acontecendo agora com as fortes divergências entre as feministas e as transexuais, ou pelo menos com um setor dessas, é necessário esclarecer de antemão a distinção entre sexo e gênero. Quando falamos de sexo, o feminismo se refere ao corpo sexuado, à questão puramente bio-anatômica. O conceito de gênero refere-se a tudo o que socialmente associamos a um ou outro sexo. Por exemplo, sabe, as meninas são sensíveis, doces, submissas e assistem a filmes de amor. Os meninos, por outro lado, são rudes, ousados, dominadores e assistem a filmes de lutas. Tudo isso não é determinado pela biologia ou pelo corpo sexuado, mas pelo nosso ambiente social e cultural.
Na década de 30 do século passado, a Dra. Margaret Mead, antropóloga norte-americana, embarcou em uma jornada através da Indonésia disposta a encontrar entre as sociedades os comportamentos remotos que caracterizam todas as mulheres, vivem na sociedade em que vivem; e aqueles comportamentos que caracterizam todos os homens, vivem na sociedade em que vivem. Para sua surpresa, ela não os encontrou. Assim, diante das evidências, chegou à conclusão de que as diferentes maneiras de se comportar de homens e mulheres, tão diversificadas em todo o planeta, não respondiam a uma questão natural ou biológica, mas ao ambiente social em que elas vivem.
A tradicional filósofa existencialista Simone de Beauvoir chegou à conclusões semelhantes alguns anos depois. Ela ressaltou que, embora nasçamos com um corpo sexuado, a feminilidade e a masculinidade são entidades históricas, isto é, mudam e, portanto, não nascemos com uma essência masculina ou feminina imutável que determine nosso comportamento ou nosso ser. Suas teses, assim como os estudos de cultura e personalidade da Mead, serviram às mulheres e ao feminismo para explicar que não eram naturalmente sensíveis, doces, submissas ou que gostavam de filmes de amor. Nem eles eram rudes, ousados, dominantes e sempre gostaram dos filmes de lutas. Isso nada mais é do que estereótipos usados para discriminar e subjugar as pessoas, principalmente as mulheres.
Mas, antes disso, quando uma menina é vista jogando futebol, ou uma criança homem é vista brincando com cozinhas, dizia-se (diz?) que este comportamento não se encaixava no sexo que elas nasceram, e, portanto, esse comportamento deve ser corrigido para torná-lo apto com o seu sexo. Então, talvez a garota fosse proibida de jogar futebol ou começavam a rir dela, e também da criança por brincar com a cozinha ao invés de futebol. Nesse momento, o feminismo chegou a dizer que nenhuma mudança no sexo aconteceu porque elas fizeram isso, ou que não é antinatural, ou que é natural rir disso, o que começou a entender é que que elas devem brincam com o que querem. De fato, o estranho mesmo seria que alguém se encaixasse em todos os “estereótipos de gênero” que lhes são impostos socialmente. Ninguém faz isso! O problema, em qualquer caso, é qualquer incompatibilidade entre comportamento e sexo.
Foi assim que surgiu então as teorias Queer, (sim, galera, o Feminismo veio bem antes, as mulheres foram pioneiras em questionar os famosos “estereótipos de gênero”) inscritas no feminismo teórico. Entre outras coisas, eles colocam a ênfase no comportamento que saiu dos estereótipos de gênero, vendo neles a identidade de gênero autêntica. Então, se uma garota joga futebol e faz “coisas que são de menino”, talvez ela não seja realmente uma garota. E que há algo que tem de ser corrigido nela, não é o comportamento dela, como se pensava anteriormente, mas sim o corpo dela, ajustando assim o sexo dela ao comportamento dela, e não o contrário. Isso seria a transexualidade. Esse desencontro foi chamado de “disforia de gênero”, quando alguém sente que nasceu com o sexo errado. E isso seria ajustado por meio de terapia hormonal e uma operação de reatribuição sexual. (O que deu muito assunto para analistas da época e hoje dá muito lucro para as indústrias de hormônios).
Não é, em qualquer caso, para julgar os sentimentos das pessoas que sentem que há um desacordo entre seu sexo e identidade de gênero, e que eles decidem transformar seu corpo. Infelizmente, os transexuais estão sujeitos a uma séria discriminação social, que os empurra para as margens da sociedade, marginalização e, muitas vezes, para sobreviver à prostituição. O feminismo teve toda a sua história lutando contra essa instituição patriarcal, que é a prostituição, que afeta principalmente as mulheres, de modo que o corpo de ninguém venha a ser sexualmente explorado, e por isso ninguém é forçado a se prostituir para sobreviver. Nesse ponto, feministas e transexuais podem convergir. Como podemos ver hoje em dia…
Mas há outra questão que não podemos ignorar é o ponto de origem dos conflitos entre os dois grupos ou movimentos. Reconhecer que você pode nascer com um sexo, mas que está no “corpo errado” por não ter um comportamento estereotipado, é reconhecer que há uma feminilidade ou uma masculinidade inata que deve prevalecer, que forma a identidade de gênero autêntica, e que justifica a mudança de sexo. Assim, em algum lugar do ser humano, deve haver uma “mulher ser” ou um “ser humano essencial”, além do condicionamento social. Sentindo-se muito, essa ideia é absolutamente incompatível com as idéias feministas sobre o gênero como uma construção social. Acredite em mim quando digo que adoraria poder dizer-lhe que não há conflito importante entre feminismo e transexualidade, e que você deveria simplesmente participar. Mas isso é intransponível. Simplesmente, não podemos dizer que a feminilidade é uma construção social ao mesmo tempo em que dizemos que nascemos com uma feminilidade inata que se expressa no comportamento. Uma coisa ou outra… Tudo não pode ser!!!
Reconhecer que o feminismo e transexualidade são baseadas em suposições conflitantes podem despertar entre a comunidade transexual e outros movimentos — ela já fez — acusações de transfobias destinadas às feministas, muitas vezes de forma acríticas, essas que às vezes vem com alto grau de violência verbal, com uma gênese vinda do machismo (poderia falar aqui dos casos de estupros: mulheres trans estuprando mulheres, mas deixo para outro momento). Mas isso ocorre, como já dito, é que, ao contrário do que o feminismo defende, pessoas transexuais, ou a teoria queer, acreditam que existe uma feminilidade ou masculinidade inata. O feminismo não pretende dizer a ninguém o que sentir, nem o que fazer sobre isso se você sentir que sua identidade de gênero não se encaixa em seu sexo. E igualmente não se pode fingir que os sentimentos de alguém invalidam décadas de feminismo feitos de muitos campos teóricos e práticos, conseguindo muitos avanços que melhoram nossa sociedade. Inclusive a vida das mulheres. O feminismo não parte de sentimentos individuais sobre se um ou um se sente como um homem ou uma mulher.
As feministas estão sofrendo muita pressão para pôr de lado tudo o que o feminismo tem sido e abraçar uma espécie de correntes e movimentos sociais baseadas em sentimentos pessoais e escolhas individuais. A feminista que não fizer isso será rotulada como exclusiva, transfóbica ou privilegiada. Esta forma de ataque contra o feminismo e contra o seu legado, exigindo que ele deixe de ser o que define e assumir postulados contrários às suas bases teóricas, está presente em organizações políticas, os partidos e os conselhos locais que se dizem progressistas, de esquerda, comunista e até feministas. Ele já foi chamado para boicotar eventos onde participando feministas que foram crítica desta nova exigência que se impõe ao feminismo. Vide ao que aconteceu esse ano com uma queridíssima ao ter sua apresentação cancelada que falaria de hormonização infantil. Lembram?
O confronto não é superficial, e não pode ser resolvido simplesmente com vontade conciliatória e slogans de unidade antipatriarcal, por mais que soem bem aos ouvidos de todo o mundo. Quem faz isso não está percebendo a profundidade do desacordo. Esse debate já ocorreu em outros países, chegando inclusive aos órgãos legislativos em relação às leis de identidade de gênero. E em nenhum lugar as feministas aceitam que o movimento feminista seja desarticulado e forçado a adotar idéias incompatíveis com ele sob a ameaça de ser marcado como um movimento excludente ou transfóbico. Feministas e transexuais podem ser encontrados na luta pela abolição da prostituição, nas demandas trabalhistas e sociais, ou em favor da liberdade sexual. Mas não tentem enfiar goela a baixo que devemos desconsiderar tudo que fizemos até hoje.
Texto inspirado num outro texto da espanhol da La República.